quinta-feira, dezembro 17, 2020

Um estranho lume no corpo (António Gonçalves + David Barbosa)

Fotografia de Tasha F


O meu amigo António Gonçalves enamorou-se de uma jovem que o atende na caixa de um minimercado. Seja qual for o dia da semana, mesmo domingos, lá está ela, sempre atrás da máquina registadora, sempre com o mesmo cumprimento, sempre com as perguntas obrigatórias sobre cartões, sacos e promoções, como se fosse um prolongamento artificial daquela estrutura metálica e de cimento, ou tivesse sido metamorfoseada por uma bruxa má numa máquina falante. O enamoramento do meu amigo é todo interior, apenas dele, platónico, sem qualquer veleidade ou pretensão. Trata-se antes de uma espécie de simpatia ideológica, de um sentimento de solidariedade. De compaixão. O que o leva por vezes a opiniões radicais e muito pouco em moda, como defender que em muitas situações a mulher faria melhor em optar por ser dona de casa, da sua casa, do que sujeitar-se a aturar patrões, empregos alienantes e mal pagos. Sobretudo agora com tantos eletrodomésticos a permitir tempo livre para ocupações mais criativas. Mas ele também acrescenta que o que diz se pode e deve aplicar aos homens, ainda que estes estejam mais habituados a ser burros de carga.

E, ao correr da pena, escreveu este poema num guardanapo:

Dezoito anos. Quase loiros os cabelos.
O verde nos olhos. E um estranho lume
no corpo quando dança.
Saiu agora da longa casa da infância,
e trabalha das nove às seis
algures num subúrbio.
Não gosto de pensar que em breve
não mais terá dezoito anos,
nem quase loiros os cabelos.
Talvez o verde nos olhos, mas já não
um estranho lume no corpo quando dança.



(Fonte: A vida secreta das palavras - O Blog da biblioteca da escola secundária de Tondela)


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