quarta-feira, julho 24, 2019

Crónica: "Iberismos" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº149, p.52)



Pensei: “Os Filhos de Oliveira Martins” até era um bom título para esta crónica, faço um jogo de palavras entre o legado do escritor e uma das suas mais célebres obras “Os Filhos de D. João I”... Depressa me apercebi que poderia induzir o meu caríssimo leitor em erro e remetê-lo para essa realidade portuguesa (e espanhola também!) de um apelido valer bastante mais do que um curriculum de excelência.

Contudo, não é sobre endogamia sistémica que para aqui chamo o apelido Oliveira Martins. Há outros bem mais sonantes que os do senhor Joaquim Pedro, o que não impede de estarmos perante uma das figuras-chave da historiografia portuguesa e do iberismo de toda a Península.

E, já que estamos a falar de iberismo, remeto-vos, grosso modo, para três tipos: o iberismo económico (de livre passagem aduaneira, tipo o “Zollverein” alemão); o político (monárquico, com fusão das coroas, ou republicano, a tender para o federalismo); e o cultural, que encontramos associado a Oliveira Martins. Isto, logicamente, se abdicarmos do prefixo “anti” antes de iberismo, esquecendo antagonismos quezilentos.

Com apenas 25 anos, Oliveira Martins, devido à falência da empresa em que trabalhava, ruma a Espanha para exercer funções de administrador da portuguesa “Companhia de Minas de Santa Eufémia”, em Córdova. Aí, a sua experiência vital de quatro anos converter-se-á nessa aventura intelectual, de 1879, intitulada “História da Civilização Ibérica”, cuja essência encontramos condensada neste fragmento:

“Se a geografia é a nosso ver uma causa das graves diferenças que, segundo as regiões, distinguiram os espanhóis na história e os distinguem ainda hoje, mantendo visíveis caracteres etnológicos nem sempre fáceis de determinar nas suas afinidades, essa causa não basta para que, acima de tais diferenças, a história nos não mostre a existência de um pensamento ou génio peninsular, carácter fundamental da raça, fisionomia moral comum a todas as populações de Espanha; pensamento ou génio principalmente afirmado, de um lado no entusiasmo religioso que pomos nas coisas da vida, do outro no heroísmo pessoal com que as realizamos. Daqui provém o facto de uma civilização particular, original e nobre”.

Identificados os fragmentos da Península Ibérica, reconhecidas as brechas, o autor concilia num iberismo que une, mas não uniformiza. É nesta união cultural que reside o seu “génio peninsular”, cujo entusiamo e atrevimento nos levou além de Finisterra. Este iberismo não invalida a integridade territorial e a separação política das nações ibéricas, sendo Portugal paradigmático. A autonomia lusa reside na vontade política de independência e não em supostas diferenças raciais com os restantes povos ibéricos.

Apesar de Oliveira Martins jamais preconizar futuras uniões políticas, nunca deixou de interrogar o porquê da inviável união ibérica, questionando o tradicional nacionalismo português como superação do espírito anexionista de Castela.

Há anos, num casamento, alguém, ao aperceber-se da minha vida se haver encaminhado para Espanha, me chamou traidor. A piada travestia desdém e desconsideração. O meu desprezo costuma imperar, mas a agressividade de outrem atacou afectos indefesos além da fronteira e ecoou, sem sabê-lo, na vida futura dos meus filhos, hoje, tão espanhóis como portugueses. A réplica fez-se com poucas sílabas de boa gíria náutica...

Sei que, nesse momento, o meu iberismo se fez consciente. Também eu, com pouco mais de 25 anos, tal como Oliveira Martins, vi o meu advir da vida, de ter nascido numa cidade à medida do homem, que não nos esconde o que somos. Évora é lusitana, latina, árabe e cristã e fez de mim um rafeiro alentejano, cioso do seu território, da sua intra-história, porém, cujo rosnar protector da singularidade peninsular em nada se distingue de um “mastín” espanhol, de um “can de palleiro” galego, de um “euskal artzain txakurra” e de um “gos d'atura català", vasconço e catalão, respectivamente. Fiéis às cicatrizes da Ibéria, e aos sonhos imprecisos de qualquer rebanho/nação, guardamos uma civilização!

"Iberismos" de Luis Leal


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