Nunca imaginei ver uma crise económica como a que se arrasta desde 2008 até hoje. É verdade. Apesar de ter conhecido a precariedade, paliada pelo apoio paternal, nunca imaginei que a sociedade que me educou nos valores de casa, carro e electrodomésticos vários num trabalho efectivo fosse tudo menos estável. Via a maioria assim, também eu queria ser maioria numa época em que a minha vida profissional não me permitia sequer alugar casa para viver independente.
Quando comecei a trabalhar com um vínculo mais estável, esse que negam aos milhões (e a alguns dos melhores) por este mundo fora, também persegui a casa, um carrito melhor que o Clio a zumbir o alternador, e electrodomésticos vários. O primeiro foi uma máquina fotográfica.
Podia ser aceite pela maioria, essa classe média de centro-direita, quando tem boa memória pisca o olho à esquerda, e pagar ao banco todos os meses esse estatuto. Assim foi e assim é.
Fiz tudo para entrar neste clube. Fiz empréstimos (talvez algum dia precise outro), comprei casa e electrodomésticos. Mas nunca deixei de ser medroso. Sentia uma espécie de casamento, como o que fiz com a minha mulher, mas sem amor. Estava em núpcias e não sentia o afecto do banco que me exige seriedade ao fim do mês, rígido se há um imprevisto, a casa é tudo menos minha, quanto muito sou eu propriedade da minha casa que me escraviza com manutenção, limpezas semanais, mensais, para não escrever diárias, com o reforço de umas cartitas simpáticas com a boa nova dos impostos. É assim e já está, sem nenhum tipo de remorço ou hipocrísia deste escriba. Ainda bem que posso e aguento o que os economistas denominam taxa de esforço.
O que acontece é que já entrei muito tarde neste clube. Não sou um puro sangue de classe média. Trabalhei demasiado para ver que o médio ilude bem o operário, legitima o político, assegura as finanças do rico e é indiferente à miséria do pobre. O médio consome e é combustível da democracia. Há um equilibrio imperfeito mas, como tantas vezes o ouvi dizer a sábios do bairro, as coisas vão indo.
O problema reside na mochila que trago às costas, na insatisfação material que me contagia, no andar a pé e de bicicleta junto à realidade construída à base de hipoteca, com mais estradas que passeio, onde importa mais o veículo do que o peão.
Não tenho moral para opinar ou criticar a forma consumista como o meu semelhante privilegiado, sem guerras, exílios, ditadura, Daesh, Estado Islâmico ou outro qualquer credo inimigo dos direitos humanos, vive, porque eu vivo assim e reconheço-me tristemente insatisfeito nessa condição.
Hoje ia com os meus filhos pela rua e outro pai tentou-me vender qualquer coisa, tipo lenços de papel ou pensos rápidos, para sobreviver. A minha forma de sobreviver foi desconfiar, apesar de nestas palavras desconfiar de mim mesmo como exemplo de desumanidade.
E do outro lado da avenida, enormes catterpilars alisam o chão para, como diz o enorme outdoor, "Vivendas de luxo, compre já a sua!". Será que alguém nos pode vender uma consciência de que há algo aqui que não encaixa? Agradecia. Distraido, ponho-me a ver se na urbanização há uma gelataria, com o calor agradece-se e aqui não há risco de atentados suicidas.
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