domingo, dezembro 30, 2018

Crónica: "Chamar os bois pelos nomes" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº146, p.44)

O mundo era tão recente que algumas coisas careciam de nome e para as mencionar fazia falta que se apontasse com o dedo. Este é o principio de uma das obras mais importantes da história da literatura, esse marco incontornável da narrativa do século XX intitulado Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, no entanto também se pode encontrar no inicio do último livro da filósofa espanhola Adela Cortina.

Ao analisarmos estas linhas de Gabo com tempo (não necessariamente proporcional ao título da obra), apercebemo-nos que toda realidade material se pode apontar com o dedo: uma cadeira, uma caneta, uma revista, uma pessoa, etc. É demonstrativa, definida pela sua tangibilidade. Por sua vez, o que é imaterial, intangível, o que não se pode apontar, necessita uma significação. É por essa razão que ao amor, à compaixão, à lealdade, à ética, à democracia, entre uma quase infinidade de conceitos, há que pôr-lhe um nome. 

Adela Cortina reforça e justifica o uso desta citação com a sua observação dos avanços na meteorologia, na forma como são comunicados aos neófitos as baixas pressões, ciclones e anticiclones. Note-se que, quando se põe um nome a um fenómeno meteorológico, é mais fácil as pessoas identificarem e prevenirem-se dum furacão Katrina, duma tempestade Ana ou dum tufão Jebi.  A partir destas realidades tempestivas ilustra-se a necessidade de significação mencionada. Curiosamente, o mesmo se passa com “a palavra do ano” em Espanha, uma palavra cuja eleição tem por base a sua capacidade transformadora da realidade: Aporofobia.

Aporofobia, do grego á-poros (pobre, desvalido) e fobia (medo, desconfiança), foi eleita a palavra do ano graças à obra Aporofobia: el rechazo al pobre (em português a rejeição do pobre). Adela Cortina justifica este vocábulo com o que ela considera um uso constante e desajustado da palavra xenofobia, denotadora de receio ou temor ao estrangeiro. Apesar dos inúmeros fenómenos xenófobos, não é de isso exactamente que o século XXI está a padecer. Sejamos sinceros, há muitíssimos estrangeiros bem-recebidos, nem é preciso dar mais exemplos do que os desportistas de elite ou os tão benéficos turistas para o PIB. Estamos perante seres humanos cuja diáspora de um continente para outro é feita entre a 1ª Classe ou o Low Cost, em meios de transporte que não se afundam facilmente no Mediterrâneo e não têm de saltar muros e arame farpado para chegar ao seu destino.

Porém, com os pobres, estrangeiros ou nacionais, não se sabe o que fazer com eles. Os desfavorecidos não se recebem com música e colares de flores, tipo Ilha da Fantasia ou Barco do Amor, recebem-se com desconfiança e hostilidade, portanto, para esta filósofa valenciana, havia que encontrar uma palavra, pois apontar com o dedo não é suficiente para identificar esta rejeição ao pobre e não exclusivamente ao estrangeiro.

A políticos, como Donald Trump, não os preocupa os estrangeiros, basta vê-los rodeados de xeques árabes, perfumados a petróleo. Os pobres sim. Por isso promove-se a ideia dos mexicanos, no caso dos EUA, irem roubar trabalho, aumentar a delinquência, depauperar a segurança social, e, logicamente, isso assusta as pessoas em situação social média/baixa, mas que ainda vão subsistindo do seu trabalho e acreditando numa cultura de self made men mais artificial do que natural.

Por todo o mundo a aporofobia aumenta, contudo também há quem se posicione contra esta forma desumana de existir, veja-se a recepção do Aquarius em Valencia, onde ancorou mais do que um barco, ancorou a esperança da dignidade da vida humana estar por cima de fronteiras, nacionalidades ou condições económicas. 

Quando não existe uma palavra para designar o que quer que seja, vive-se a ilusão de não fazer parte do mundo humano. No Alentejo há uma expressão empírica para isso: chamar os bois pelos nomes. A aporofobia existe (e talvez sempre tenha existido, penso eu), tal como essas tempestades estudadas pelos Institutos Nacionais de Meteorologia, por isso, para evitarmos entrar no olho do furacão, numa espiral sem retorno, temos de questionar, como preconiza Cortina, o que nos parece bem: este caminho de exclusão ou de compaixão. 
"Aporofobia, el rechazo al pobre" de Adela Cortina



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