quinta-feira, outubro 31, 2013

no dia de todos os mortos

(por quem não me esqueci)

inteiriço e frio nasce o sol no dia de todos os mortos.
com um caminhar apagado
passo.
o vendedor arruma consolador
cada flor na bancada
(ordenada pelas mais tristes sortes)
margaridas, crisântemos, cravos, lírios
plantas canónicas sem santa sé.
umas outras tantas, pagãs, que não perecem.
plástico que impede o pranto das velas
e o solidificar das lágrimas,
como as salientes veias das mãos de quem as acende.
passo
à frente de gente que vela finados
e a porta do cemitério (sempre aberta) fechada a cadeados.
Eu passo.
(horário das oito às dezasseis, exceto feriados).
o olhar do vendedor e o meu cumprimentam-se num atalho
(conhecemo-nos e os nossos olhares também)
nunca lhe comprei nenhuma flor,
(para a dor tenho um jardim secreto)
e eu passo comigo oculto em reminiscências.
minhas.
dos meus.
dos que não me serão omitidos.
(já eu não sei se terei flores de época ou de molde perene de poliuretano
- hoje por hoje não quero- amanhã quem sabe?)
afasto-me, mas passo.
deixo os primeiros bafos a cristalizarem o ar
na breve chegada de mais um inverno.
passo e aparto-me do constrangimento da memória
aproveito a porta aberta aos cadeados do corpo
e a entreaberta janela curiosa do espírito.
vou fugindo enquanto posso.


MMXIII

segunda-feira, outubro 28, 2013

Maria dos mil sorrisos (Vitorino)



Havia muitos anos que não escutava esta beleza do amigo Vitorino. Dei por acaso com ela e que saudades, meu amigo!


MARIA DOS MIL SORRISOS

Maria dos mil sorrisos
Alma ao largo sem avisos
Coração a dar a dar

Lua nova em céu mortiço
te proteja do enguiço
e das fúrias d´além mar

Na rua onde tu passas
Mandei embora as desgraças
Num copinho de licor

No mistério da tua porta
encontrei morada certa
P´ra dar de beber à dor

Se me deres o teu retrato
Dou-te o meu lenço bordado
Com a flor do laranjal

Anda agora muito em moda
Trança negra rubra rosa
Rebuçados no amar

Maria não vás ao beco
Está cheio de figas e medos
Vê lá bem os meus cuidados

Dos teus olhos estou lembrado
Num dia no Bairro Alto
Seus amores tão delicados



domingo, outubro 27, 2013

.o voraz mercado

o voraz mercado
é um substantivo, insubstancial e selvagem,
pelos mortais concebido
a quem muita gente não lhe interessa que seja domado.

não é um cataclismo natural,
nem divina vontade.
é apenas plutocracia circunstancial,
capitalismo anti-social
sem senso comum,
apenas ânimo de numérico resultado,
para tragédia do necessitado
e abundância na algibeira que enche
de gente inconsciente que
num mundo onde não caiam umas migalhas para o pobre,
não há condomínio fechado que os aliene do cheiro a podre.

o metano é um gás que não tem nada a perder.
da imoral flatulência e verborreia a que se está habituado
brota a violência e o caos indiscriminado.
por isso, desacautelado mercado,

cuidado.

à parede encostada a puta segura um intervalo

à parede encostada a puta segura um intervalo, contado em milésimos de fios de tabaco consumido enrolado em anéis queimados de papel a cada cilíndrica passa.

entre lábios secos de amor o cigarro esvai-se em ofegar cansado lunar  e em saliva de ladrilho com restos de esperma sem nome.

antevê-se de perfil a lingerie de uma lua solitária que apenas o deixa de ser quando alguém que passa,
paga. 


Lienzo de Isabel Diaz Gómez - “naipe o mujer fumando” -1975

sábado, outubro 26, 2013

Apresentação da Noite - Al Berto

Deixei o MEDO para o dia e apresentaste-me a noite. Falamos com a ponta dos dedos. Não sei se sou teu. Não o seberás tu?


Mata-me

Mata-me com o teu sorriso,
certo e luzidio.
Mata-me com o teu olhar,
terno e profundo.
Mata-me com o teu perfume,
doce e mordaz.
Mata-me com o teu amor
que me põe louco
e pouco a pouco
meto a tua corda
em volta do meu pescoço.


1996 
(Para uma aula qualquer em que tive coragem de ler algo adolescente por mim escrito. Se bem me lembro para a aula do meu professor Manuel Piçarra, mas não me lembro em que pensava quando o escrevi… ou em quem pensava. Talvez em ninguém em especial, ou não. A adolescência tem dessas coisas. )

quarta-feira, outubro 23, 2013

Elegía a la fotografía de una muchacha desconocida (José María Valverde)



Elegía a la fotografía de una muchacha desconocida

Tendrías quince años cuando quedaste inmóvil
aquí, en la cartulina de suavísima niebla.

Te vuelves a mirarnos -con unos ojos negros,
dulces, hondos y frescos como grutas-
desde el escorzo grácil de tu cuerpo.
Dime, ¿de dónde viene tu mirada?
Habla de cosas dulces y pequeñas,
de tu vida, tu casa,
tu piso, bosque umbroso de sueños y recuerdos,
-tú eres la cierva blanca en su espesura-,
el balcón donde ves pasar las nubes,
los viejos y borrosos retratos de la sala,
las butacas de verde terciopelo gastado,
el piano, negro, mudo, con ecos, -como un pozo-,
y el bullir y las voces, apagadas
y vagas, de la sombra en los rincones...
(¡Ay tus sueños de niña!
¡Cómo están en el fondo de tus ojos
muriendo dulcemente!
Estrenabas la vida;
aquel día morías y nacías.
Y aquí, en este retrato,
frente al blanco camino,
dejaste tu niñez en la mirada.)
Esa luz que ha quedado contigo prisionera
en tu clara laguna,
es la luz que conservan
las cosas de la abuela puestas en la vitrina.

Ya te habrás olvidado. ¡Qué muerta estás aquí!
¿Dónde estarás ahora?
...Días, calles, olvidos, amores y tristezas,
relojes, calendarios, trajes, cuerpos, ventanas,
tejas, lluvias, tarjetas, zapatos ya gastados,
tranvías, ruedas, nubes, sueños, tardes, mañanas,
inviernos y veranos, rosas secas, revistas,
muertos, libros, silencios, músicas, risas, llantos,
arroyos y caminos, montañas, bosques, mares,
y un montón de minutos iguales como arenas
me separan de ti.
Pero en mi orilla queda tu retrato olvidado.

...Tendrías quince años. Yo, entonces, estaría
paseando mis sueños de niño no sé dónde.
¿Dónde estarás ahora?
Oh muchahca lejana que quizá hubiera amado
de no ser por el tiempo, el tiempo... siempre el tiempo...

José María Valverde

Publicada por primera vez en «Entregas de Poesía» n° 14, 1945

Más poemas de Valverde.

segunda-feira, outubro 21, 2013

ORACIÓN POR NOSOTROS LOS POETAS - José Maria Valverde

Poeta y traductor extremeño José María Valverde (1926-1996), destaca en su obra su profundo humanismo de raíz cristiana y el rigor de su lenguaje poético, para mí de incomparable belleza con ecos de clasicismo poco ortodoxo. 
Un buen hallazgo en las ironías de la vida y en los fondos de la biblioteca de mi centro. Su oración hace parte del catecismo de mi religión. 
ORACIÓN POR NOSOTROS LOS POETAS
Señor, ¿qué nos darás en premio a los poetas?
Mira, nada tenemos, ni aun nuestra propia vida;
somos los mensajeros de algo que no entendemos.
Nuestro cuerpo lo quema una llama celeste;
si miramos, es sólo para verterlo en voz.
No podemos coger ni la flor de un vallado
para que sea nuestra y nada más que nuestra,
ni tendernos tranquilos en medio de las cosas,
sin pensar, a gozarlas en su presencia sólo.
Nunca sabremos cómo son de verdad las tardes,
libre de nuestra angustia su desnuda belleza;
jamás conoceremos lo que es una mujer
en sus profundos bosques donde hay que entrar callado.
Tú no nos das el mundo para que lo gocemos,
Tú nos lo entregas para que lo hagamos palabra.
Y después que la tierra tiene voz por nosotros
nos quedamos sin ella, con sólo el alma grande…
Ya ves que por nosotros es sonora la vida,
igual que por las piedras lo es el cristal del río.
Tú no has hecho tu obra para hundirla en silencio,
en el silencio huyente de la gente afanosa;
para vivirla sólo, sin pararse a mirarla…
Por eso nos has puesto a un lado del camino
con el único oficio de gritar asombrados.
En nosotros descansa la prisa de los hombres.
Porque, si no existiéramos, ¿para qué tantas cosas
inútiles y bellas como Dios ha creado,
tantos ocasos rojos, y tanto árbol sin fruta,
y tanta flor, y tanto pájaro vagabundo?
Solamente nosotros sentimos tu regalo
y te lo agradecemos en éxtasis de gritos.
Tú sonríes, Señor, sintiéndote pagado
con nuestro aplastamiento de asombro y maravilla.
Esto que nos exalta sólo puede ser tuyo.
Sólo quien nos ha hecho puede así destruirnos
en brazos de una llama tan cruel y magnífica.
… Tú que cuidas los pájaros que dicen tu mensaje,
guarda en la muerte nuestros cansados corazones;
dales paz, esa paz que en vida les negaste,
bórrales el doliente pensamiento sin tregua.
Tú nos darás en Ti el Todo que buscamos;
nos darás a nosotros mismos, pues te tendremos
para nosotros solos, y no para cantarte.
Hombre de Dios, 1945.

domingo, outubro 20, 2013

De repente acordas

De repente acordas
E um filho salta-te para a cama.

De repente assentes
O absurdo nascer do dia a galgar
Entre lençóis, sonhos e despertares recentes.

De repente sentes,
Num qualquer domingo,
Que, no mundo, curiosamente,
Pudeste ter um descendente.

De repente, olha-lo de frente,
Paralelo a ti, no ar esticado dos teus braços os primeiros quilos de sorrisos
A aprenderam sílabas, e depois, palavras que tudo poderão abortar
Se um dia quiserem adivinhar que:
“De repente se acorda e um filho nos salta para a cama”.
20/X/2013

O Irreal Quotidiano (José Gomes Ferreira)

"Na semana passada, certo inglês, de passagem por Lisboa, quase me implorou, farto do Idêntico em toda a parte:

— Mostre-me qualquer coisa que não exista noutro país. Há?

Meditei meio segundo e respondi, telegráfico:

— Há. «Cabarets».

O senhor estrangeiro encolheu os ombros em trejeito de desdém. Mas eu teimei:

— Sim. «Cabarets» …«Cabarets» estranhos, ao contrário, de pernas para o ar, sem «jazz» nem pretos de dentes brancos a soprarem gargalhadas nos saxofones. «Cabarets» … do avesso em que não se encontram mulheres de riso fatal a dançarem ao som macabro do estalar das rolhas das garrafas de champanhe. Autênticas Casas de Sofrer – onde se servem indigestões de mariscos e bebidas tristíssimas – construídas de propósito para pessoas, com fumos de luto nas mangas, que pretendem chorar em público sem medo do ridículo. «Cabarets» – válvulas-de-escape, em suma…Venha comigo e verá.

Tomámos um táxi, descemos uma viela sonâmbula, abrimos a porta de vidro em frente e pisámos com reverência o veludo do tapete de cascas de tremoços do Salão de Fados em que duas dezenas de seres, palidamente diluídos no rumor das vozes em surdina, se preparavam para sofrer em comum.

Ambiente de bicos de pés. Os criados deslizavam, irreais, com sapatos fantasmas, para não perturbarem a dor dos clientes que, de cabeça pesada entre as mãos, parafusavam neste tema de meditação irresolúvel: «A vida é uma chatice!» (…)

Ia começar a função. No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarrista que entraram pouco depois em ritmo de enterro. O cantor também não tardou a surgir no catafalco, mancha negra dos cabelos até aos sapatos, solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia-noite a noivas mortas…

Houve um sussurro espectral. Os ouvintes ajeitaram-se o melhor possível nos assentos para sofrerem com comodidade".





domingo, outubro 13, 2013

A ti, José Maria Valverde

Para ti os poetas eram sacerdotes da palavra,
Almas a jeito que Deus as escolhesse a dedo,
Para viverem o purgatório na terra,
O purgatório no purgatório
E o inferno na alma...

Tudo porque, José Maria,
Homem de Deus, da santíssima trindade e da tua e sua mãe,
Existe a beleza e o coração do poeta, ao contráriomdo que canta a canção,
É pequeno e almeja guardar a beleza como outro qualquer coração.

Não existe nada de santo nisso. Apenas falta de espaço.
O poeta tem um mini, um citadino e o homem alheio a verso, rimas e compassos
Tem uma enorme mala que dá perfeitamente para trazer as compras do mês e ainda levar a bicicleta no tejadilho.
Essa, José Maria, da terra nossa comum, é "la enseñanza de la edad".

Passagem por sublinhar, sublimar.

Passei pela vida sem usar bloco de notas.
Nunca tive um instante de instantânea,
Nem obturei momentos kodak, polaroid, agfa ou fugi
De ser emoldurado para a posteridade de parede,
Ou da orgulhosa camilha da avó?

Nunca me enrruguei ou amareleci na estante. Amanheci com o sol
Que talvez pudessem ser amarelo fluorescente para sublinhar, sublimar,
Que a vida, tal como o rei dos astros, também tem nascente e poente.

Nunca me dobrei, a não ser a esquina de página,
Para marcar um encontro com um amigo, com um amor,
Com a dor de costas que teima em encurvar-te...
A desumanizar-te com o afã do sucesso da máquina.

Deixei, ao menos, que me metessem recortes de jornais,
Artigos e matérias inúteis que me engordaram como o arroz doce que nunca é demais...
Não estou riscado, ainda tenho o papel pegado, como todo o bom livro que não foi profanado
Mas anda de lado para lado, a presumir deixar algum legado,
Esse sou eu. Fui eu.
Estou enterrado.
Pouco vivi.
Mas abracei
E fui abraçado.

sábado, outubro 12, 2013

Velho Colono (Rui Knopfli)

Parque dos Namorados, em Maputo
 (Fotografia no blogue cabeça no ar ou ar na cabeça)


Velho Colono

Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo,
certamente. E, nas sombras mais densas
e frescas, namorados que se beijam
e se acariciam febrilmente. E crianças
rolando na relva e rindo tontamente.

Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.

Rui Knopfli 



quinta-feira, outubro 03, 2013