quinta-feira, outubro 19, 2017

Um sítio onde pousar a cabeça

"Só quero um sítio onde pousar a cabeça” é um verso feito título dum livro de poesia do Manuel António Pina. Hoje fazem cinco anos da sua morte. Graças ao Pedro, não poderia esquecer esta data. 

Anoitece nas minhas cidades. Uma vejo-a anoitecer pela janela, a outra ouço-a ao telefone. Anoitece no meu dia. Escrevo para vaguear. Falar é difícil rotina a esta hora. Há trabalhos para deixar feitos, contas para pagar, mochilas para preparar, birras infantis por deitar. Sou eu e os meus passos sentados à frente do computador. Sou eu à procura do silêncio das teclas porque me parece que já nada me pertence, nem mesmo a mudez de todas as palavras duma criança sem entusiasmo com o presente de ser adulto.

Onde pouso a cabeça tem-se habituado às gotas de suor da minha frente e à luz frontal a pilhas da insónia contrariada em leitura. De vez em quando, a epígrafe surge-me como dádiva sublinhada de cabeceira, o resto bem poderia continuar de frontal, à mineiro, escavando por entre os baldios da minha condição.

Já anoiteceu. O Manuel António Pina morreu. “O que nos leva a escrever é o desejo de ser amados” dissera ele numa entrevista qualquer. Nunca o pensei assim, sempre foi mais o desejo de ser escutado, ouvido. Ou talvez não e esteja para aqui a confundir escrever com a forma como ganho o pão. O amor é mais importante do que a atenção.

Abandono o meu pescoço e pouso a minha cabeça no travesseiro suado de versos acarinhados, como um gato, pelo saudoso Manuel António, é a minha forma de ronronar desejo de amor, de atenção. Na verdade, numa qualquer reencarnação, não me importaria de ser um gatinho do Sr. Pina, para quem, com tanta dedicação ele escrevia.


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