segunda-feira, dezembro 31, 2018

Última nota de 2018

Só me vem à cabeça: 2018, tal como o seu oito, um ano redondo. Duas rodas e ar livre publicados no nosso pedal(e)ar e um Sísifo a rodar uma pedra arredondada pelas colinas do ano que agora finda e, por vezes, nas encostas da aCourela.  

A bicicleta, mais do que em anos anteriores, foi um denominador comum, tal como a necessidade de manter o equilibrio em caminhos pouco cuidados por entidades alheias à minha pessoa. Não houve demasiado espírito de aventura, sim necessidade de percorrer essas vias para poder hoje aqui estar a escrever esta última nota.

Começou o ano com uma cabine de gratidão onde nos primeiros meses do anos fomos dobrando notitas escritas com a energia dos primeiros passos e com o entusiasmo dos nossos filhos. Foi a Elsa quem mais estimulou que cuidássemos dessa pequena cabine pintada pelas nossas mãos. Teve e tem razão.

Os meses foram passando e a gratidão visível em cima do armário da sala começava a ficar aí e não dentro de mim. O trabalho mostrou-se isso mesmo, trabalho. A vocação começou a ser questionada por circunstâncias que, ao contrário do habitual, não pude controlar. Uma besta negra começou a espreitar pelos raios de sol que ainda ia sabendo aproveitar. Vi-a perto mas sem ser capaz de me tocar.

Continuou a labuta, somando-lhe obrigações que a razão queria recusar mas foram impostas ao corpo. A besta já não se contentava com o espreitar, atrevia-se a aproximar-se de mim e a desafiar-me olhos nos olhos. Fruto dum passado intenso a aprender a defender o meu espaço vital, a barreira visual impedia-a de mais atrevimentos.

Neste ambiente, via os nossos filhos a crescerem felizes, a rirem e a falarem alto como crianças que são. O meu coração estava com eles mas o equilibrio da bicicleta durante o trajecto casa trabalho e viceversa, via-se dificultado por algumas pedras soltas, obras do Estado, vandalismo e faltas de atenção minha. 

É quando estamos mais fracos que as bestas cobardes atacam e, em pleno Agosto, sinto uma garra rasgar-me o peito em plena noite. O descanso faz-se vigília, a calma medo, o silêncio um ruído ensurdecedor. Ao meu redor necessitam-me e jamais deixarei que lhes falhe. Isso penso.

As crianças, o casamento, estão bem. O trabalho onde deveria de estar. A família, fora do nuclear, onde quer estar. O meu sorriso habitual continua por costume, por reflexo. Minto constantemente a mim mesmo que a besta não consegue baixar-me a guarda. Sou um guerreiro, basto-me a mim mesmo. Pura ilusão. 

Tudo se atrasa. Projectos, respostas oficiais, bens materias, encomendas, trabalhos. As técnicas de meditação aprendidas numa juventude new age tornaram-se ridículas para a ansiedade de adulto. A cabine deixa de conhecer notitas de gratidão da minha parte. Esqueço-me dela. As vozes e os risos aumentam o volume e todos os sons me parecem gritos. Falo ainda mais alto do que o normal e oiço-me cada vez pior. Lewis Wolpert, um biólogo inglês, falava dum tipo de tristeza, a tristeza maligna. Só conheci essa designação há menos de um mês pelas mãos do Eduardo Punset, mas o sentimento vi-o a sentar-se ao lado de mim, dentro do meu carro parado, num fim de tarde chuvoso.

Continuo a escrever e já estamos em Outubro. O Verão passou sem descansar deixando-me uma característica cínica a qual não aprecio. De passagem, um fim-de-semana em Córdoba em Setembro. No supermercado compro por impulso um livro. Vou lendo e dobrando páginas, sublinhando. De volta a casa, depois desse fim-de-semana, no meio do ruído que me afectava as noites, descubro que a besta já invadiu de vez o meu espaço vital e que eu, no meio de optimismos acéfalos e carácter de não dar parte fraca, o estava a negar. O volume vai alternando notas mais altas entre algum silêncio. 

O ano avançou para o fim e acompanhei-o numa luta contra um sentir não ser eu. Como a Mobile Home que transportei para aCourela durante três quilómetros com o nosso pequeno jipe, arrastei três toneladas para um local destinado a nós, ao nosso bem-estar. A Elsa e os pequenos lá estavam à espera de mim, como sempre. Cheguei e libertei o peso. Vou libertando o peso. O silêncio voltou ao meu quotidiano e voltei a desfrutar de gargalhadas e gritarias infantis. O trabalho voltou a ser trabalho, com uma pequeníssima batalha ganha para poder estudar a 100% durante uns tempos. Aceito este ano redondo que tantas vezes me veio ladeira a baixo e amanso a besta a quem já vou apreciando a negritude. Já não é uma invasora, faz parte de mim, tal como este 2018. Hoje, à tarde, ambos apanhámos sol juntos...

2018 no estandal

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