quinta-feira, junho 26, 2014

Há sinceridade nos sentidos. O olfacto tem memória e existe uma história e geografia dos cheiros.

A carrinha do centro de dia era velha e cheirava a velho. Uma Bedford que o Sr. Silva conduzia a meias com tantos outros voluntários do volante que dava voltas à cidade de Évora e arredores para depositar a noite de vários idosos que ali àquela instituição, por tantos motivos, foram parar. Houve outras carrinhas, mas é desta que eu particularmente me lembro, com ar condicionado pelo exterior, mais ainda quando se tem pouco, mais ou menos, de catorze anos.
Há um cheiro a velho nas pessoas. Sei que é uma frase cruel para as sensibilidades assépticas do século XXI, em que a juventude está nas teclas de um smartphone, num deslizar digital de uma rede social ou na imortalidade de uma selfie. Velho. Adjetivo que caracteriza a acumulação de tempo.
Havia um cheiro de acumulação de tempo naquele sítio onde passei tantas horas, por tantos motivos que iam para além do facto de a minha mãe lá trabalhar. Nunca me desagradou, e reconheço que muitas vezes fui obrigado a ir ajudar, quer por imposição familiar, quer por obrigação de dar o exemplo ao receber os trocos dos programas ocupacionais do IPJ. Eram 15 contos e com eles abri uma conta, comprei roupa da moda, ténis de marca registada e bandas desenhadas. Era exigência familiar, maternal, que, em passados imperfeitos, conjugados com circunstâncias de dias que já passaram, hoje agradeço.
Gosto do cheiro do tempo. Gosto do cheiro a velho. Conheci-o primeiro e reconheci-lhe valor quando ainda quase não deixara os cueiros, ou entrara levemente na idade do suor adolescente, do “bacalhau sueco”, como a minha irmã gostava de dizer, ou do olor de quem recentemente descobriu os trabalhos manuais com a ajuda de páginas concretas de revistas ou de cassetes de vídeo gastas sítios específicos.
Há sinceridade nos sentidos. O olfacto tem memória e existe uma história e geografia dos cheiros. Hoje voltei a levantar-me cedo, antes de ir para a escola, fui fazer a volta da carrinha do centro. Quem me esperava era o Ti Veladas, o motorista de turno.
Pelo caminho, com a mochila, cheia de livros e com uma t-shirt para pôr no cacifo, entre mim e o Ti Veladas, fui buscar o Ti Zé da Burra que se riu velhaco de mim e me perguntou se já fodia. A Ida, que catrapiscou o Coelho porque tem um mata-velhos que a levará aos sonhos de passeios e noites de companhia lá para os lados de S. José da Ponte. O Macarrão que me mostrou pela primeira vez o que é ter um AVC. O Ti Manel, cuja filha me costurou uma alva para que me sentisse, ou ela, mais perto de deus. A mãe do Malato que me confessou nunca dera um peido na vida, porque provavelmente o marido deu-os todos por ela, evitando-se assim as suspeitas. E o Sr. António Campaniço. O manco socialista que idolatra o Dr. Mário Soares, que me ensinou, com espectativas de que eu viesse a ser um jovem mais culto, a não dar os meus sentimentos a ninguém, porque são meus, e sim o pêsame de que se chegou ao final da vida. Já cá não está, a mulher morreu sem filhos e ele deve ter tido vaga no Barahona. Terá ficado com a convicção do meu socialismo. Espero que a tenha. Merece-a. Não sou socialista, mas sou um presente que o sente e o guardo para mim, como aquelas lágrimas que derramou quando os nazis ocuparam Paris.
Já estão todos no centro. Ajudei-os a descerem da carrinha, mãos nas mãos, apoiados nos meus antebraços, uma gratidão acompanhada de um sorriso que me tocou com a epiderme enrugada. Já estão todos entregues.
Vou para a escola. Alguma coisa mudou. Já não estou sentado ao lado da Tânia, nem da Carla. Caio em mim e sou professor. Abrimos os livros, escrevemos a giz a data, uno um fio condutor com a aula passada. (Os meus alunos nunca saberão que há um fio que me une a uma carrinha Bedford, a um centro de dia, às voltas e voltas num novelo de vidas velhas, hoje mortas, a um cheiro que não é nostálgico, nem saudoso. Duvido que eles queiram saber. Para eles, 34 anos é um número que vai para velho e o tempo não é coisa que os preocupe no seu tempo).
Apago a giz a data. Volto da escola e faço a volta de regresso a casa. Só tenho um passageiro e não vamos de Bedford. Vamos a pé. Tem três anos e é meu filho. Ainda cheira e bebé. Ainda não acumulou tempo suficiente. Qualquer dia apanhamos a carrinha...

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