O António não sabe que já trabalhei para ele. Não sabe nem imagina de quem seriam estas palavras caso decidisse lê-las, ou melhor, as encontrasse por aí. Mas é verdade, já trabalhei para este senhor da literatura e das crónicas que me fazem comprar a revista “Visão” com um entusiasmo que sinto por poucas coisas.
Já lá vão uns anos desde que contribui para que o António pudesse estar na minha universidade, rodeado de lambe-botas e académicos que confundem admiração literária com submissão, mas quem era eu para poder “armar-me aos cucos”? Apenas já tinha pêlos nas pernas, sim isso já tinha.
Corri os corredores do Lidl, com o meu careca professor de literatura comparada que dava notas pelos decotes e pela copa que sustem o ilustre peito de cada aluno, menos mal que já tinha pêlos nas pernas e que, para pertencente ao género masculino, tinha os peitorais minimamente desenvolvidos para aprovar aos seus olhos… Nesses corredores, guiando as quatro rodas teimosas de um carrinho alugado por 0’50€, lá fui recolhendo aperitivos genéricos com cheiro de Ducados à mistura (o careca gostava de tabaco negro), será que comeste algum? Eu comi. Faz bem aos pêlos das pernas, dá-lhe brilho.
Achaste despropositada e estúpida a pergunta do Hugo (boa gente o Hugo, mas decidiu que deveria utilizar o Becket para brilhar com a pergunta), se já tinhas encontrado o teu Godot. Se, por acaso o encontrei, devia ir bastante distraído como é costume.
Falaste mal do Saramago, para variar, que a sua literatura servia para “masturbar os seus leitores”. Quando disseste isso, com pinta de escritor maldito, como gostas, sentiste-te bem, vê-se nos olhos. Também não gosto do tipo (lembro-me sempre de um comunismo romântico e fico triste na minha cada vez mais alergia política), no entanto li algumas coisas mas não senti nada no meu prepúcio. A mim nunca me bateu nenhuma, mas ainda não desisti. Tenho para ali a “Viagem do Elefante” e pode ser que me safe. Ajuda a descontrair e fico com os pêlos das pernas arrepiados, em ponta.
Ó António, disseste que autógrafos só para quem tinha as pernas bonitas. Fiquei triste. Estava a gostar ver-te representar tão bem esse papel, és bom actor, não és tão freak como queres que pensem que és. Só pensava que gostaria de ter algo da tua caligrafia naquele exemplar da minha prima Paula de “Não entres tão depressa naquela noite fria”, mas não tinha as pernas bonitas, tinha e tenho pêlos.
Com a idade perdes o medo ao ridículo e, sinceramente no meio daqueles graxistas a quem eu não sei se fazes caso (pois dizes que te dá igual o Nobel, mas a mim não me enganas! Até eu o queria, nem que fosse para poder estar na mesma lista que o Hemingway) e te sentes próximo deles. Decidi aproximar-me da tua antipática mesa, com que tantas vezes queres manter afastado o mundo, e mostrei-te as minhas pernas, os meus pêlos, na esperança que até fossem dignas da tua caligrafia. Esboçaste um sorriso, diferente dos que vi durante aquele acto de homenagem em que se falava de coisas que passam ao lado da maior parte da humanidade. Esboçaste um sorriso que me fez sentir como um amigo teu com quem não te importas de partilhar o que para aí vais escrevendo.
Desde esse dia, sei que se tenho pêlos nas pernas serão para alguma coisa, nem que seja para mostrá-los ao António e ficarem por aí, ao longo da depilação dos dias que passam… e da companhia que me vais fazendo.
Sem comentários:
Enviar um comentário