quinta-feira, setembro 24, 2015

Crónica dum quisto simpático e dum sinal filha da puta

Estou na sala de espera acompanhado por nove pessoas e por um quisto simpático e um sinal filha da puta. Tenho marcado, para dentro de momentos, uma entrada no bloco operatório onde à navalhada de bisturi me vão extirpar este vulto de gordura e esta anormalidade cutânea.

É verdade, o quisto até é simpático. Redondinho, um berlinde infantil debaixo da minha pele. Já o sinal de simpático não tem nada. Ao chamá-lo assim, descendente de meretriz, pode parecer que estou a insultar a minha mãe. O sinal e eu, por enquanto, somos o mesmo. A mesma carne, mas de mãe diferente.

O médico disse-me que o melhor é separar estes siameses solares, uma vez que, se há que tirar um elemento sebáceo do meu corpo, não se lá há-de deixar um suástico. E não é que o sinal, além de filha da puta, tem no seu interior umas raias a renderem-lhe formas hitlerianas! Além desses tentáculos, alastra-se pelo Lebensraum das minhas costas como o terceiro Reich marchou pela Europa fora.
Chamaram outro paciente, mas ainda aqui estou.

Há coisas enquistadas em nós. Coisas que nos fazem ser quem somos. Reconheço que não é uma imagem agradável a olho-nu, esse do dia-a-dia, por vezes munido de óculos, que pouco pensa, mas que deixa passar de imediato, sem filtrar, imagens para o córtex cerebral. Como o quisto da teimosia, por exemplo. Invisível se não o quero ver. Por vezes maligno. Parece-me difícil que mo extirpem alguma vez. Tende a aumentar com a idade. Haverá uns quantos, lá em casa, especialmente, que até gostavam que existisse bisturi para isso.

O perigo das células cancerígenas, está em todos nós. Não me atrevo a falar, nem a escrever sobre isso. Acho indigno, uma pessoa como eu, só porque tem um sinal suspeito, possa opinar, o que quer que seja, sobre algo tão sério como uma doença oncológica. Escrevo este parágrafo com o respeito e a esperança de nunca sobre isso escrever.

(Foda-se! Acabo de pontuar isto e não é que me vem dar os bons dias o capelão!)

Enfim, ainda cá estamos os três. A simpática tumoração redonda e a epiderme suástica, o sinal das SS. Encontram-se equidistantes, mais ou menos seis centímetros, três para cada lado, em extremos opostos entre a minha coluna vertebral e as minhas costeletas com pouca chicha.

Enquistados e equidistantes no cabedal do costado. A ironia da biologia em tantas coisas do que somos.

O médico chamou uma família. Espero que a recuperação deste paciente seja tão agradável como esta espera que me permite divagar sentado numa sala de estar. Esperar com pouco medo não custa. Esperar e poder ter um médico argentino de origem calabresa, o partisano de conversa agradável, que não te exige genuflexão perante a sua profissão para que te dêem um benção de saúde ou de doença também ajuda.

Por mais que a medicina evolua, há gente que continuará com vultos enquistados, tumores simpáticos, suaves e discretos, e outros envergonhados, cancros de maligna envergadura e nomenclatura.
Sei que há gente que espera em banho-maria de pavor, desesperam nesta mesma sala, ou que nunca poderão desesperar num sala de espera como esta. Privada e paga com o dinheiro público.

Sei que o eu hipócrita até poderia ser hipocondríaco. Tinha seguro para isso.

E os que não têm saúde para isso? E os que nada lhes é seguro?

Tudo é tão certo quando se tem saúde. Conjugam-se perfeitamente três tempos verbais: presente, passado e futuro.

Lembro-me de quando ia com a minha mãe ao centro de saúde, lingrinhas e anémico. O meu avô tinha dos maiores gestos de amor que se pode ter por alguém. Madrugava de amor. Não como talvez madrugara para namorar na sua juventude, para cortejar a minha avó ou nas suas madrugadas de devoção à caça. Madrugava para que o seu neto pudesse ser atendido por um médico. Antes das seis da manhã, a pé, já lá estava, sendo o melhor seguro que pude ter, por isso hoje estou aqui sem vestígios de anemia e com um índice de massa corporal normal.

Nós chegávamos também cedo. Eu com os meus pais. Quase sempre a minha mãe, cujos pais tanto a ajudaram a ser mãe. O meu avô dava-nos a vez para que a Drª. Emília, a quem nunca nos ajoelhámos por ser um ser humano fiel à humanidade e uma médica devota ao seu padroeiro Hipócrates, nos examinasse, baixinha e com vestígios de nicotina nos dedos.

Cuidávamos uns dos outros. Não haviam seguros e a segurança social chegava onde chegava, num Portugal que tinha de madrugar para ter o direito de ser atendido.

Hoje sei que tudo está pior. Aquelas madrugadas da minha infância de falso anémico ainda cheiravam a Abril. Madrugar já não garante nada e Deus tampouco ajuda à tarefa, de tão atarefado que está lá pela paróquia e pela sopa dos pobres à beira da estrada.

Tenho dois quistos tipo Jekyll e Hyde nas costas, mas o país onde nasci tem um tumor de maioria numa assembleia assimétrica de representatividade. Tumorizado numa costa e afectando o corpo do português sem direitos e seguro.

Não sei se a oncologia poderia da nome a esta tumorização, distante, selectiva, imune à terapia da empatia. Alastram-se metástases idênticas em toda a península, em toda a Europa…

Ultimamente tem havido algumas hipóteses de operação, podemos operar à base de bisturi de eleições.

Espero que me chamem em breve.

Já estou de touca, bata e pantufas verde cirurgia, iguais às do nervosismo do parto dos meus filhos. Estou no bloco, mas ainda tenho acesso ao bloco e à caneta. Entre isto e a oficina, há a diferença de quem vai à revisão, mudar as pastilhas e os discos, pintar ou bater chapa, ser eu. Gosto mais do cheiro a óleo, a motores lubrificados, porcas e parafusos, do que deste éter anestésico. Gosto mais do desperdício de limpar os dedos negros de trabalho do que tanta comprensa que há por aqui e do que o bip-bip cardíaco do outro lado da porta. Vou deixar de escrever.

Anestesia. Lâmina rasgada sem dor. Biopsia feita. Pontos dados. Não sei se nas artes cirúrgicas se usa um nó como na costura.

A enfermeira acompanha-me à porta e pergunta-me se vim sozinho, não vá sentir-me tonto com o efeito ambulatório da anestesia. Disse-lhe que vim acompanhado, mas que volto a casa sozinho.

Ela olhou-me com o desejo de que alguém me ajude caso me desmaie no meio da rua. Já eu envergonhei-me de lhe pedir que me deixasse despedir do quisto simpático e do sinal filha da puta, agora sozinhos, como eu, dentro dum frasquinho.    

segunda-feira, setembro 21, 2015

Êxtase (Miguel Torga)




ÊXTASE

Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos,
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!

Miguel Torga





sábado, setembro 19, 2015

No banco de jardim (da mais pequena capital de distrito de Portugal)



A espera pela minha mulher levou-nos, ao meu filho e a mim, primeiro ao quiosque debaixo do plátano, depois ao chinês dos soldadinhos de plástico e finalmente à sombra dum banco de jardim.

O granito agradavelmente fresco do banco, a relva verde esperançosa de Setembro à qual, felizmente, não tem faltado regas e aparas, compunham o que ia ser uma leitura rápida de resumo semanal e o tirocínio dos soldadinhos mobilizados para a brincadeira fora do saco de plástico.

Sempre gostei dos bancos de jardim por ali estarem a contemplar uma ideia de acesso igualitário a qualquer cidadão com necessidade de arejar o espírito abafado pela urbe ou descansar as pernas do ritmo rápido da cidade. Nenhum dos casos se adapta ao interior português onde me encontrava.

Li a primeira crónica por devoção a ALA. Depois caí na distracção de intrometer-me em pensamento na vida daqueles que passam.

Logo os primeiros, um grupo de agarrados. Dois eles e uma ela. Bicicletas velhas, enferrujadas de supermercado e as camisolas de alças, dos Lakers, com o boné, de lado, a condizer em delinquência de indumentária com tatuagens verdadeiras, feitas com agulha por esterilizar e marcadas na pele com aquele definitivo azul bic. O trio maravilha de veias salientes numa magreza dependente, evidentemente, de estupefacientes.

O mais assustador dos três, aquele que diríamos que esteve de cana, sorriu-me sem os dentes da frente e, quando mais tarde por ele passei a empurrar o carrinho de bebé, olhou para o meu outro filho com um olhar de quem sabe o que é cuidar de alguém para sempre.

Segunda, terceiro, quarta. Boa tarde. Sexto. Rosto no chão tímido. Oitava. Passos em direcção a algo. Passos estudantes. Pressa em pés que têm medo de não chegarem a horas ao atendimento do funcionalismo público. Décimo primeiro.

O duo de idosas. Lentas. Carinho infantil: "Olá como te chamas?". Toque de avó de circunstância na bochecha da criança. Quase não se vêem crianças no jardim.

Em Portugal, é tão rara a ternura pública. A felicidade de ver uma infância a abrir-se ao mundo. Há resíduos de afecto e constante indiferença sisuda. Quem ainda teima em contrariar essa tendência são os que estão no extremo oposto da vida, os mais velhos, os idosos que viveram tempos piores que os de hoje e, a maioria, na miséria da reforma dos seus dias, mostram, em gestos e sorrisos simples com a felicidade alheia, que Portugal soube cuidar das suas crianças. É a terceira idade, já ausente de fertilidade biológica, quem ainda semeia a atenção e felicidade pela primeira infância. Não sei que raio de traumas Portugal tem, talvez ainda qualquer coisa da Casa Pia, mas não faz mal nenhum sorrir para um bebé ou dizer olá a uma criança.

Décima terceira. Décima segunda. Uma cifose ao telemóvel. Décimo quarto. Um zombie de headphones. Os Xutos ao megafone da política do momento. “À minha maneira”. Tanta coisa que a política estraga e corrompe, que a música não é excepção.

Distraí-me com o Vargas Llosa. Folheei o artigo sobre os refugiados, sobre a potencial islamização da Europa. De certeza que já passaram mais de duas dezenas de pessoas. Os soldadinhos de plástico já não são como quando eu era miúdo. Sabia que os verdes eram os americanos e os cinzentos os alemães. Já não se brinca com a história, mas ainda se podem camuflar entre as folhas dos plátanos às ordens de um general de quatro anos.

No meio deste enfrentamento de joguetes, apresentam-se-me o elder 1 e o elder 2. Denoto de imediato o português bem aprendido, com o sotaque norte-americano propõem-me que falemos sobre Jesus Cristo. Agora não me lembro bem se era sobre o Messias que queriam falar ou se era sobre a sua igreja Mormon, a tal “Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”. Parece-me que vai dar ao mesmo.

Agradeci muito. Disse-lhes que não perdessem tempo comigo. Tão jovens e já a perderem tempo comigo. Ainda insistiram, argumentaram que o meus tempo era importante mas tornaram-se mais crédulos da minha sinceridade quando lhes disse que admirava o trabalho que a sua igreja faziam com o estudo das árvores genealógicas.

“Pena” disse o elder 2. “Costumo trazer a minha na mochila e logo hoje que não a trouxe”.

Despedimo-nos cordialmente. Senti que sentiram que não os estava a enganar. Desejaram-me um bom descanso e o elder 1 fez uma festa no cabelo do meu filho, um réplica dourada do seu.

Poucos minutos depois, parei de me intrometer com o olhar na vida das pessoas. Tento ser discreto. A nossa espera terminou. Deixei a tarde no banco de jardim e agora, aqui, no silêncio teclado do meu escritório, arrependo-me de não lhe ter proposto: “E porque é que não falamos de outras coisas?”. Ao fim de contas também estaríamos a falar de Deus.


sábado, setembro 12, 2015

O poeta tem olhos de água (Manuel da Fonseca)





O POETA TEM OS OLHOS DE ÁGUA

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca


(Lido no blogue Fel de Cão - Ourém)


sexta-feira, setembro 11, 2015

Diário: "presente que será passado e talvez história"

Enquanto escrevo neste blog, milhares de pessoas, refugiados deste presente, percorrem ou arriscam as suas vidas a tentar entrar na Europa. Na bagagem trazem apenas a esperança de vida. Nem melhor, nem pior. Apenas de viver.
Perderam quase tudo na origem, mas mantêm a fé que o destino lhe trará a paz europeia.
Antes e durante a 2ª Guerra Mundial, a Alemanha Nacional Socialista, com a ajuda de uns países coniventes com Hitler, provocou uma maré idêntica de refugiados. Hoje, com Merkel, assume-se como a paladina da ajuda humanitária que, paradoxalmente, asfixia a economia das periferias da união que teima em encabeçar. Talvez seja um ato de contrição, empatia responsável, uma manobra política de exemplo ou hipocrisia, pragmática, numérica (recordo-me sempre da contabilidade e registos exemplares da logística dos campos de concentração), para resolver alguns problemas da demografia alemã. Não sei. Cada vez se sabe menos de nos informarmos tanto, de pensarmos que sabemos tanto.
Refugio-me nas palavras a diário para lidar com esta minha falta de sabedoria.
Vejo-me de mochila às costas, a lidar com as máfias do tráfico humano, a tentar ser marido da que a meu lado dorme, pai do que tem quatro meses no berço e do que tem quatro anos no seu quarto. Vejo-me ainda filho, irmão, amigo.
Onde vivo não caem bombas. Não há fome extrema tão visível. Há desemprego de dois dígitos, mas as famílias em desespero emigram, não se exilam, nem se refugiam. E a religião, algo promiscua com o estado (há que dizê-lo), quando comparada com o Estado Islâmico é laica.
Estas linhas são como um acampamento improvisado à beira duma estrada. Se, de repente, chega uma possível boleia em direcção à alternativa ao risco de vida, ficam os despojos não essenciais para trás. Estão repletas de cobertores, mantas, tendas, roupas, carrinhos de bebé, brinquedos de peso supérfluo para onde se pensa que se vai. Cabe-me, dentro de algum tempo, voltar a estas frases dispersas à beira do caminho que vou trilhando, a estes despojos do que os meus olhos grafam na minha memória. Cabe-me nunca esquecer o refugiado porque também eu me refugio em tanta coisa, principalmente hoje quando olho para o calendário e vejo que está para chegar a dureza do inverno. 

quarta-feira, setembro 09, 2015

Un monólogo de Ramón Gómez de la Serna (1928)



Monólogo de Ramón Gómez de la Serna rodado en 1928 por Feliciano Vítores.

(Visto en El águila ediciones)


Ramón Gómez de la Serna, "Este sitio está dedicado a Ramón Gómez de la Serna (Madrid 1888 - Buenos Aires 1963), al estudio de su vida y de su obra"








Ecce Homo - Nietzsche



(Ejercicio de traducción: Pedro L. Cuadrado) 



sábado, setembro 05, 2015

A Terceira Mão (João Serra)




E ainda hoje posso recordar o som do malho sobre o ferro em brasa, afeiçoando a lâmina, e o cheiro de corno de vaca aquecido, do qual se obtinha o cabo. No mundo rural, o canivete era o instrumento mais universal, acompanhando toda a vida quotidiana. Era a terceira mão, tão indispensável como as outras duas. Era tratado com todo o cuidado, evitando-se que fosse atingido pela ferrugem e cuidando do fio de corte, que não podia ter falhas ou rombos. Pouco volume fazia nos bolsos camponeses, onde entrava de manhã, com o lenço e a onça de tabaco para os fumadores. Havia-os de diversos feitios, mas o canivete de uso mais generalizado tinha a ponta em forma de quatro de círculo. Com ele se cortava o pão, naquela atitude tão característica do campo (o naco seguro pela mão esquerda, encostado ao peito, enquanto a direita corta uma fatia com um movimento orientado de fora para dentro), se abria o pepino com dois golpes cruzados pelos quais se deitava o sal grosso. Com ele se cortava a cebola em pequenos gomos e se pegava na sardinha ao lume (entalando a respectiva cabeça entre o polegar e a lâmina do canivete), que era em seguida depositada sobre a fatia de pão ou o prato de folha esmaltado. Com ele, como se fora um garfo, se espetavam as batatas cortadas ao meio e se levavam à boca. Com ele se retalhavam azeitonas e se golpeavam as tiras de toucinho antes de as dispor sobre as brasas de videira. Com ele se aparava a ponta de um graveto com o qual se palitavam os dentes, depois da refeição. Com ele se limpavam as botas enlameadas e se entalava papel ensebado nas frinchas dos tonéis. Com ele se dava o corte orientador do rasgão que iria ser feito na saca de serapilheira, com ele se dava forma de rolha a um bocado de cortiça. Com ele se cortavam unhas de humanos e se aparavam cascos de animais. Com eles se apertava, em caso de necessidade, um parafuso e se desencravava um espinho da palma da mão. Com ele se desenhava no chão um caminho ou uma casa, com ele se assinalava com o nome, ou simplesmente uma cruz, numa superfície acabada de revestir a cimento. Com ele, na hora do descanso, se davam asas à imaginação, escavando pedaços de madeira macia donde sairiam miniaturais maravilhas, ou compondo um pífaro em pau de cana. Com ele se afiavam lápis na escola e abriam cartas e, excepcionalmente, livros. Com ele um homem podia fazer frente a perigos reais ou imaginários. Com ele um homem nunca se sentia só.


 João Serra, in Crónicas dos anos 50/60





(Um pequeno presente para o amigo Luís, a primeira publicação de Um reino maravihoso antes de lá aparecer em meados deste mês)




Alma Lavenson: Autorretrato, Mãos (1932)



Alma Ruth Lavenson (1897 –  1989) was a leading American photographer of the first half of the 20th century. She worked with and was a close friend of Ansel Adams, Imogen Cunningham, Edward Weston and other photographic masters of the period. 

(Wikipédia)




 

quarta-feira, setembro 02, 2015

Como me despiertas - Fernando Ribeiro

A mi lado en todo cuanto amanece,
me clavas un puñal quebradizo en el centro del corazón
antes de que me soples un deseo al oído distraído:

"Espero que tengas un excelente día."
[trad. Luis Leal]

"Encontro" – Czeslaw Milosz

Dedicatória do tradutor: ao Pedro.

Íamos por campos antes de amanhecer,
A vereda vermelha levantava-se, ainda era de noite.

E de repente passou a correr uma lebre,
E um de nós apontou-a com a mão.

Isso foi há muito tempo. Hoje já não vive
Nem a lebre nem quem a apontou.

Meu amor, onde estão, aonde vai
O vislumbrar da mão, a linha do movimento,
O estalido da terra gelada.
Não há tristeza na minha pergunta, apenas reflexão.


    [Tradução do espanhol de Luis Leal]


Je bois (Boris Vian)



Je bois

Je bois systématiquement
Pour oublier les amis de ma femme
Je bois systématiquement
Pour oublier tous mes emmerdements

Je bois n'importe quel jaja
Pourvu qu'il fasse ses douze degrés cinq
Je bois la pire des vinasses
C'est dégueulasse mais ça fait passer l'temps

La vie est-elle tellement marrante
La vie est-elle tellement vivante
Je pose ces deux questions
La vie vaut-elle d'être vécue
L'amour vaut-il qu'on soit cocu
Je pose ces deux questions
Auxquelles personne ne répond

Et je bois systématiquement
Pour oublier le prochain jour du terme
Je bois systématiquement
Pour oublier que je n'ai plus vingt ans

Je bois sans y prendre plaisir
Pour être saoul
Pour ne plus voir ma gueule
Je bois dès que j'ai des loisirs
Pour pas me dire qu'il faudrait en finir.







terça-feira, setembro 01, 2015

De "O senhor Brecht" (Gonçalo M. Tavares)

Blogue Lydo e Opinado (há crítica)


O desempregado com filhos

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.


O homem mal-educado

O mal-educado não tirava o chapéu em nenhuma situação. Nem às senhoras quando passavam, nem em reuniões importantes, nem quando entrava na igreja.
Aos poucos a população começou a ganhar repulsa pela indelicadeza desse homem, e com os anos esta agressividade cresceu até chegar ao extremo: o homem foi condenado à guilhotina.
No dia em questão colocou a cabeça no cepo, sempre, e orgulhosamente, com o chapéu.
Todos aguardavam.
A lâmina da guilhotina caiu e a cabeça rolou.
O chapéu, mesmo assim, permaneceu na cabeça.
Aproximaram-se, então, para finalmente arrancarem o chapéu àquele mal-educado. Mas não conseguiram.
Não era um chapéu, era a própria cabeça que tinha um formato estranho.


Avaria

Por um curto-circuito eléctrico incompreensível o electrocutado foi o funcionário que baixou a alavanca e não o criminoso que se encontrava sentado na cadeira.
Como não se conseguiu resolver a avaria, nas vezes seguintes o funcionário do governo sentava-se na cadeira eléctrica e era o criminoso que ficava encarregue de baixar a alavanca mortal.


O labirinto

A cidade investiu tudo na construção de uma imponente catedral. Ouro, pedras trabalhadas, tectos pintados pelos grandes pintores do século.
Para a valorizar ainda mais decidiu-se dificultar o acesso. O que se atinge com facilidade deixa de ter valor, filosofava com esforço um determinado político.
Construiu-se então um labirinto que era o único meio de chegar à catedral. O labirinto foi tão bem feito que nunca ninguém conseguiu encontrar a passagem para a catedral.
O labirinto transformou-se na grande atracção da cidade.


O mestre

O mestre mais importante da cidade queria desenhar uma circunferência, mas errou e acabou por desenhar um quadrado.
Pediu aos alunos para copiarem o seu desenho.
Eles copiaram, mas por erro, desenharam uma circunferência.


Os sábios

Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.
Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.
Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.

Gonçalo M. Tavares

Do seu livro O senhor Brecht.



Sinopse: «O Senhor Brecht é um contador de histórias. Senta-se numa sala praticamente vazia e vai contando pequenas histórias entre o absurdo e o humor negro. A sala vai enchendo aos poucos, o que lhe trará no final um novo problema: o público tapa a porta de saída – e o senhor Brecht fica assim encurralado com o seu próprio sucesso.»




"Como todos os anos na mesma época..." - Boris Vian

«Como todos os anos na mesma época, as férias acabaram e, a menos que nos decidamos a fazer alguma coisa contra isso, temos a certeza que tudo vai recomeçar... Mas parece que o governo que trata da escola, em vez de se limitar a ir ele mesmo à "escola", quer obrigar os outros a ir: está tudo mal.»
Boris Vian, in "Jazz Hot"

Que nojo (Mário Dionísio)

Mário Dionísio por Pomar (1950)



Que nojo

São carcaças
de gente morta por dentro
Escondem mucos pegajosos
que empestam toda a paisagem

São abutres pelados são caraças
de olhos vítreos de intenção
são bostas de sangue e o centro
de onde mana a corrupção
Só nunca serão carrascos
porque lhes falta a coragem

O medo os faz silenciosos
pelas costas atrevidos
Movem-nos ódios e ascos
flatulências de ambição
pequeninos verrinosos
gordurosos retraídos

São fura-greves são espias
vaidosos de ser pisados
segregam epidemias
de vergonha São repolhos
de gangrena engravatados
São piolhos são piolhos
são piolhos

Mário Dionísio



(Blogue Voar fora da asa)