sábado, maio 24, 2014

O Pássaro

[Com herança de caçador que tenho, com as armas que sei manejar, este tentei salvá-lo. 
Tentei mesmo. Talvez tivesse sido melhor ter a coragem de lhe dar um tiro.]


O Pássaro

O pássaro entrou na biblioteca
Fugido da incerteza da natureza do mês de maio.
Da intempérie abrigou-se pelas várias estantes,
Adoptado ao cuidado dum livro,
Antigo de história e de fotografias,
Do seu exterior convicto de biologia.

Passaram-se os dias e a ave viu
O sol raiar nos atris extremos de oriente.
Olhou ao seu redor. De Baroja despediu-se com um pio
Agradecido. Reconheceu a León Felipe a realeza.
Súbdito de versos e orações de caminhante,
Fizera ninho num cantinho dedicado à lira.

E como se Deus o quisera, vislumbrou o horizonte
Nascente. A poente ficava o legado dos seus mestres.
Ligeiro voou, consolado que voava abrigado
Pelo bater das páginas dum outrora silencioso albergue.

Voou, voou. De árvores apenas via o seu papel
Duma janela transparente de barreira entre ele
E os seus.

As penas livres de movimento, mas de liberdade barrada por um vidro.
Acalmou suas penas, voou, do desânimo à confiança, à secção dos atlas
E encontrou na geografia um erro de ortografia e não de cartografia.

Pôs para trás das asas o fascínio das prateleiras que o abrigaram.
Pousou na realidade de madeira, aceitou o cansaço escapular,
Do regaço escapou-se ânimo e esperança. O toque final na asa
Deu-o ao aceitar o desespero, ignorando que o sofrimento e a dor
Não são o verdadeiro predador.

Caçador de si, esquivou chumbadas biográficas
E repousou, uma última vez, numa lombada de ficção.
Aterrou o olhar que ainda sobrevoava o corpo,
No outro lado, no cantinho onde descobrira naturalmente a poesia.

Um piar, sem lírica, expiou com pia violência
A sua alma aos campos da sua criação,
Dos seus pais, dos rios dos seus amores,
Ao vento, no qual ainda educou a voar seus filhos.

Desviveu, cansado do voar de tomo em tomo.
A direcção da saída camuflada estava. Desarrumada
Por uma pilha de livros. Morreu. Encontrei o seu cadáver
Na prateleira quando procurava “Os Jogos da Fome”.


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