sábado, outubro 20, 2018

Crónica: "O socialismo só pode chegar de bicicleta" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº145, p.40)

Nunca me dirigi a um público com um ministro a ouvir-me, muito menos a prestar-me atenção, porém, foi o que se passou, há pouco tempo, na apresentação do projecto-piloto U-Bike, na Universidade de Évora, no qual esta instituição alentejana, “alma mater” de parte do que sou, disponibiliza 500 bicicletas (300 convencionais e 200 elétricas) a alunos, professores e funcionários.

A leitura, com mais ou menos nervosismo, lá saiu do livro e foi partilhada. Depois veio a mesa redonda, de formato rectangular, na qual, graças a alguém bastante simpático e talvez inconsciente, participei. 

O painel era espirituoso e viveu uma autêntica etapa de contra-relógio para respeitar o “tour” da agenda ministerial. Um representava o usuário diáfano das suas rodas, crítico do urbanismo e infra-estruras locais, outro, uma cátedra de sustentabilidade e energias renováveis, ainda outro, representando a saúde e exercício físico, até que chegávamos à ponta da mesa (antes do afável moderador cuja voz leva a Rádio Diana mundo fora), e lá estava eu, uma espécie de “representante lírico” das duas rodas.

Senti o peso da responsabilidade e, como é frequente, só me lembrava das palavras da minha mulher: tens de ser mais formal!. Como sempre, tive-as em conta, mas fui incapaz de abandonar o atrevimento protocolar e não pude deixar de recomendar ao Sr. Ministro do Ambiente de Portugal a leitura de um livro, da autoria de Jorge Riechmann, intitulado El socialismo solo puede llegar en bici. Matos Fernandes (não sei se apontou a bibliografia) contestou-me que o socialismo havia chegado de bicicleta. Confesso não saber bem aonde, contudo, ao final da sessão, partilhámos uma gargalhada e demos um bacalhau amistoso, longínquo do frio sueco. 

Só depois de ter coincidido com o sr. ministro, me apercebi que, em Maio passado, o movimento Futuro Limpo, pela mão da escritora Lídia Jorge (e subscrito pelo nosso caríssimo A-P Vasconcelos), pedira a sua demissão graças à dispensa de estudo ambiental para a prospecção de petróleo ao largo de Aljezur. Parece que a Agência Portuguesa do Ambiente não identifica impactos negativos significativos, segundo o que li na imprensa.

Não percebo nada do que percebe a APA, mas creio que Portugal, movido a energias renováveis, não se prospecta no subsolo à procura de hidrocarbonetos. Na realidade, acho que se perfura (desculpem a expressão) estupidamente um futuro mais sustentável.

Quando me cruzei com Matos Fernandes, gostei do seu discurso, simpatizei com o homem e, talvez, por momentos, até tenha acreditado mais na classe política, no entanto tive de voltar para casa, para o outro lado da fronteira, montado numa realidade a gasóleo e não na minha utopia de dia-a-dia ciclista.  

Ser ambientalista, sem ser moralista, não é fácil. É-me difícil ser ecológico ao ver a primeira necessidade de pôr pão na mesa. Por isso reconheço a minha hipocrisia ao ir por aí falar dum pedal(e)ar, duma vida em bicicleta e ao ar livre, de carro. 

Apesar de ser um ciclista urbano, assumo uma completa dependência automóvel para médias e longas distâncias (e até curtas, se levo toda a família). Não é que não me queira deslocar noutros meios de transportes por esse Alentejo e Extremadura fora, é impossível fazê-lo em relação à qualidade/preço, à qual somamos o factor porta de casa, imbatível que o carro oferece. 

Ambas regiões são um claro exemplo de como os interesses relacionados com a rodovia e as industrias automóvel e petrolífera destruíram a rede ferroviária promotora, desde o final do século XIX até ao último quartel do século XX, da fixação de população e do povoamento do interior português e espanhol. 

Não me parece que precisemos de mais carros, nem de mais petróleo, nem de mais obsolescência programada para interesses imediatos sem contemplarem os interesses futuros da humanidade.  Urgem alternativas, sejam elas o comboio, o eléctrico, o burro ou uma geringonça qualquer. Prefiro a bicicleta, não porque seja um grande desportista, mas porque ouso dar à pata nos pedais e sei, como Herberto Helder, que No meio do ar/distrai-se a flor perdida. A vida é curta

Luis Leal na apresentação do projecto-piloto U-Bike, na Universidade de Évora


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