quarta-feira, fevereiro 13, 2019

Crónica: "O Processo" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº147, p.48)



Imagem da banda desenhada de "O Processo" de Franz Kafka
José P. era um funcionário público com a mania de transcrever citações no seu bloco de notas. A última, de Onésimo Teotónio de Almeida, assim a trasladou: “Para nos apercebermos mais nitidamente das mudanças lexicais e das alterações culturais (...), seria importante verificar a diminuição de termos como dever, honra, respeito, humildade, modéstia, honestidade, virtude, autenticidade, genuíno, compromisso, consciência, lealdade, coragem (...)”. Apesar da intenção de o fazer, José P. não dispôs de tempo para encontrar alguma “app”, ou “googlar”, a fim de saber a frequência com que se usam algumas destas palavras e quais seriam as mais usadas actualmente na sua língua.

Por obrigação (não por vocação), José P. passou os últimos meses, na companhia de outros colegas de profissão, imerso num concurso de acesso à função pública. Assim foi e, consciente da sua imperfeição humana, porém com formação e experiência profissional a habilitarem-no para o desempenho das funções que se lhe exigia, fê-lo da melhor maneira possível e de acordo com a legislação vigente, algo que, apesar da tarefa nada agradável, lhe permitia dormir descansado, sabendo que, graças a este procedimento, não seria atacado pelo “karma”.

Durante o processo, José P. não sublinhou citações. Redigiu e assinou papelada, em especial relatórios de ocorrências (quiçá úteis para guiões de humor, ou de terror, dependendo da sensibilidade do espectador), que agora poderão ser consultados nos arquivos ou “hackeados” da base de dados da administração pública.

Acompanhado pelos restantes membros do júri, José P., ciente da responsabilidade das suas funções, tal como do dever para com os aspirantes, fez tudo o que os seus superiores lhe indicavam, por vezes com certa dificuldade em receber informação de quem lha deveria legalmente transmitir e em condições laborais desapropriadas à obrigação que tinha em mãos. E assim, com um certo estoicismo, tudo se fez.

O acesso aos quadros do Estado decorreu (apesar dos episódios hollywoodescos em acta para a posteridade!) dentro dos prazos e das normas previstas. Como deve ser, todos os candidatos tiveram o direito a serem esclarecidos acerca da sua avaliação (oralmente e por escrito) podendo reclamar tal juízo. O júri estava aí para isso e fê-lo a tempo e horas, debaixo dum olhar (que se espera atento, mas pelo qual não era responsável) dos serviços de inspecção. O certo é que não teve mãos a medir, sendo várias as reclamações às quais esse grupo de profissionais, com José P. à cabeça, respondeu, munido de muitos (muitíssimos) apontamentos, tabelas, grelhas e somatórios de critérios de avaliação.

Fruto, quem sabe, do Verão quente, de movimentos de denúncia necessários, de uma sociedade cada vez mais consciente de direitos, o simples facto de se ser membro dum júri já é motivo de suspeição, quase sinónimo de corrupção. José P. não está livre de defeito, tal como os seus pares avaliadores e tal como qualquer candidato, do mais brilhante ao mais ignóbil.

O dever pesa tanto como o direito. Hoje José P. tem a sensação de só se ter o direito a atirar pedras e esconder a mão. Já que se atira uma pedra, e se pode aleijar o outro, há o dever de mostrar a mão, provar o porquê do apedrejamento.

Numa dessas queixas, alguém afirmou “existirem irregularidades” no processo. O funcionário público, com a mania de transcrever citações, e a sua equipa, respondeu com a justificação imperiosa por lei, solicitando tais irregularidades serem demonstradas. Tão acostumados estamos ao silêncio administrativo, que, desta vez, o silêncio veio de quem reclama.

Cumpridos os princípios éticos e de conduta (regulados pelos artigos 53 e 54), o júri dissolveu-se, voltando ao simples e desacreditado dia-a-dia do funcionalismo público. Os aspirantes ocuparam as vagas por mérito próprio, com tudo de circunstancial que isso implica, e José P. volta ao lápis de sublinhar, desenganado de evolução, respeito pelos direitos e integridade do seu semelhante. Passar do 8 ao 80, é um “processo” mais que kafkiano, é moralizar intrujice com embustice.

“Somos culpados até se provar que somos inocentes ou culpados. Os media e as redes sociais metem-nos no calabouço desde o primeiro momento. O direito ao bom nome e à honra é coisa de séculos passados. Anacronismos...”. Eis uma intromissão de José P. entre as ilustres citações do seu bloco. Enquanto se dilui o processo numa lembrança de ter de ser esquecida, o funcionário pensa “cada vez temos mais medo um dos outros”...

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