quarta-feira, maio 12, 2021

Crónica: "Memória das Árvores" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº155, p.40)

Memória das Árvores

Laranjeira (Citrus sinensis): O sol da tua infância brilha por entre os ramos duma laranjeira e os dias passam lentos ao sabor das laranjas colhidas a caminho da escola. Para trás um rasto de cascas e cheiro alegre nos dedos.

Plátano (Platanus orientalis): Vê-se bem da janela onde o teu tronco nu se afigura como uma extensão da árvore do largo. Abraça-te a nudez de outrem e soma-se ao teu olhar uma perspectiva de um casal a envelhecer de mão dada até ao dia em que este plátano secar.

Castanheiro (Castanea sativa): “O caminho é uma metáfora da vida” diz-te o peregrino rumo à cidade do apóstolo. Aprecias a boa companhia e vais para o mesmo sítio. Como a verdade, gostas das castanhas cruas, cortadas com a frugalidade da navalha que os teus antepassados te puseram na algibeira.

Pinheiro (Pinus pinaster): D. Dinis lavrou os primeiros versos na tua memória e acabaram por te levar ao Atlântico de Afonso Lopes Vieira. Chegado à beira-mar, com a mansa proteção dos pinheiros que te ensinam a ver o verde do bosque, mergulhas, mas sem nunca descalçares as tuas botas alentejanas. 

Figueira (Ficus carica): Entendes a razão porque Siddhartha se sentou debaixo de uma figueira. O espírito enrama com a generosidade e daí brota o melhor de todos os frutos, o da simplicidade. Já plantaste várias e muitas pereceram, porém duas enraizaram e sustentam todos os futuros possíveis: a do teu tio Leal e a que te ofereceu o planalto mirandês.

Oliveira (Olea europaea): A prole de zorzal persiste na azeitona apanhada, retalhada e temperada debaixo dos ramos duma oliveira plantada e regada por um romano de outrora. O sabor do fruto e a qualidade do azeite lembram que a inteligência foi quem inventou o tempo medido e que apenas acaricias o que de mais superficial supõe esse tempo. O agora, na companhia desta árvore milenária, esquece escalas temporais e é simplesmente vida.

Sobreiro (Quercus suber): Secaram as mil fontes da Serra d’Ossa e ainda assim insistes em matar a sede com esse velho coxo, cuja cortiça foi trabalhada por um catalão da Azaruja.

Cerejeira (Prunus nipponica): Testemunhas como o samurai planta uma cerejeira ciente de honrar a impermanência do seu ser, acabando por contemplar as palmas das suas mãos, calejadas pela empunhadura da espada e pelo cabo da enxada.   

Azinheira (Quercus ilex rotundifolia): Matriarcais chamava-lhes Unamuno. Para quem não crê em aparições és muito devoto desta árvore, talvez porque sabes, como o filósofo biscainho, que a sua bolota alimenta o mais ibérico de todos os animais, o porco.

Lódão-Bastardo (Celtis australis): Confinado o corpo à ventana duma era pandémica, assomas-te ao que tens e ao que podes, observando como a ambição se desvanece. Na proibição de tudo, a tua liberdade é a discreta textura das folhas duma qualquer árvore que conterá a seiva dos afetos que plantares.

Amendoeira (Prunus dulcis): Ouviu-te, em alto e bom som, a dizeres que estava seca e o melhor era cortar. Apesar de não ser majestosa, era digna da sua velhice e da sombra a projetar-se para além de tudo o que poderás ser. Em silêncio, acompanhou mais uma estação e indultou a tua presunção, ensinando-te que tem alma e te presta atenção. Por isso, a velha amendoeira, aquela que pensaste morta, floriu formosa e deu-te as melhores amêndoas de sempre, como que a emendar-se pela secura do ano anterior. 

Tília (Tilia cordata): Pensas na necessidade de se talar a árvore para se construir o mastro. Os argonautas ensinaram-te que navegar é preciso e viver não é preciso, mas, à sombra desta tília do jardim, preferes um Chesterton sedentário a alertar-te para o radicalismo daqueles que pensam que se pode arrancar uma raiz sem se afectar a flor. 


"Memória das Árvores" por Luis Leal

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