terça-feira, junho 07, 2016

«Papá, depois do Verão vou para a primária!»

Não sei o dia exacto, sei que foi em Setembro de 1986 que parte do que sou neste presente se começou a delinear. Era o meu primeiro dia na escola primária e o único dia que a minha mãe me levou à escola (salvo em situações de intempérie ou doenças pueris). A volta, essa, já foi por minha conta. Eram outros tempos e os quinhentos ou seiscentos metros de bairro até à entrada da escola eram familiares e eu fazia parte daquela paisagem infantil de então.

De mochila pequenita vermelha, com cadernos, livros e lanche dentro, de bata branca horrível que a minha mãe me fez usar na primeira classe, ali estava no meio de tantos outros meninos e meninas cujas vidas ficaram unidas à escola primária nº7 do Bairro da Caixa.

Esperava-nos a experiência da D. Maria de Lurdes Varandas. Mulher recta, olhos azuis à antiga a educar exigentes os filhos das conquistas de Abril. Acompanhou-nos até aos seus últimos dias na profissão, já quase no final da nossa quarta classe. 

«Ter boas bases», quantas vezes o ouvi dizer, com alguma reverência pela sua docência, aos meus pais? Se as temos academicamente, talvez lhas devamos, tanto a ela como à Florbela, uma régua de madeira que as palmas das minhas mãos nunca conheceram. O mesmo já não posso dizer da sua palma da mão na minha cara. Como antes escrevi, viviam-se outros tempos e não tenho nenhum trauma por isso, guardo apenas uma lágrima na página duma cópia, em que já começara a usar caneta, num qualquer caderno diário arrecadado em recordações.

Cresce-se por competição e oposição, mas acredito que o desenvolvimento de uma criança é mais integral, atrevo-me até mesmo a dizer íntegro, através da cooperação. O crescimento deixa um rasto de amigos, de perdas de amizades também, de cumplicidades, disputas, ínfimas coisas que, pouco a pouco, se convertem em personalidade. 

Neste dinamismo do nosso carácter, é legítimo responder - quando perguntamos a nós próprios o que somos - com uma descrição pessoal bem adjectivada e justificada pelo nosso comportamento e pela maneira como nos vemos no mundo. Trata-se de um bom exercício e já o fiz várias vezes, apesar de nunca me convencer a mim próprio de nada. No fundo, na nossa personalidade, somos outros. Somos pequenas partes dos que habitaram os nossos dias, dos que povoaram tantos momentos numa corrida existencial iniciada com um parto. 

Sou tantos outros, tantos que não vale a pena fazer uma lista, porém, hoje, sei que sou o meu filho mais velho a dizer-me que depois do Verão vai para a escola primária, sem sequer imaginar que há trinta anos exactos eu entrara na escola nº7.

Deveria contar-lhe que sou o medo de uns quantos rufiões que se metiam comigo por terem as costas quentes por irmãos mais velhos.

Deveria contar-lhe que aprendi a defender-me graças a um axioma do seu avô que me enunciava «se bates em alguém levas em casa, mas, se te deixas bater, também». 

Deveria contar-lhe que sou uns quantos primeiros amores partilhados com os melhores amigos, sem ciúmes, com cartas escritas pelo Ferna, o irmão mais velho do Carlos, já letrado, fechadas e perfumadas pelo “Axe” do seu avô, e, às escondidas, postas na mala da Ana Albano. 

Deveria contar-lhe tanta coisa que não lhe vou contar porque esse não é o seu tempo e essas paisagens humanas são apenas suas nos resíduos que deixaram em mim.

Só há uma coisa que lhe vou contar. Sou o Luís (Gémeo), sou o Nuno (Gémeo) e sou o Carlos Silva. Sou os melhores amigos que brincaram, correram, saltaram e andaram à porrada junto à linha de caminho-de-ferro da “Aparição” do Virgílio Ferreira. Sou essas crianças curiosas formadas na nº7 e que continuaram sempre juntas até que o 9ºano as separou na André de Resende.

Outros bons amigos estiveram connosco, o Caíta, o Garcia, o Carvalho, o Catarro, o Passinhas (a última vez que o vi animava bailes brejeiros por esse Alentejo fora), mas nós nunca nos separámos e fomos inseparáveis muito mais além desses nove anos de escolaridade obrigatória. 

Actualmente somos presentes de adultos diferentes, longe, com mulher, filhos, casa e carro para pagar, mas, naquela esquina do tempo, ainda somos inseparáveis. 

Depois deste Verão, o meu filho vai para a escola. Levá-lo-emos e iremos buscá-lo todos os dias. Não terá uma mochila vermelha, não será aluno da D. Maria de Lourdes Varandas, nem saberá que a minha professora era irmã do Francisco José, esse que o seu avô ouve com a guitarra a tocar baixinho, a cantar os “Olhos Castanhos”, o “Só nós dois é que sabemos” e o “Não sei que tenho em Évora” como da Évora da minha meninice agora me estou lembrando. Não levará bofetadas pedagógicas, porque o professor terá logo um processo disciplinar. E não estudará na escola primária do Bairro da Caixa que nunca sequer se chamou assim oficialmente.

Como sempre nos dizia a minha avó Rita, vou dizer-lhe para entrar com o pé direito numa escola primária pública como aquela em que tive a ventura de estudar. Que, com todas as imperfeições, é um contributo de todos para todos. De certeza, também ele encontrará uns quantos rufiões, à sua maneira aprenderá a defender-se, terá uns quantos primeiros amores, tal como bons e maus professores, mas, felizmente, terá o direito à escola e à infância, aquela que nem na memória, nem na ficção, alguma vez se repetirá.


2 comentários:

  1. Mais uma vez, brilhante meu caro amigo.
    Forte abraço!

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  2. Caro Eris Barrabás, muito obrigado pelo simpático comentário, mas não estou a ver quem é que está por detrás desse nome bíblico... Aquele abraço,
    LL

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