segunda-feira, setembro 04, 2017

O Filho de Saúl

Domingo. O primeiro de Setembro. Um dia como outros tantos de fim-de-semana. Nada de especial. Eles, como sempre, levantam-se cedo. Andam por aqui a brincar, aos saltos. Birras e gritos do mais novo para chantagear a boa vontade do mais velho. Tenho do admitir, são chatos. Eu e a mãe quase não temos tempo um para o outro. Entre eles, o trabalho e outras responsabilidades, a prioridade são eles. Assumimo-lo sem queixa, cientes de que o queremos e das circunstâncias do que vivemos. 
Porém também vivemos num presente muito exigente. Temos de ser modelos de paternidade e não podemos exteriorizar alguns pensamentos pois a sua interpretação pode ser motivo de fogueira pública, de queixa aos serviços sociais do estado (esse pai perfeito) ou a nossa conotação com a bestialidade, isto é, de bestas mesmo. Tenho por hábito reconhecer que sou um animal de família. O que tenho de besta supero com beijos, abraços e tempo. Sou bruto. Muitas vezes consciente, muitas vezes por testosterona desatenta e inocente. Escrever os meus defeitos, reconhecer as minhas falhas, recordar o passado imperfeito que me educou e aceitar a interferência que a minha profissão (talvez pudesse escrever profissões, usando o plural) tem na minha paternidade é algo arriscado para mim. No entanto, enfrento os meus medos e, como forma de manutenção da minha pretensa sanidade mental, verbalizo o que às vezes sinto e, desculpem as formas de bairro, apostaria o testículo esquerdo que muitos como eu sentem mas não têm tomates para o afirmar nesta ditadura do bem-parecer. 
Há dias em que estou farto dos meus filhos. São esgotadores, falam aos berros, acordam sempre com as galinhas, não deixam que namoremos cinco minutos... Reconheço com gratidão o pão e a saúde vivida em minha casa mas há dias em eu não sou só pai e tenho vontade de me cagar para eles com todo o amor do mundo que isso implica. 
Continuou o Domingo. O mais novo especialmente birrento e sempre de roda das saias da mamã. O mais velho a teimar em pouca atenção e despistes irritantes. A temperatura ainda bastante quente levou-nos a uma piscina municipal e viajámos por esta raia sequíssima. Nada de especial, que não se tenha feito ou soubéssemos.
Banhos, jantar, caminha sem história a acompanhar por preguiça paternal, ficámos pela sala a desfrutar de alguma tranquilidade, evidente num volume mais baixo da televisão, luzes, do ritmo desta etapa da vida.
Com eles ainda acordados no quarto, a conversarem através das minhas advertências de silêncio, sentámo-nos no sofá a emular de forma caseira uma ida ao cinema em casal. Apesar de, a estas horas do dia, geralmente preferirmos um blockbuster qualquer, que não active muito regabofe neuronal, a um filme de maior exigência intelectual, o meu amor pela sétima arte (enquanto escrevo esta nota acabo de ir dar xarope ao mais velho porque está a ficar com tosse) quis que víssemos o premiado «Filho de Saúl».

Em linhas gerais, a história de um comando-sonda de um campo de concentração Nazi que pensa haver encontrado o cadáver do seu filho e obsessiona-se com enterrar o seu corpo de acordo com as suas crenças judias. Uma obra notável, de primeiro-plano para a interpretação do actor principal que, se não fosse húngaro, teria sido premiado com um Óscar da academia. Vá lá, o filme lá levou a estatueta de melhor filme estrangeiro, de língua não inglesa, para casa.
Já nós cá por casa, deitámo-nos no quarto ao lado dos nossos filhos. A Elsa disse-me que fica sempre agoniada depois de ver este género de películas. Eu agarrei-me a este diário com a convicção de necessitar deste tempo para ver uma obra tão acutilante como esta. Tranquilo, sem eles a fazerem perguntas ou a correrem pelo apartamento.
Pus-me na pele da personagem e pensei que ambos somos verosímeis. Um comando-sonda atormentado por um dever feito redenção e um pai cansado, cheio de medo por um futuro em que a bárbarie do passado apareça revigorada.

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