Não procuro na literatura respostas. Nem quando leio, nem quando me atrevo a escrever. Mesmo que algo em mim indague o que quer que seja, sei que não busco soluções para o questionário constante da minha existência com pão na mesa.
Sim, com pão na mesa. Como hoje falávamos, o Pedro e eu, escrever, e por que não ler, alimentado não pode ser nunca o mesmo gesto quando o nosso estômago resiste, na penúria, colado às costas fruto de murros de fome e joelhadas de sociedade.
Tenho a barriga aconchegada e durmo numa cama quente. Não vejo os meus filhos subnutridos, nem a minha mulher a fazer das tripas coração para chegarmos ao fim do mês. Se cabe à literatura, à arte, ao artista, denunciar as injustiças, eu também não sei responder, nem me interessa. Talvez porque sou um funcionário aburguesado, talvez porque não esteja comprometido o suficiente com o meu semelhante, talvez porque não sou digno do chão pobre de onde venho.
Vejo tudo a fugir. Não falo dos desgraçados dos refugiados, dos migrantes, dos infelizes cuja sociedade lança às ruas, às valas, ao mar. Desses não posso escrever. Não seria justo com o seu sofrimento e não merecem mais injustiça.
Vejo tudo a fugir. O meu chão. A minha infância. A minha ingenuidade. Os meus mortos. As casas onde habitei. Os meus pais. A capacidade de rezar, ferverosa intenção de jovem crente, parece que já lá vai. Ficou amplificado o silêncio, mas não me grita como então.
Quando vemos tantas coisas a fugirem apodera-se de nós a realidade paradoxal do pensamento. Pensar pesa. É um lastro que afunda o mergulhador descompensado. Vou por aqui fazendo contas no papel, umas quantas equações diárias, para não ir ao fundo. Não quero deixar de mergulhar, apesar de ver o mar cada vez mais cheio de cadáveres de tantas coisas reais e imaginárias.
Comecei a escrever esta entrada de diário por causa de um apontamento sobre literatura e a corrente de escrita levou-me para onde quis. Quando estamos tristes, é mais fácil deixarmo-nos ir. Deixei-me ir. São poucos os que vêem dentro de mim. A minha cara barra muitas entradas com um sorriso afável. Tem de ser. Quem te vê não tem de saber quem és, mas também não merece azedumes, nem rispidez. A amabilidade tem-me salvado de tanta coisa que não lhe posso falhar. A violência vive com mais facilidade dentro de nós e foram raros os momentos em que verdadeiramente me salvou. Não posso deixar que me fuja a amabilidade, não posso... por favor.
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