terça-feira, maio 02, 2017

"Bushido Alentejano" - Luis Leal (in revista "Mais Alentejo" nº138, p.84)

É tão fácil confundirmos os holofotes da fama com a luz natural do prestígio, mais ainda neste tempo hiperbólico que vivemos. Compilam-se, assimilam-se e rejeitam-se exemplos. Primeiro a família (ou algo parecido), depois os amigos, afinidades e outras circunstâncias, mais ou menos gregárias. No meu caso, depois do óbvio e generalizável à maioria, foi o mundo das artes marciais, em especial, o Karaté Goju-Ryu. Reconheço que, antes do humanismo, e tantos outros “ismos”, já estava iniciado na “escola do duro e do suave”, oriunda duma longínqua Okinawa, posta na moda pela personagem do Mr. Miyagi no “Karate Kid II”. (Não vos remeto para o “Glory of Love” do Peter Cetera, porque hoje até nem estou muito sentimental).

Neste âmbito, no qual há uma ascensão graduada por cores de cinturões, conheci e conheço um pouco de tudo. A dedicação, a honestidade do estudo e a humildade, somados numa perfeição técnica e humana, com prova dos nove na discrição do espírito do “Bushido” (do japonês, literalmente, "caminho do guerreiro"). Por outro lado, encontrei a preponderância do ego, o nariz empinado, fanfarrão, a passear o cinturão sem o qual lhe cairia as calças do “Gi”, vulgarmente conhecido por “kimono”. Até aqui nada de novo. Somos assim e temos um legado proverbial a asseverar-nos o carácter com que nos assumimos perante o mundo.

Mais tarde, chego à academia, assomo-me a outras artes, insiro-me no mundo laboral e entrevejo que todos os microcosmos vivem rituais e cultos de personalidade semelhantes. Como no Karaté, podes ser atingido por golpes à má fila, teres de prestar reverencia a “senseis” da farinha amparo, mas também aprendes a salvaguardar a tua integridade, a definires a tua conduta e a apreender a essência do verdadeiro “budoka” (artista marcial), tão distante do fala-barato de muita teoria e nenhum exemplo prático.

Este universo, redundantemente agressivo na opinião de alguns, marcou profundamente a forma de interpretar o meu dia-a-dia, mundano e prosaico, e o de quem por cá anda. Confesso, não aprecio quem constantemente se lamuria, se vitimiza, justifica que o seu é pior que o do outro e, consequentemente, a culpa é, e sempre será, de outrem. Em suma, não gosto de queixinhas a pensarem que o mundo tem para com eles alguma divida mais além da dignidade intrínseca à condição humana.

As duas terras, entre as quais existo, são difíceis para se subsistir. Impera a desertificação e o trabalho não abunda. São realidades envelhecidas, periferias pobres votadas ao haraquíri pelo poder central, mas onde encontramos verdadeiros “mestres”, como dizia o meu tio António, do viver. Essa mestria ganha-se com o exemplo ao longo da vida, com constância e vivacidade e sem se cair no queixume. Infelizmente este reconhecimento está em desuso. As novas gerações estão acostumadas a títulos rápidos, a habilitações emitidas ao domingo, e não foram ensinadas a cantar, nem a comprar, na “Loja do Mestre André”.

Para bem e para mal, tenho uma teimosia quase bovina. Reconheço o estatuto de mestre a quem o mereceu a pulso, “velhos samurais que nem um ai se lhes ouve em vida, que, entre o desdém e a lisonja, sempre souberam o que são e o que valem”, esses que, mesmo com fome, palitam os dentes satisfeitos (voltando ao japonês: “Bushi wa kuwanedo taka-yoji”).

O “quejarse de vicio” espanhol é uma tendência por vezes mais forte que eu, tal como a herança lusa de “quem não se sente não é filho de boa gente”, porém renego-a. Não vale a pena, é uma perda de tempo e creio ter ainda alguma perspectiva. Não me socorro de nenhuma autoajuda disponível no mercado. Socorro-me do valor de tanta gente, mestres alentejanos e “extremeños”, a grande maioria idosos, cujo património, resistência, esforçar-me-ei por manter vivo.  

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