segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Você, tu, eu. Primeiro a pessoa. (Crónica "Entre Duas Terras" in "Mais Alentejo" nº131)

Estou para aqui a pensar como é que me devo dirigir aos meus caríssimos leitores. Por você ou por tu? Tive uma educação que me fez herdar o respeito formal por quem não conheço em pessoa. Talvez por você? Mas ao estar para aqui cronicando em quase confidências íntimas, em divagações só permitidas a amigos, talvez o uso do tu não fosse despropositado...

A sociedade espanhola, na qual me insiro e educo os meus filhos, tem vindo a derrubar o muro que existe entre o uso da terceira pessoa e da segunda do singular. O “tuteo”, resume-se assim o tratar por tu, impera nas relações sociais do país vizinho. Não é que o lado mais formal não exista, o seu uso é apanágio de certas idades e tipos de educação, mas, ainda assim, reafirmo o uso massivo do tu no quotidiano de Espanha. Só há que ver os recentes debates entre os candidatos ao governo espanhol, Mariano Rajoy (melhor, Soraya de Sáenz Santamaría!), Pedro Sánchez, Pablo Iglesias e Albert Rivera que se “tutearon” para a posteridade, algo até então nunca visto em debates do género.

Há quem chame a estes detalhes, mundanos e enormemente significativos para um colectivo feito nação, de “código cultural”. Isto é, existe uma codificação sociocultural oculta no uso contextualizado duma língua.

Com frequência, lembro-me do “vossemecê”, herança do latifúndio, que a minha avó usava. Só mais tarde me apercebi que Abril não libertara totalmente o meu Alentejo e os seus santos inocentes dessa estrutura feudal, de boina servil apertada contra o peito, continuando à mercê terratenente.

Cedo me inculcaram a diferença entre um “tu” e um “você”. Até mesmo o subgénero do “você”, nasalado, super-loiro e tio, propagado da linha de Cascais até aos confins do país, cumprimentando só com o som de uma bochecha, algo tão diferente do “você” omitido ou substituído por “senhor” ou “senhora” que me fora respeitosamente ensinado a usar.

Como Antonio Machado, a vida deu-me uma infância num pátio de um bairro. Ainda hoje em Évora se conhece por bairro do “moinho do cu torto”. Há humor no nome e houve felicidade nos meus verdes anos. A par do bairro da Srª. da Saúde, no “moinho do cu torto”, em presença dos meus avós e vizinhos, fui menino e moço.

Escusado será dizer que um gaiato no Alentejo, para que tenha uma infância como Deus manda, será sempre tratado por tu! Eu não fui excepção. Curioso foi terminar os meus estudos, cujo diploma resume em licenciatura, e ver, de um dia para o outro, gente que andou comigo ao colo, que me viu de joelhos esfolados, calções sujos e nariz ranhoso, começar a tratar-me por doutor ou usar um reverente pronome de terceira pessoa.

Jamais permitirei a alguém que me viu crescer e é do meu bairro (do meu pátio!) tratar-me de semelhante forma! Sou o Luís. Se alguém tem de manter esse código cultural que a idade impôs sou eu! Desde quando é que o carrasco faz sombra à azinheira centenária?

Sou consciente do respeito que me impõe a tradição dum montado assim, mas, também, desse lado da fronteira, onde falo e sou português, sem o mais mínimo tipo de cumplicidade, relação etária ou confiança, várias vezes me trataram por esse “tu” estranho, nada simpático e amistoso, que nos relega, numa forma de tratamento, para algo de insignificância e desprezo… Já eu, recorro à defesa pessoal, um judo linguístico, e agarro nesse “tu” à má fila e replico-o com igual assertividade. Geralmente converte-se num “você” de olhos nos olhos, horizontal, como devem de ser as relações humanas.

Como com o exemplo se predica melhor, e com o exemplo que aprendi dos meus pais, respondo à questão com que iniciei esta crónica fazendo ao meu estimado leitor outra questão. Como já nos vamos conhecendo, não se importa que nos tratemos por tu?

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