quinta-feira, fevereiro 18, 2016

RESERVA-SE O DIREITO DE ADMISSÃO (A ADULTOS) por Luís Leal (Crónica resgatada da anterior plataforma da "Maria Capaz")

RESERVA-SE O DIREITO DE ADMISSÃO (A ADULTOS) por Luís Leal
Apercebo-me nas redes sociais que, finalmente, em Portugal, o critério para a adopção de crianças, na lei, é o amor e não a tradição heterossexual duma união entre duas pessoas. Há que evoluir. Até eu já pensei e opinei sobre este assunto de uma outra forma e hoje, que sou pai de duas criaturas, acredito que o sumo interesse da criança pode resumir-se ao afecto e ao respeito pela sua condição.

É este respeito pela sua condição que me põe à frente do teclado a pensar nestes parágrafos, que talvez se transformem em crónica, e incluir, nessa condição infantil, o peso do futuro. Sim, eles são o futuro apesar de, infelizmente, nesta batalha pela igualdade de direitos e oportunidades, também sejam vítimas de uns quantos danos colaterais.

O meu filho mais velho vai festejar mais um aniversário e uma das formas que a nossa família encontrou para que este dia não caia no fado inevitável do consumismo, naquelas festas da moda em que aniversariante e convidados têm de se obsequiar mutuamente (com tudo aquilo que é bom vender), é tentar celebrar esse dia especial que marca a sua chegada às nossas vidas de uma outra forma. Sei que não escaparei a esse karma mas, enquanto eles ainda são relativamente pequenos e fáceis de enganar sem que os excluam do seu grupo escolar de amiguitos, vale a pena remar contra estes hábitos que nos vão instituindo e que, a maioria, cegamente vai seguindo.

Mas, mesmo assim, quando ele começou a sentir que o dia de aniversário estava a chegar, querendo fazer convites personalizados para pôr na mochila dos colegas da escola, reunimo-nos na melhor sala de reuniões lá de casa, a casa de banho, e chegámos à conclusão alternativa de que gostaria de fazer um boneco de neve e colocar-lhe um nariz de cenoura. Na sua tenra idade nunca viu neve (eu também só vi, com exceção de um dia surreal da minha infância em que nevou na planície alentejana, já era um jovem adulto). Por esse motivo decidimos organizar um passeio à neve.

A minha mulher é um génio da logística excursionista, de sandocha na mochila e alojamentos excêntricos e baratos. Domina a economia doméstica, dentro e fora de casa, e eu assumo-me humildemente como um amador a seu lado. Agarrada ao computador, a surfar por essa net fora, encontrou uma residencial, ou turismo rural, não me recordo bem (porque não quero recordar-me), que parecia bastante em conta. Chamou-me e clicámos em voz alta nos comentários e critérios dessa unidade hoteleira. O nosso interesse caiu a pique (no meu caso foi mesmo directo para o caixote onde ponho as coisas que considero descartáveis) quando lemos: “Não se admitem crianças”.

Não tenho nada contra o direito de admissão nem sou contra a propriedade privada, notem bem! No entanto, não consigo evitar que me venham à cabeça cafés e outros negócios que utilizam imagens de sapos vigilantes para evitar a entrada de clientes de certas etnias ou, pegando noutro exemplo, vem-me à cabeça a imagem de Rosa Parks, que se insurgiu contra a separação dos passageiros negros dos brancos dentro dos autocarros da cidade onde vivia, Montgomery, insistindo em sentar-se num lugar que a levaria mais tarde a ficar na história dos direitos humanos.

Desculpem, já estou a viajar demasiado nos meus pensamentos. Dos batráquios do café ao autocarro do Alabama sigo agora para um avião da TAP que o ano passado me levou a Munique. Nessa viagem, uma mãe hercúlea trazia, de escala em escala, os seus três filhos consigo, o mais pequeno deles de colo e evidentemente saturado. Olhámos para aquela mãe com a empatia de saber o que é voar com um bebé a quem já não bastavam as necessárias dores de dentes a crescer, tendo ainda de aguentar a pressão de várias horas de voo.

Sei bem o que são crianças desregradas no caos educativo paternal e garanto-vos que esse não era o caso. As pobres crianças apenas se queriam libertar com sorrisos e abraços da mãe e uns quantos olhares metediços para trás dos mexidos assentos. Troquei uns quantos olhares e sorrisos com um deles, um menino de dois ou três anos, que roía e me oferecia a sua chucha.

O ser humano tem tanta informação virtual à sua disposição que está a perder a capacidade de compreensão da realidade empírica. Não deve ser possível “googlar” estas coisas para entender a dureza que é viajar horas a fio nestas circunstâncias.

Curiosamente, foi uma Senhora de idade madura e experiente, com uma vistosa permanente no cabelo, quem viria a queixar-se insistentemente à simpática hospedeira do desassossego que lhe provocavam as crianças e os seus brinquedos, a ponto da mãe das mesmas abdicar do seu lugar para evitar uma discussão.

Obviamente que todos temos direito ao descanso, temos direito a não sermos incomodados, quer por miúdos, quer por graúdos (se é que uma criança a brincar para se manter entretida pode considerar-se um incómodo!). Enfim, a Senhora da permanente, indiferente àquelas crianças, estava no seu pleno direito. Mas apenas isso, no seu direito.

Felizmente, a maioria dos passageiros ficou ao lado daquela mãe e ajustámo-nos sem qualquer problema, com alguns “gugu-dadás” pelo meio, às suas circunstâncias e à nova ordem dos assentos dentro da aeronave.

No entanto eu, se já era um convicto defensor dos direitos das pessoas (tento ser de todos os seres vivos), reservo-me o direito de não gostar de pessoas que não gostam de crianças, tal como acredito que quem não gosta de crianças tem direito a não gostar desses enfants terribles.

Não sei se o meu filho colocará ou não um narizito de cenoura a um boneco de neve este ano, nem sei tão pouco se verá neve este ano. Mas sei que não iremos a locais que não admitem crianças porque não nos deixam lá entrar! Não iremos a esses locais, no limbo conveniente da legalidade, que confundem o direito de admissão com a conduta adulta, esse reflexo evidente no elo mais fraco que são os seus filhos ou naqueles cujo futuro depende do seu exemplo de adultos.

Usando terminologia económica que se tende a usar para justificar tudo no nosso mundo, há “nichos de mercado” para estes direitos de admissão. Tenho um amigo que argumenta que, se queremos um ambiente que proporcione um aumento da demografia, num restaurante ou num hotel, não admitir crianças ajuda a criar esse mood. Tem razão, a minha libido prefere o glamour de um restaurante francês mas nos entretantos vai-se contentando com uma pizzaria com vista para uma piscina de bolas coloridas…

É possível que estes nichos sejam frequentados pelas sensibilidades que merecem. Talvez as crianças que lá não foram admitidas no presente, possam num futuro próximo passar à porta e ver um cartaz onde está escrita a palavra: “trespassa-se”.

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