quinta-feira, novembro 29, 2018

Um papel e uma pedrinha

Que eu sou um bocado neandertal é algo já adquirido e assumido. Sou um bocado abrutalhado nos hábitos, espartano em alguns costumes e um grande maricas (leiam a palavra como quiserem) noutros. Sou tão bom a cumprir regras como a questionar outras. Neste caso tem a ver com brinquedos.

O meu filho mais novo, agora no seu primeiro ano de jardim de infância, não pode levar brinquedos de casa para o colégio. Assim nos pediu a educadora, assim nos foi justificado com critérios que nos parecem justos e inteligentes, e, desde sempre, os objectos lúdicos domésticos não frequentam a escola. Não me custa cumprir esta regra e reiteramos estar totalmente de acordo com ela.

Porém, o meu pequenito, com o carácter típico e o desenrascanço de irmão mais novo, todos os dias tenta levar (inclusivamente à socapa) alguma das suas brincas consigo. Aí, o polícia que há nas minhas funções parentais é inflexivel e confisca antes da saída de casa tal material cheio de histórias e sonhos que mal falam.

Tenho a característica de não mexer um músculo facial mesmo que, por dentro, me esteja a escangalhar a rir. Isso é o que me separa da autoridade e do autoritarismo. Tento explicar e, em casa, é raro explicar mais do que três vezes. Se a argumentação democrática não é suficiente, impõe-se a ditadura. Por vezes custa-me esse golpe de Estado caseiro, mas tem de ser.

A sua rebeldia ganha força na sua imaginação. Os seus três anos sem preconceitos nem definições consumistas de brinquedos, enganam a postura parental, o veto imposto desde casa, e um papelinho e uma pedrinha ganham vida nos seus dedos e habitam nos bolsos das suas calças e dos seus casacos.

À porta do colégio, na fila para o seu dia-a-dia, vejo como os outros pais deixam os seus filhos levarem figuras de acção quase do tamanho dos seus próprio filhos, escudos, carrinhos e tantas outras coisas às quais já não presto atenção. O meu filho, ainda sem vergonha de ter o que é possível ter, mostra a sua pedrinha, uma pequenita china polida pelo Guadiana e pelos seus deditos, e o seu papelinho rabiscado em casa enquanto o irmão fazia os TPC.

O eu neandertal, abrutalhado, espartano nos hábitos e um grande maricas, emociona-se e duvida de todos os regimes que tem de impor para educar.
Quando toca, vão todos a correr para a fila onde a mochila lhes guarda o lugar. Ajudo-o a pôr bem as alças e ainda nos abraçamos. Digo-lhe que se porte bem e que o amo. Despeço-me com um «logo o papá vem-te buscar».

Afasto-me mais da fila do que a maioria dos pais. Talvez o faça porque já vivi esta etapa com um mais velho que já entra sozinho na escola, porque não tenho paciência de espírito graxista para estar de roda da educadora a falar das últimas técnicas pedagógicas e de puericultura ou talvez porque sou neandertal, abrutalhado, e não quero que os demais pais conheçam esse eu. Mas o que me diz o papel e a pedrinha vale mais por tudo o que se possa conhecer de nós.

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