sábado, março 21, 2020

"Miguel de Unamuno" por Fernanda de Castro

        Perguntaram-me um dia, já não sei a propósito de quê, se, de facto, Unamuno era, como se dizia, um homem duro, um «bicho-do-mato». Não respondi logo, fiquei um momento a situá-lo na memória, a recordar a sua voz grave, os seus silêncios, a sua bela cabeça de castelhano, os seus olhos agudos, a sua boca austera que raramente sorria. Sim, era bem o autor de El Sentimiento Trágico de la Vida e de Vida de Don Quijote y Sancho, Dom Quixote dos nossos dias a esgrimir com inimigos bem mais perigosos do que os inofensivos moinhos.
        Não era fácil fazer sorrir D. Miguel de Unamuno: ou falava de coisas graves com ar grave, de coisas profundas com ar profundo, ou mergulhava num silêncio denso que ninguém ousava perturbar. Mas Unamuno, como todos os grandes homens, tinha o seu calcanhar de Aquiles: à mesa, quando passeava, quando conversava, ia recortando com as pontas dos dedos, figurinhas de papel, bonecos, pássaros, borboletas, tão delicadas, tão graciosas, que parecia milagre terem saído das suas mãos aparentemente rudes. Quem quisesse chamar a atenção de Unamuno, despertar o seu interesse ou a sua simpatia, não lhe falasse da sua obra, da sua filosofia, do seu sentido profundo da vida, mas das suas bonecas, das suas figurinhas de papel. Então sorria, descia do seu pedestal e era o mais simples dos homens, deixando, enfim, vir à superfície o que nele havia de mais humano e de mais fraternal.  

Cf. Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória, vols. I, Lisboa, Verbo, 1988, p. 271.
Fernanda de Castro e Miguel de Unamuno


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