sexta-feira, dezembro 11, 2015

"O Pai Samurai" in Maria Capaz (18/XI/2015)

“O guerreiro leal e o guerreiro justiceiro são fáceis de ser reconhecidos, devido à sua conduta quotidiana, mas podemos dizer que não é fácil encontrar guerreiros valentes em tempos de paz e tranquilidade”.

Daidoji Yuzan


Quando a melena teima em intrometer-se no meu olhar e chatear-me na execução das tarefas domésticas, a melhor e mais rápida solução é agarrar em duas madeixas de cabelo, laterais à minha testa, e agarrá-las com um elástico no cocuruto da cabeça. O carrapito é pequeno, mas a minha visão adquire de novo a nitidez que os meus dias domésticos agradecem.

O meu filho mais velho, em idade de colégio, em idade de descobertas, de imposições de géneros e de fazer todo o tipo de questões que a sua genuína curiosidade lhe demanda, solta um rápido comentário:

– És uma menina!!!

Com os seus quatro anos, sei que nem sequer lhe passa pela cabeça que a adolescência do seu progenitor fora ainda mais gadelhuda, ao ponto do repuxo capilar do presente ser pequeno quando comparado com um rabo-de-cavalo russo, com pretensões de look surfista, mas de praia seca. Enfim, quem cresce com o cabelo comprido numa qualquer cidade do interior português, não fica com o orgulho masculino particularmente ferido por uma observação empírica da primeira infância.

Porém, a este totó ocorreu-lhe uma imagem mais épica para o totó que ostentava na cabeça.

– Menina? Não, não! O que o papá tem é um penteado de samurai!

O seu sorriso trocista surpreende-se com a nova imagem oriental que lhe vinha à cabeça. Seguramente que lhe ecoou, de imediato, os nossos duelos com sabres de plástico do chinês, algum episódio das Tartarugas Ninja, alguma vez que me viu tirar da máquina de lavar e estender um karate-gi, ou algum guião cinematográfico do Kurosawa por mim adaptado para uma bedtime story.

Este episódio paternal, prosaico, nada épico, apesar do palavreado usado na contra-argumentação infantil, proporcionou-me uma divagação, reflexão guardada em nota de memória de telemóvel, que apelidei de Bushido Doméstico. Pareceu-me bem, pelos ecos marciais carregados de filosofia de espanador, mas que poderia ter completado com “do homem do século XXI”.

Traduzido do japonês, samurai significa “aquele que serve”. Que servia o imperador, o shogun ou, se não havia senhor a quem servir, simplesmente, convertia-se em ronin.

A vida de samurai era uma vida de dedicação, frugal, de constante aperfeiçoamento do corpo e do espírito de guerreiro em prol do seu senhor e do seu clã. O Bushido é isso mesmo, um código de conduta, um caminho segundo o qual o samurai vivia e morria. Na actualidade, e para este ocidente, estes paradigmas são tão compreensivelmente estranhos que há que sofrer de alguma “orientofilia” (reconheço-me contagiado!) para aprofundar conceitos abstractos de tratados ancestrais como o Hagakure ou o Livros dos 5 Anéis.

Recorrer à imagem do samurai para reflectir sobre o papel do homem na actualidade é um risco por mim assumido. É mais que sabido que esta casta de guerreiros eram tudo menos bons exemplos no que diz respeito à igualdade de género e à forma como as mulheres eram vistas e tratadas na sociedade nipónica de então. A imagem da espada e da bainha, transversal de oriente a ocidente, é uma redundância etimológica tão forte que impede que se veja o ser humano como algo mais que pura biologia. Fiquemo-nos apenas pelo lado lírico desta referência marcial.

Estou convencido que o homem moderno, desta segunda década do século XXI, honesto e justo com o que o rodeia, também tem algo do compromisso e do código de conduta destes guerreiros icónicos da cultura popular. O homem moderno tem o carácter forjado como o metal equilibrado da lâmina da katana. Assume o seu papel igualitário no quotidiano e serve. Deve servir com o exemplo, não desde o servilismo a que nos pode remeter este verbo, em vida, mas em comunhão com os seus afectos, completando-se, reciprocamente, com uma mulher moderna.

Quando olho para alguns casais, muitos dos quais tenho como referentes, vejo esse espírito do Bushido. Trabalham até largas horas, levam os filhos à escola, cozinham, lavam, limpam, tratam dos seus (e às vezes de outros). Com a dignidade caída sobre os ombros assumem-se sonhadores. Sem queixas (apesar de terem moral para no queixume caírem). Dormem pouco, acertam em cheio, enganam-se rotundamente, riem-se de si mesmos, amam, sofrem, têm a felicidade das pequenas coisas e têm epifanias em que se lhes compensam todas as azias… Guerreiros do dia-a-dia, que caminham lado-a-lado, para quem desistir não é opção.

O aspirador continua nos seus afazeres e o meu pequeno ninja salta para o sofá, assustando, felino, uma das gatas. Há pedaços de bolacha no chão. Odeio esse vilão que o meu filho leva dentro a quem chamamos Sr. Migalha.

Respiro fundo, talvez porque aprendi, ainda em casa dos meus pais, que se há a inevitabilidade da limpeza, porque não aproveitar para meditar? Surgiu-me então um haiku:



            O pó do móvel não

            o impede de contemplar

            a novidade que nele pousa.



Abre-se a porta do quarto. Pára a limpeza e corta-se a divagação zen caseira. Aqueles olhos azuis sempre me levarão a onde quer que eu queira ir. Lembro-me de Wagner. Traz-me nos braços quatro meses ensonados e com vontade de mamar. Uma reacção cavalheiresca seria prostrar-me ante tão bela Valquíria, mas ela não me deixa, nunca me deixará. Agarra-me o olhar de frente.

De aspirador na mão, beijo o meu bebé e junto a minha testa aos cabelos soltos da minha mulher.

Por mais que alguns apenas queiram ver um totó, o espírito de samurai está aí meus amigos e de essa glória, da glória do ele não se distinguir do ela, ninguém me vai impedir de tentar alcançar!

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