segunda-feira, abril 02, 2018

Nota de Páscoa

Há pouco, tinha na cabeça o que queria escrever como nota neste diário. As palavras estavam lá e tudo era claro. Coisas da cabeça. Agora não sei como deixar o que pensei antes de maneira clara. O intelecto deixou de conjugar as coisas bem, ao contrário do que conjugo no coração.

Cresci com uma ideia de Jesus Cristo construída com os tijolos de duas capelas humildes. A do meu bairro, templo de devoção da minha mãe, e a do bairro dos meus avós, templo de devoção da minha avó. Por isso, e pensando-o bem neste momento, herdei a história do Nazareno graças a duas mulheres, quem sabe como o resto da humanidade, através da mãe de Jesus, Maria, e da (gosto de assim acreditar) sua esposa, Maria Magdalena. Essa ideia de prostituta nunca me fez pensar nada digno de moral ou reflexão para além do oportunismo da carne em detrimento do espírito. Mas, também aqui, sinto que não vale a pena sequer tentar explicar, pois tampouco o sou capaz de fazer.

Através dessas duas mulheres, com a ajuda recrutada dos discípulos, a mensagem, inconveniente para o Império Romano, de um mundo fraterno, de amor construído com as mãos solidárias de um carpinteiro da Galiléia, a culminar numa vida eterna, chegou aos confins das estradas de Roma e, depois, com uma ajudinha portuguesa e espanhola, aos quatro cantos do mundo.

As duas mulheres que me mostraram «esse homem», a minha mãe e a minha avó, também tiveram ajuda de vários homens, porém nenhum deles meu familiar directo. O meu pai e o meu avô nunca me ensinaram a rezar a nenhuma figura, quanto muito ensinaram-me a orar ao silêncio. O primeiro posso afirmar que é crente e vive a crença à sua maneira, felizmente já pouco manietado pela minha mãe. Se Deus existe conhecerá a mulher e sabe o quão persuasiva ela pode ser e levar-nos a peregrinações ou a aturar grupos de casais. Do segundo não posso afirmar o mesmo, com excepção do profundo respeito que nutria pelas crenças dos demais. Não ia à bola com a padralhada e nunca foi arrastado pela mulher para templos que não fossem ao ar livre. Mesmo no final da vida, na tortura que a falta de saúde faz ao espírito, se evocava Deus, não creio que tivesse convicção, quanto muito uma tentativa de alívio que a certeza do sol poderia ter ajudado, se o pudesse ter sentido mais no rosto nesses quase sete anos de tormento.


Como comecei a escrever, o meu coração sabe o que aqui quer deixar, mas o intelecto leva-me para a minha história, a minha biografia carregada de imagens do JC. Muitas, é verdade. Quase todas sem a mais mínima veracidade histórica. Devo-as tanto à instituição igreja, ao negócios de merchandising religioso, como também a gente como o Andrew Loyd Webber. No entanto, se o JC me ficou na mente como um gadelhudo de olhos azuis, devo-o à minha infância e à conveniência adolescente de pensar que poderia parecer-me com ele. É ridícula tal constatação, contudo ainda hoje recorro a ela quando digo na sala de aula «posso ter o cabelo e a barba comprida, mas não sou Jesus Cristo, não faço milagres» e lá entrego as notas, fruto, quase sempre, da ausência do milagre do estudo. Mas isso são contas de outro rosário.

Quando ia à capelinha, ou às capelinhas, em criança, acompanhava a vontade da minha mãe. No caso da minha avó, uma vez que não era a titular da minha educação, sinto que fazia companhia. Na adolescência, fazia a vontade à minha mãe, felizmente a minha avó não exigia a minha companhia. Mas voltemos à infância, já que ia e nem sequer sabia o que era uma imposição, ouvia com atenção as leituras e os evangelhos. As homílias, se tinham alguma acção antes do lado moralizante, também me agarravam se fossem feitas com arte. A bíblia foi-me sendo apresentada em simultâneo às primeiras bandas desenhadas e contos dos irmãos Grimm apropriados pelo Walt Disney. Cheguei mesmo a saber procurar versículos no «livro sagrado», para não dizer que cheguei a pensar que era «o» livro sagrado. Mas as aulas de história depressa se encarregaram de me mostrar as fogueiras. Primeiro as da inquisição, depois as de livros e a bíblia passou a ter mais versões. E não andassem, ao domingo, as testemunhas de Jeová a bater às portas do bairro ou uns jovens americanos, com quem aproveitava para praticar inglês, me tivessem dado a sua própria versão mormón da coisa. Como é de esperar, «as» bíblias foram sendo arrumadas em estantes e servindo para outros usos como, por exemplo, prensa de papel enrugado ou calço para um pé do sofá estragado.

Mesmo assim, nessas narrativas visualizadas na minha cabeça de puto, tal como nos livros que lia do «He-man and the Masters of the Universe», o JC que interpretava os episódios pré e pós Páscoa era o da imagem do lado esquerdo do altar, oposto ao órgão electrónico Casio.  Um Brad Pitt, antes do próprio imaginar ser actor, que tanto ensinava os amigos a pescar homens, curava leprosos, transformava água em vinho, moralizava o andar à pedrada entre a malta, principalmente o de não se atirar pedras às raparigas, duvidava de si mesmo no "Jardim das Oliveiras", fazia jantares de despedida, mesmo sabendo que lá tinha amigos da tanga que o iam negar e, pior ainda, trair por meia dúzia de tostões. Até aí, a coisa até se suportava, mas depois, para fazer a vontade ao pai (em nada parecida à vontade que eu fazia à minha mãe), morria por nós. Porquê? Eu não queria que ele morresse. Era tão simpático, tão bom, gostava tanto de nós, as criancinhas, era tão bonito. E antes de que me apercebesse que dissera aos céus «Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?», ressuscitava, ao terceiro dia, para provar ao incrédulo Tomé que não tem de ser como os espanhóis e tocar em tudo para que seja verdade. E, mesmo assim, depois de morto, andou entre a malta para se ir embora de vez, para sentar-se à direita do pai e eu sem saber que a esquerda tem mais a ver com o que me parece que ele andou para aí a predicar (até o Karl Marx e o Engels decidirem escrever um manifesto que, se fosse posto em práctica e o ser humano deixasse de ser humano, não necessitaríamos subir aos céus para desfrutarmos da sua companhia).

Isto foi o que me ficou na cabeça e o que nem queria escrever. No coração, ficou a ternura pelo homem que, se andou para aí a espetar petas ao pessoal, não merecia ter sido crucificado por isso. Muitíssimo menos que tivesse mentido por nós. Simplesmente, não merecemos tamanha piedade...

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