O meu pai morreu sem fechar o livro à cabeceira. Quase não via e acumulava volumes de papel reciclado em solidão.
O meu pai morreu sem deixar-me nada mais que livros.
Tenho de os fechar. Muitos talvez queimar, tantos outros doar. O meu pai morreu bolorento mas orgulhoso de só nos amar mais a nós do que as palavras. E morreu sem deixar-me nada mais que palavras.
Cabe-me a tarefa de limpar a sua última morada. Tanta papelada, tanto nada. Ninguém mais é capaz. Eu também não mas ele ensinou-me a não me queixar, a não me isolar em sentimentos que tantos outros também têm e não se justificam com eles.
Há montes de restos do meu pai aqui, acumulados em pilhas ou por ordem nas estantes do escritório, segundo o formato e não tanto o conteúdo. Sento-me a olhar para as nossas árvores, para as nossas vidas, podadas como se pôde. Há pouco do avô, algumas fotografias, memórias do tempo da sua guerra. Um relógio.
Corto o cordel de uma pilha de papel de jornal. Folheio o cheiro a humidade e decido desfazer-me dele na salamandra.
Porque é que teve de ser assim? Porque é que te dedicaste tanto a mim?
Quem é que me vai abraçar e aconchegar na cama?
Quem é que vai conversar com o homem que criaste?
Cai a lágrima em direção ao chão outrora nosso. Cai antes na mão, no punho entreaberto da navalha que, antes de minha, antes de tua, fora do avô.
Germina a semente no coração. Com esta lágrima. Agora sei porque tantas vezes sentias o meu peito, apertavas contra o teu.
Posso despedir-me pai.
Não quero nada. Deste-me tudo em vida. Vou fechar todos os teus livros. Só assim posso abrir o meu.
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