Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas
às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a
outra pessoa toda.
Clarice Lispector
Cresci com epopeias marítimas,
que deram novos mundos ao mundo, como um dos eixos fundamentais da biografia inigualável
dum povo. Porém, quando viajo no tempo e procuro o primeiro acto real de
exclusividade, inigualável e colectiva, da minha gente, aterro na consciência
da minha adolescência com o peso do Gama navegador, extraído da audácia d’Os Lusíadas, convertido então em
Vice-rei dum viaduto de tabuleiros unidos na ponte mais longa da Europa.
A inauguração da Ponte Vasco da
Gama vincou-se no Guiness através da
maior feijoada, refogada em massas pelo primeiro chef em Portugal benemérito duma estrela Michelin. Na actualidade, a estrelinha de Michel ofuscou-se por
coisas que nada têm a ver com feijões, mas almas como a minha jamais esquecerão
o talento de servir a maior mesa de refeição posta, com cinco quilómetros de
pessoas sentadas a enfardarem dez toneladas de uma leguminosa com potenciais
efeitos colaterais. (Pergunta o cronista o porquê de uma feijoada e não um
cozido? Um bacalhau à Gomes Sá ou Zé do Pipo? Já que se tratava da
exclusividade da portugalidade… Ainda hoje o atormentam estas decisões pátrias!).
Tantos anos depois, e sem nunca
se ter analisado o impacto ambiental deste menu, deparo-me constantemente com
outra exclusividade lusa: a da saudade.
A saudade é um exclusivo do
colectivo português. Quem for de fora não se atreva a sentir semelhante coisa.
O peso do vocábulo é muito mais do que pura nostalgia do passado, ausência do
lar, necessidade ou anseio de um porvir. Por isso, nem pensar nisso! Sem BI
português não há saudosismo para ninguém! (Vá lá, um da lusofonia ainda permite
admissão no clube!).
Eu mesmo, que vivo da língua onde
nasci, já parti tantas vezes esse vidro que diz “partir em caso de emergência” para
defender e fundamentar a exclusividade da saudade. Como extintores à mão tenho
os grandes Camões, Bocage, Teixeira de Pascoaes, um exército de clones Pessoano,
o guia no labirinto de Eduardo Lourenço, e um Google a transbordar em citações. (Até já o cronista recorreu ao
fado - esse património intangível tão útil, se se tem falta de imaginação, para
vender a um turista em Lisboa o que é nascer e ser-se neste pequeno rectângulo
ibérico –.).
Se não chegam as tropas disponíveis
na frente on-line, recorro ao arsenal
secreto de sebentas dos meus mestres, como o finado Cunha Leão ou o meu
caríssimo Cândido Franco para que nos diálogos parafraseados aos meus alunos,
em que ponho a gravidade da minha cara de intelectual nº27, lhes explique o
perigo de confusão com a morriña
galega, a añoranza hispana, a yearning anglófona, creio que a Sehnsucht germana, enfim, por favor não
se atrevam com trasladações do sentimento do ilustre peito lusitano para peitos
alheios, logo não autorizados a decifrar o enigma de tão peculiar caixa
toráxica.
(Aqui o cronista não é capaz de
pôr a cara nº27. Fica-lhe mal. E para ser sincero com estas linhas, nem ele,
que tem na carteira um cartão de cidadão português, está totalmente convencido
dum sentir agregador de espaço/tempo passado, presente e futuro. Tal como a
feijoada exclusiva da Ponte Vasco da Gama, os efeitos da nossa saudade são
iguais num português ou num espanhol. Isso sim seria mais honesto da sua parte elucidar
quando lho perguntam. Fica a sinceridade da sua saudade no tinteiro, a única
exclusividade a que se pode permitir…).
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