quinta-feira, janeiro 29, 2015

A "glória" é transitiva. Há quem se ria dela.

“A minha ambição é sobreviver à minha morte”. Disse aquele que escreve. Glória de Panteão? Não acredito que o poeta queira ver o seu pó circunscrito à sujidade amarelada do mármore.
Contenta-se com o verbo. Substantiva-se no edifício do recordar. Com sorte, cruza-se nalgum corredor com alguém que goste de o sublinhar. Sabe-se que ele gostava, que o fez com outros com quem se cruzou...

segunda-feira, janeiro 26, 2015

Mais uma do Tolentino Mendonça:

"O humor abre espaço à sabedoria"

Momentos: "Dia Mundial da 3ª Idade" in "Expresso" (2001)

Fotocópias perdidas e achadas do, e pelo, Pedro L. Cuadrado... Para mais tarde encontrar...

Memória da água (Rui Knopfli)



MEMÓRIA DA ÁGUA

Gestos e palavras que crera
escritos a fogo
na dura parede do tempo.

De pura piedade os bebeu
a memória da água
que, nada retendo,

a tudo dá sepultura.

Rui Knopfli


Mangas verdes com sal (1969)



domingo, janeiro 25, 2015

Educação sentimental - António Lobo Antunes

“(…) E detestava o professor de Moral que me enfiava a mão nos calções e me perguntava se eu já tinha leite na pilinha. Essa deixou-me tão perplexo que interroguei o meu pai
- O pai acha que eu já tenho leite na pilinha?
O meu pai emergiu do cachimbo e do livro de boca aberta
- Que história é essa?
 esclareci-o
- O professor de Moral perguntou-me se eu já tinha leite na pilinha
e a cara do meu pai transformou-se de uma maneira aterradora.
Levantou-se de um salto e saiu porta fora. Pareceu-me escutá-lo a gritar qualquer coisa ao telefone, no género
- Diga-lhe que eu vou lá e lhe parto a cara (…)”


sábado, janeiro 24, 2015

VII - El Aire (Ángel Campos Pámpano)

VII
El Aire

Por abrazar el aire me he llegado hasta aquí. Sólo por dar sentido a una carencia y rebatir la soledad.

Ángel Campos Pámpano in "Jola" (2003)

sexta-feira, janeiro 23, 2015

quando tudo está perdido

quando tudo está perdido
a solidão dilui-se na solução
aquosa dum corpo que nunca foi mais que pó.
ecoa um silêncio iluminado
pela urgência do very-light que rasga noites a fio
com o desafio que se veja para que se creia.

quando tudo está perdido,
uma ideia é um barco, um passado cargueiro
de contentores vedados, amolgados pelo
peso da viagem, que bóia em vestígios
de espuma que foram dias.

quando tudo está perdido,
o diário húmido, tímido e íntimo,
sentido em plástico contido,
é a voz salgada do desespero que não se ouve,
da ferida seca em sangue do mapa por o qual tentas
manter vivo de cabeça
e em vãos apontamentos
a letra gretada das tuas mãos.

quando tudo está perdido,
vês verdade permeável na mentira estanque.
revela-se, revelas-te nisso do destino,
naufragas num mar interior que não distingues de oceanos.
a corda está lá, com nós, afunda-se no cais, em redondo verdete que desliza em linhas suaves de palmas que nunca acreditaste que pudessem ser lidas.

quando tudo está perdido,
o círculo de fogo, que dá e aquece vidas, conflui no horizonte da lua.
manténs-te à tona por o instinto feito fé
que navegar é preciso,
mesmo quando tudo está perdido.   

quarta-feira, janeiro 21, 2015

Al volante del Chevrolet por la carretera de Sintra (Álvaro de Campos)

[Trad. Luis Leal/Pedro L. Cuadrado]

Al volante del Chevrolet por la carretera de Sintra,
A la luz de la luna y al sueño, en la carretera desierta,
Conduzco solo, conduzco casi despacio, y un poco
Me parece, o me fuerzo un poco para que me parezca,
Que sigo en otra carretera, por otro sueño, por otro mundo,
Que sigo sin que haya una Lisboa dejada o una Sintra a la que llegar,
Que sigo, ¿Y que más habrá en seguir sino no parar pero seguir?

Voy a pasar la noche a Sintra por no poder pasarla en Lisboa,
Pero, en cuanto llegue a Sintra, me dará pena de no haberme quedado en Lisboa.
Siempre esta inquietud sin propósito, sin sentido, sin consecuencia,
Siempre, siempre, siempre,
Esta angustia excesiva del espíritu por nada,
En la carretera de Sintra, o en la carretera del sueño, o en la carretera de la vida…

Maleable a mis movimientos subconscientes del volante,
Corre bajo mí conmigo el automóvil que me prestaron.
Sonrío del símbolo, al pensar en él, y al girar a la derecha.
En cuántas cosas que me prestaron yo sigo en el mundo
¡Cuántas cosas me prestaron conduzco como mías!
Cuanto me prestaron, ¡ay de mí!, ¡yo mismo soy!

A la derecha la casucha – sí, la casucha – junto a la carretera
A la derecha el campo abierto, con la luna a lo lejos.
El automóvil, que parecía hace poco darme libertad,
Es ahora una cosa donde estoy encerrado,
Que sólo domino si me incluyo en él, si él me incluye a mí.

A la izquierda allá atrás la casucha modesta, más que modesta.
La vida allí debe de ser feliz, sólo porque no es la mía.
Si alguien me ha visto desde la ventana de la casucha, soñará: aquel sí es feliz.
Tal vez para el niño que acecha por los cristales de la ventana del piso que está arriba.
Fui con el automóvil prestado como un sueño, una hada real.
Para la muchacha que miró, al escuchar el motor, por la ventana de la cocina
En la planta baja,
Soy algo así como el príncipe que hay en los corazones de las muchachas,
Y ella me habrá mirado de soslayo, por los cristales, hasta la curva donde me he perdí.
¿Dejaré sueños detrás de mí, o es el automóvil que los deja?
¿Yo, conductor del automóvil prestado, o el automóvil prestado que yo conduzco?

En la carretera de Sintra a la luz de la luna, en la tristeza, delante de los campos y de la noche,
Conduciendo el Chevrolet prestado desconsoladamente,
Me pierdo en la carretera futura, desaparezco en la distancia que alcanzo,
Y, en un deseo terrible, súbito, violento, inconcebible,
Acelero…
Pero mi corazón se quedó en el monte de piedras, del que me aparté al verlo sin verlo,
A la puerta de la casucha,
Mi corazón vacío,
Mi corazón insatisfecho,
Mi corazón más humano que yo, más exacto que la vida.
En la carretera de Sintra, sobre la medianoche, a la luz de la luna, al volante,
En la carretera de Sintra, que cansancio de la propia imaginación,
En la carretera de Sintra, cada vez más cerca de Sintra,
En la carretera de Sintra, cada vez menos cerca de mí…

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Foto de www.clubedocarroantigo.com.br  (edited by Luis Leal)

terça-feira, janeiro 20, 2015

Só as mãos verdadeiras escrevem...


"Só as mãos verdadeiras escrevem verdadeiros poemas. Não posso ver nenhuma diferença básica entre um aperto de mãos e um poema". - Paul Celan



segunda-feira, janeiro 19, 2015

Zeca e Ary... Sempre!

Há muitos anos atrás, com uma velha câmara, captei (editei) esta imagem de um video de homenagem a José Carlos Ary dos Santos. Ele e outro grande, o sempre Zeca!

quinta-feira, janeiro 15, 2015

Un río te espera (Eugénio de Andrade)


Sentido ético da existência

José Saramago, explicitamente ou implicitamente, recordava sempre os seus leitores para a necessidade do nosso tempo adotar um “sentido ético da existência”, parafraseando Fernando Gómez Aguilera “apoiado num axioma tão básico como universal: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.  

“Quando dizemos o bem e o mal… há uma série de pequenos satélites desses dois grandes planetas, que são a pequena bondade, a pequena maldade, a pequena inveja, a pequena dedicação… No fundo, é disso que é feita a vida das pessoas, ou seja, de fraquezas, de debilidades…”

José Saramago

Para os amantes das bicicletas






terça-feira, janeiro 13, 2015

O silêncio envelhecido numa sala com cheiro a fim

O silêncio envelhecido numa sala com cheiro a fim. Ressonância da minha adolescência, com a intromissão de uma televisão, de canto, à espera que alguém lhe ligasse para que fosse apagada da companhia que não fazia.

O silêncio interrompia-se com a vontade da dinâmica do animador sociocultural, formado para justificar certificados de tempo disponibilizado institucionalmente tal como os fins-de-semana, dias de efemérides ou sortes de feriados num calendário que acabará sempre sem meses e cuja página final despirá uma verdade como a modelo Pirelli que já não tinha roupa.

O silêncio ensinou-me o ser velho muito novo, ainda com bandas desenhadas a acompanhar o vazio da mochila. A mãe de um dos primeiros amores - que só passados tantos anos de bem-quereres damos conta que isso de numerais ordinais para a desordem relativa dos afectos, que não passa disso mesmo, amores- disse-me que havia algo envelhecido no meu ego adolescente, pareceu-me que com carinho e sem o despectivo hormonal que essa fase borbulhenta da vida acarreta. O presente talvez lhe dê razão.

Em silêncio, porque não havia como o derrotar, vi o fim e a morte próxima dos outros acompanhados pela longevidade dos meus. Aprendi a agarrar a memória em punhados de terra que tinham o som morto de madeira oca, mas que nos meus ouvidos ainda ecoam a pás pisadas por pés, cravadas na terra solta da cova que a ela retorna à lei da pazada.

Deus era presença habitual no meu bairro, um vizinho mais com quem havia que ter boas relações e muito, e bonito, respeitinho. Um vizinho que te podia emprestar ferramentas, fazer o nó da gravata ou se ia queixar aos teus pais se te apanhava a dizer caralhadas em voz alta.

Sempre me dei bem com a vizinhança, com deus, e talvez com o diabo que morava no quarteirão ao lado, havia que perguntar-lhe. Era educado, de sorriso arrumado na cara que cumprimentava e sentia que éramos todos do bairro. Mas não gostava do nariz metido bisbilhoteiro alheio a assuntos que nada tinha que ver com ele. Por isso nunca compreendi muito bem este vizinho omnipresente.

Houve uma época que o visitava com frequência na sua moradia, algo espartana mas com a sensibilidade à vista dos vitrais que me impressionava pela transcendência. Sempre me deixou entrar e eu lembrava-me da voz da minha mãe a dizer limpa bem os pés antes de abrir com as costas das mãos uma fila de fitas azuis e brancas penduradas nas suas próprias dúvidas. As minhas boas intenções de entrada não impediam o intrusismo ou altruísmo de alguma mosca. Como muitos mais passos e entradas feitas, hoje, vejo que nos preocupamos demasiado com solas limpas, imigração de varejeiras e temos demasiadas certezas.

O agora quase não fala com vizinhos, fala a circunstância noutra língua que emancipou um pensamento com vogais mais abertas e alegres. A educação do passado persegue-me nos bons modos, a afabilidade é mais que cara… Mais que os meus olhos, óculos de várias dioptrias azuis, que o cabelo fino claro na evidência de ficar grisalho ou na barba da preguiça com soberba por pensar-se com alguma erudição.

O agora. O silêncio que houve sempre. Deus em silêncio envelhecido que sinto com a televisão acesa para sentir-se acompanhado. Escrevo com a certeza de envelhecer ainda mais a minha adolescência.


Diário VI/I/MMXV 

segunda-feira, janeiro 12, 2015

Filho meu


Motivo – Cecília Meireles


Portraits of Daily Life II

Obrigado, Elsa, por estares nos nossos pequenos grandes momentos...

A Lady - Gomes Leal

Gomes Leal, numa caricatura de Bordalo Pinheiro



Aquela que me tem, agora, presa
Minha alma, meus sentidos, meus cuidados...
E me faz sonhar sonhos desmanchados,
É uma altiva e olímpica inglesa

Nunca tipo ideal de mais pureza
Vi nos góticos quadros mais prezados.
Seus doces olhos castos e velados
Têm um ar, infinito, de tristeza.

Tem uns gestos de deusa que caminha
Fonte grega, e um ar grande de Rainha,
E umas mãos como as ladies de Van Dyck...

Segue-a sempre um lacaio, e tristemente,
É por ela que eu morro, lentamente...
E ponho no bigode cosmétique.

António Gomes Leal



quarta-feira, janeiro 07, 2015

"Malos tiempos para el humor" - El Jueves

La portada dice todo, hoy después de un atentado terrorista al periódico satírico farancés "Charlie Hebdo", esta portada de la revista española análoga, "EL Jueves", ilustra muy bien lo que Berthold Brecht decía en plena época del nazismo. Hoy se cambiaron los "ismo(s)" pero siguen siendo malos tiempos para la libertad.

Estoy aquí despierto – Al Berto


terça-feira, janeiro 06, 2015

Paseando... (Badajoz 28.XII.MMXIV)

La Crisis (Nuno Júdice)

- No es caso para tener razón, dijo el racionalista.
- Tampoco es caso que se haga impresión, contestó el impresionista.
- Talvez sea caso para dudar, dijo el agnóstico.
- Es sí caso para creer, dijo el creyente.
- Si es caso es casual, comentó el materialista.

Y cuando el criado llegó a la mesa con el vino,
ya todos se estaban pegando.

- Yo había dicho que esto acababa mal, suspiró el pacifista.

in “El Fruto de la Gramática”, 2014 [traducción: Luis Leal]


Balada da bicicleta com asas (Rafael Alberti -1967)

1
Aos cinquenta anos, hoje, tenho uma bicicleta.
Muitos têm um iate
e muitos mais um automóvel
e há muitos que também têm já um avião.
Mas eu,
aos meus cinquenta anos exactos, tenho só uma bicicleta.

Escrevi e publiquei inumeráveis versos.
Quase todos falam do mar
e também dos bosques, os anjos e as planícies.
Cantei as guerras justificadas,
a paz e as revoluções.
Agora sou nada mais que um desterrado.
E a milhares de quilómetros do meu formoso país,
com um cachimbo curvo entre os lábios,
um caderno de folhas brancas e um lápis
rodo na minha bicicleta pelos bosques urbanos,
pelos caminhos ruidosos e ruas asfaltadas
e paro-me sempre junto a um rio,
a ver como de deita a tarde e com a noite
se perdem na água as primeiras estrelas.  

2
É roxa a minha bicicleta
e alegre e prateada como qualquer outra.
Mas quando gira o sol nas suas rodas velozes,
de cada um dos seus raios chovem faíscas
e então é como um antílope,
como um macho caprino, longo de chamas brancas,
ou um novilho de fogo que investe contra os azuis do dia.

3
Que nome lhe poria hoje, nesta manhã,
depois de me trazer,
e de me deixar sem dizer-me quase nada
ao pé destas margens de bambus e salgueiros
e olho-a adormecida, abraçada por ervas docemente,
sobre um tronco caído?

Rolieiro dos bosques.
Estrela voadora das fadas.
Teia de aranha acesa das sílfides.
Rosa dupla do vento.
Margarida bicorne dos prados.
Cabra feliz das ladeiras.
Maioral das lezírias.
Menina escapada da aurora.
Lua perdida.
Arcanjo Gabriel.
Chamá-la-ei com este frágil nome.
Porque são suas duas asas brancas que me levam
Anunciando-me o vento de todos os caminhos.

4
Eu sei que tem asas.
Que de noite sonha
em voz alta a brisa
de prata das suas rodas.

Eu sei que tem asas.
Que canta quando voa
adormecida, abrindo ao sonho
uma celeste senda.

Eu sei que tem asas.
Que voando me leva
por prados que não acabam
e mares que não começam.

Eu sei que tem asas.
Que o dia que ela queira,
os céus da ida
já nunca terão volta.

[Tradução: Luis Leal -2015]


segunda-feira, janeiro 05, 2015

Narciso – Samuel Chamorro

III
Narciso – Samuel Chamorro

Quando no teu ouvido
te seja dado o sinal
quando deixe de estranhar-te
quando não te apaixone
nem te deixe indiferente
enfrenta-te a ele
ao polido, ao espelho

mas deves de saber
que sempre
serás tu o primeiro
a
baixar
o
olhar    
[trad. Luis Leal]

Foto de: www.shutterstock.com (editet by Luis Leal)

Ventos de outono – José Hierro (1947)

Viemos, alegria! dar o vento
glória final às folhas douradas.
Arder, fundirem-se os montes em labaredas
crepusculares, trágicas e sangrentas.

Gira, ascende, enlouquece, pensamento.
Hoje dá o outono soltura às suas manadas.
Não sentes ao longe as suas pisadas?
Passam, deixando o campo amarelecido.

Por isto, por sentirmos ainda
música e vento e folhas, alegria!
Por a dor que nos tem cativos,

Pelo sangue que emana da ferida
alegria em nome da vida!
Somos alegres porque estamos vivos.

José Hierro (de “Alegria”, 1947) – [trad. Luis Leal]

Ex libris

“Ex-libris” -da expressão latina “ex libris meis”- expressa, literalmente, "dos livros de" ou "faz parte de meus livros", empregava-se para associar um livro a uma determinada pessoa ou a uma biblioteca específica. Este complemento circunstancial de origem (“ex + caso ablativo” que tive de recordar dos meus rudimentos de latim) indica que tal livro é "propriedade de" ou obra "da biblioteca de".
Geralmente trata-se de um carimbo, um selo personalizado, marca que escritura, sem notário, esse sentimento de propriedade, que não deixa de ser materialismo e que não deixa de ter peso na nossa bagagem, quase sempre agradável, exceto se várias mudanças te mostram o peso literal da crença que possuir muitos livros equivale a muita cultura. A realidade lombálgica trata sempre de nos pôr no nosso lugar.
Nunca tive nenhum “ex-libris” e confesso que a minha relação com o livro é de amor, de sensual toque, algo possessivo até, de interesse desinteressado, invasiva de assédios de notas a divagar a lápis. Mas com o passar dos dias mais aberta à partilha, a sair com hora e dia de regresso -definido pela nobreza literária de a quem se empresta- à estante de origem ou obséquio de estima porque sabemos que já nos deu tanto que é hora de mudar de residência e, quiçá, dar ainda mais.
A presença da Elsa, o seu presente partilhado comigo nesta época de Natal e Reis, foi carimbada no canto do meu bloco de notas que todos os dias escrevo… Embebo o carimbo num azul de tapete de tinta e marco a minha mais efémera propriedade, os meus livros, a minha biblioteca. Apenas desejo que não me absorva, que não se oculte no pó dos momentos ou que a vida me mude tanto ao ponto de deixar de acreditar que uma biblioteca tem de ser tanto pública como respeitada, pois um livro nunca pode ser único e exclusivo de uma criatura qualquer.
Que o ex-libris seja uma espécie de carimbo à moda de passaporte. É isso que penso fazer e tenho aprendido de grandes amigos.  

sábado, janeiro 03, 2015

Seja este o verso (Philip Larkin)

Eles foderam-te, a tua mãe e o teu pai.
Eles podiam não ter intenção disso,  mas foderam-te.
Eles encheram-te com as culpas que eles tinham
E juntaram algumas extra, só para ti.

Mas por sua vez eles também se foderam
Por tontos de chapéu e casacos antiquados
Que metade do tempo eram meloso-rígidos
E outra metade atirados às gargantas uns dos outros.

O homem impõe a miséria ao homem.
Aprofunda-se como um recife costeiro.
Escapa enquanto possas,
E não tenhas filhos teus.

[trad. Luis Leal]

Fiat 850 (Por aí vindo de Beja) - Foto do meu amigo Ricardo Isaá


Ruínas em ruínas


Esquece o que está feito (Philip Larkin)

Interromper o diário
Foi um choque para a memória,
Foi um começar em branco,

Já não se cicatriza
Por tais palavras, tais acções
Como um acordar do desconsolo.

Queria terminá-los,
Apressei o funeral
E relembrei

Como as guerras e os invernos
Perdidos atrás das janelas
Duma infância opaca.

E as páginas em branco?
Se alguma vez forem escritas
Que seja observando

Reincidências celestiais,
O dia que as flores brotam,
E quando os pássaros migram.

De “High Windows” (“Janelas Altas”), 1974 [Trad. Luis Leal]

Primeira noite (José Ángel Valente)

Empurra o coração,
parte-o, cega-o,
até que nasça nele
o poderoso vazio
do que nunca poderás nomear.

Sê, ao menos,
a sua eminência
e ossos partidos

da sua proximidade.
Que se faça noite. (Pedra,
nocturna pedra só.)

Alça-se então a súplica:
que a palavra seja somente verdade.


De “A Modo de Esperança” [Trad. Luis Leal]    

sexta-feira, janeiro 02, 2015

Certeza (Octavio Paz)

Se é real a luz branca
De este candeeiro, real
A mão que escreve, são reais
Os olhos que veem o escrito?

De uma palavra à outra
O que digo desvanece-se.
Eu sei que estou vivo
Entre dois parênteses.
de "Salamandra" [trad. Luis Leal]

quinta-feira, janeiro 01, 2015

Una cuestión de tiempo (Nuno Júdice) in "O Fruto da Gramática"

Del otro lado de la casa, los niños juegan con el tiempo
que corre para que ellos no jueguen con él. En la casa
al lado, un perro ve el tiempo a pasar y le ladra
para que él huya como si fuera un ladrón. En la calle, el mendigo
pide a toda la gente la limosna de un tiempo, y toda
la gente dice que no tiene tiempo para darle. En el café, pido
una taza de tiempo, corto y bastante fuerte
porque no tengo tiempo para dormir, pero
a mi lado hay quien pida una taza bastante llena
de tiempo para que el tiempo se tarde en beber. Hay
quien corra por falta de tiempo, y el tiempo va
detrás de él para cogerlo. En el metro, la chica
cruza el andén, despacio, como si tuviera más tiempo
que todos los que cuentan el tiempo para
que no se les descuente en el tiempo. Y cuando me preguntan
si tengo tiempo, miro el reloj, como si él
estuviera lleno de tiempo, y pido que quiten de dentro
de él todo el tiempo, y que lo vacíen hasta el último
segundo, para que me quede con tiempo para
que vea cuanto tiempo ya pasó.
[Traducción: Luis Leal]

Apaixonada por outonos e entardeceres - Maria Victoria Moreno

Apaixonada por outonos e entardeceres
Peregrina nas pastagens da vida
Procura-te no temor do anoiteceres
Fragâncias velhas de ilusões e amores.

Sorriram para ti todas as flores,
Fez-se a árvore na tua ferida
E, por claras estrelas, a alma adormecida
Foi desde o abismo aos altos miradouros.

Inefáveis paisagens de harmonia
Abriram-se ante ti como um presente
Em volutas de lua opalescente.

Desposaram-se em suave melodia
As pétalas de luz, a paz do relento
Com teu corpo, já lírio evanescente.

Maria Victoria Moreno (trad. Luis Leal)

Maria Victoria Moreno, nascida em 1939 em Valencia de Alcántara e finada em Pontevedra no ano de 2005, foi uma poetisa e escritora que me foi dada a conhecer por José Antonio Santiago e que espero poder vir a conhecer melhor e, quem sabe, traduzir mais algumas das suas palavras.

V - Um insecto (Samuel Chamorro)

V
Um insecto
agónico, no vidro:
limite impossível.

Um insecto
absorto, no espelho:
impossível limite.

Samuel Chamorro (trad. Luis Leal)

(Foto de: http://devotions4women.com/2012/06/11/the-bug-on-my-window/ - Edited by Luis Leal)

"Que só sejam beijos o que nos tape a boca"/"Qué sólo sean besos lo que nos tape la boca".


Novos sóis