quinta-feira, dezembro 17, 2015

A criança que já não sou – Gabriel Celaya

Consegui o uso da razão.
Perdi o uso do mistério.
Desde então, a evidência
sempre rara, dá-me medo.

Dá-me medo quando ladra
no canil o meu cão.
Talvez me esteja a cumprimentar.
Mas não o entendo. Não entendo.

A criança que fui lembra-se.
Afunda-se em mim como um abismo.
A criança que fui chama-me
a gritar com o silêncio.

Vi-me nos meus retratos,
de marinheiro, a rir
com caracóis loiros e um ar
espevitado e impertinente.

Quem eras tu? O que sabias?
Agora só sinto sono.
Aturde-me o teu desafio
e o teu riso dá-me medo.

Já não posso, sem parti-los,
atravessar os espelhos.
O meu sistema não funciona
como antes. Desculpa.

Se funcionasse, talvez
não escreveria estes versos.
Choraria de outro modo.
Diria tudo em língua canina.

Mas acho que sou
algo mais que uma criança morta,
e como estou meio careca
faço caracóis com os meus versos.


(Trad. Luis Leal)


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