terça-feira, março 08, 2016

Como também acontece […] Eu roubo e roubam-me (Eduardo Galeano)


Eduardo Galeano teve na mulher uma coluna vertebral da sua obra, defendendo, e reivindicando no feminino, a dignidade sempre precária do ser humano.
O livro “Mujeres”, no qual se insere o texto original aqui traduzido (até então apenas disponível em português do Brasil), é uma compilação de textos do autor uruguaio e uma homenagem à mulher por celebrar a vida.

Como também acontece […] Eu roubo e roubam-me (Eduardo Galeano)

Como também acontece com os índios e os negros, a mulher é inferior mas ameaça. «Vale mais a maldade de homem que a bondade da mulher», advertia o Eclesiástico (42, 12). E bem sabia Ulisses que devia ter cuidado com os cantos das sereias, pois cativam e levam os homens à perdição. Não há tradição popular que não perpetue o desprestígio da mulher ou que não a denuncie como perigo. Ensinam os provérbios, transmitidos por herança, que a mulher e a mentira nasceram no mesmo dia, que a palavra de uma mulher não vale um alfinete, e, na mitologia camponesa latino-americana, são quase sempre fantasmas de mulheres, à procura de vingança, as temíveis almas penadas, as “luzes más”, que pela noite dentro assombram quem por ali passa. Na vigília e no sonho, delata-se o pânico masculino perante a possível invasão feminina dos vedados territórios do prazer e do poder. E assim foi desde os séculos dos séculos.
Por algum motivo foram as mulheres as vítimas das caças às bruxas, e não só nos tempos da Inquisição. Possuídas pelo demónio: espasmos e uivos, talvez orgasmos, e para cúmulo do escândalo, orgasmos múltiplos. Só pela possessão de Satanás se podia explicar tanto fogo proibido, que através do fogo era castigado. Mandava Deus queimar vivas as pecadoras que ardiam. A inveja e o pânico perante o prazer feminino não tinham nada de novo. Um dos mitos mais antigos e universais, comum a muitas culturas de muitas épocas e de diversos lugares, é o mito da vulva dentada, o sexo da fêmea como boca cheia de dentes, insaciável boca de piranha que se alimenta de carne de machos. E, neste mundo de hoje, neste fim de século, há cento e vinte milhões de mulheres com o clitóris mutilado.
Não há mulher que não seja suspeita de má conduta. Segundo os boleros, são todas umas ingratas; segundo os tangos, são todas umas putas (menos a mamã). Nos países do sul do mundo, uma em cada três mulheres casadas leva sovas como parte da rotina conjugal, castigo do que fez ou do que podia fazer:
- Estamos adormecidas – diz uma operária do bairro Casavalle, de Montevideo -. Algum príncipe te beija e adormeces. Quando acordas, o príncipe dá-te porrada.
E outra:
- Eu tenho medo da minha mãe e a minha mãe teve medo da minha avó.
Confirmações do direito de propriedade: o macho proprietário comprova a murro o seu direito de propriedade sobre a fêmea, como o macho e a fêmea comprova a murro o seu direito de propriedade sobre os filhos.
E as violações? Não são por acaso rituais que através da violência celebram esse direito? O violador não procura, nem encontra, prazer: necessita submeter. A violação grava a fogo uma marca de propriedade na anca da vítima e é a expressão mais brutal do carácter fálico do poder, desde sempre expressado pela flecha, a espada, o fuzil, o canhão, o míssil e outras ereções. Nos Estados Unidos, viola-se uma mulher cada seis minutos. Diz uma mulher mexicana:
- Não há diferença entre ser violada e ser atropelada por um camião, salvo que depois os homens te perguntam se gostaste.
As estatísticas apenas registam as violações denunciadas que, na América Latina, são sempre muito menos do que as violações ocorridas. Na sua maioria, as violadas calam-se por medo. Muitas meninas, violadas nas suas casas, vão parar à rua. Compõem a rua, corpos baratos, e algumas encontram, tal como os meninos de rua, a sua casa no asfalto. Diz Lélia, catorze anos, criada como Deus quis nas ruas do Rio de Janeiro:
- Todos roubam. Eu roubo e roubam-me.  

(Trad. Luis Leal)    

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