segunda-feira, fevereiro 28, 2022

“Alma de 127 – 50 anos de um amigo irrequieto” – Luis Leal ("Diário do Sul", 28/II/2022)

       Manuel Vilas em Alegria (2019) escreveu: “O Renault 5 e o Seat 127 eram os utilitários que triunfavam na Espanha daquele tempo. Esses dois carros foram Espanha inteira e significavam que o Seat [Fiat] 600 tinha morrido e tinha aberto caminho a veículos com mais design, mais audazes nas formas e nos motores, mais livres, mais sofisticados. Esses dois carros avisavam que se avizinhavam mudanças políticas. A indústria automóvel sempre fez gala de clarividência política. Apercebe-se das mudanças antes da literatura, da arte e da filosofia”. No caso português apenas difere que foi o Fiat 127 a avisar-nos que a nossa transição para a democracia far-se-ia com uma revolução.
Imagem de 127 MK2, o primeiro carro de muitas mulheres do último quarto do século XX.

     Em 1972, apesar do seu nascimento em Itália no ano anterior, Portugal vê os primeiros 127 MK1, de duas portas, serem comercializados e rapidamente se tornarem o carro da moda (e do ano!), com uns rotativos 900cc e 47cv de potência, por uns módicos 95 contos (para quem já não se lembra, ou não viveu em escudos, cerca de 20.000 euros, de acordo com o conversor Pordata). Se na vizinha Espanha a patente da Seat representou boa parte do seu povo, Portugal não ficou atrás e, fiel à casa-mãe, montou todas as versões do Fiat 127 na SOMAVE, na linha de montagem portuguesa, como conferimos em 82.000 unidades (dados não-oficiais) com a chapa azul correspondente debaixo do capô, ao lado da placa do número de série, prova de Vendas Novas ser o centro nevrálgico de onde saiu, entre 1972 e 1982 (às vezes com lista de espera), um carro acessível à classe trabalhadora a sonhar com um horizonte de classe média, que, a dias de hoje, parece ter sido uma quimera.
Lançamento, em Itália, do modelo 127 MK1 da Fiat (1971)

O Fiat 127 foi carro do ano em 1972, ano em que se começou a comercializar em massa fora de Itália.

Basta um pouco de honestidade intelectual e encontramos no 127 a primeira massificação automobilística verdadeiramente disponível para o povo português, num país a emergir duma ditadura, esperançoso num futuro de abertura, de crescimento económico e de estímulo ao consumo. Encontramos no Renault 4L (talvez mais do que no R5), na Citroen Dyane e no Mini fenómenos semelhantes, porém, creio que nenhum ilustra de maneira tão contundente uma “alma de pobre” que se atreveu, com genica e funcionalidade, a intrometer-se no imaginário português dos anos 70 e 80, começando a sair de cena a partir dos anos 90, década em que, a par do crédito fácil e da agressividade comercial de outras marcas, foi sobrevivendo em aventuras simples de off-road ao fim-de-semana (envergonhando muitos jipes) ou em trabalhos sujos de gente com um carro principal, mais limpo e moderno, à porta de casa. Com a viragem do milénio, o fenómeno acentuou-se, o abate de veículos incentivou-se, e o fiel 127, entre as vias de extinção e a nostalgia, foi elevado a clássico, mas não ao panteão dos MG, Mercedes e companhia, pois até os clássicos são classistas! Por outras palavras, ascendeu a “clássico popular”, na senda dos Carochas, 2CVs e Minis, o que nos leva, em 2022, a celebrarmos o seu desassossegado meio século. 
Modelo Seat 127 MK2 em aventuras "off-road" em 2012 (Marrocos - Foto de kico Moncada)

A "Guardia Civil" em Espanha soube aproveitar a versatilidade do Seat 127.

    Era o Meat Loaf quem dizia “se a vida é apenas uma via rápida, então a alma é apenas um carro” e dou por mim a olhar pelo retrovisor e ver que já conduzi carros alemães, franceses, ingleses, japoneses..., porém nenhum me ficou tanto na alma como o 127. Na verdade 127’s, no plural, pois pela minha vida passaram três: o “bolinhas” do meu pai, um MK2 branco; o da minha irmã, um espartano MK1 cor de tijolo-burro; e o meu “Testa Rossa” dos pelintras, como eu, uma matrícula portuguesa habituada a rodar em Espanha, lado a lado com a primeira versão do “hermano” Seat 127! Se o do meu pai foi comprado pelo meu avô para viver connosco mais de 20 anos, se o da minha irmã foi o carro inaugural da sua vida laboral, o meu 127 foi uma homenagem à nossa narrativa familiar e uma tentativa de manter vivas as imagens duma infância a desaparecer pelo pára-brisas traseiro que o tempo, dono disto tudo, decidiu guardar apenas para si. Melancolia à parte, foi também um trabalho de honesta investigação com horas de agradável arqueologia de sucata.
Évora, Carnaval de 1983/84, frente de Fiat MK2.

    Aristóteles provavelmente não estaria de acordo comigo, mas se tenho na alma este trio saído de Vendas Novas, o meu 127 tem alma e acredito que, para além de ter o último quarto da história do século XX anotado no chassi, esta máquina irrequieta também tem algo deste escriba (e não tivéssemos ambos sido matriculados no mês de Maio, eu no dia 2, em 1980, e ele, averbado a “vermelho e mais cores”, no dia 3 de Maio de 1976!). No entanto foram precisos 33 anos para nos encontrarmos pela primeira vez em terras raianas de Valencia de Alcántara. Ele vindo de Marvão, uma carroçaria oxidada mas com sabedoria de engrenagens bem oleadas, e eu, oriundo de Évora, fascinado pela sua ferrugem e ansioso por formar parte da sua biografia. À volta, enquanto o meu pai me perseguia no meu carro quotidiano, desfrutei de uma das viagens mais prazenteiras e frugais que tive ao volante, acompanhado por um rádio roufenho e ao ritmo da infracção, isto é, a 120 km/h numa nacional!
FV-18-08 e Luis Leal, Fevereiro de 2020.
    
    Os anos seguintes foram duros para ambos. Eu a enfrentar-me cada vez mais aos desafios ingratos de adulto e ele parado a ser restaurado aos poucos pelo Sr. Bravo, um Miguel Ângelo bate-chapas com oficina no Bairro da Torregela. Mantínhamos contacto aos fins-de-semana, quando regressava para ver a família e lhe trazia notícias de como me ia a vida lá para o outro lado da fronteira. E ali estava o meu amigalhaço a ouvir-me atento e desinteressado de qualquer proveito próprio, apesar de nunca ir de mãos a abanar, tanto era capaz de lhe levar uma porta nova, um embelezador qualquer, cintos recém-chegados de Itália, um manómetro de um homólogo espanhol, etc. Enfim, quem me trata bem merece reciprocidade e aquele vetusto 127 tornara-se mais do que meu confidente, tornara-se um amigo da alma.
A verdadeira "alma" do 127: um motor de 900cc (com 47 cv) numa carroçaria apelativa para a época.
    
    Começámos a recuperar o fulgor em 2012. Ele com um “lifting” (restaurado de A a Z, como se diz na gíria) e eu babado com o meu primeiro filho, a passearmos felizes, mas sem a segurança ISOFIX pelas ruas de Évora. Os anos seguintes, sempre protegido pelo cuidado meticuloso da garagem dos meus pais, foram os da consagração. O meu amigo entrou num programa de televisão do Canal Extremadura, passeou pelas estradas alentejanas, presumiu de elegância retro em alguns casamentos e batizados, foi presença assídua nas ruas de Elvas e Badajoz e viu ser-lhe posta mais uma cadeirinha para o meu segundo filho, tudo isto com a banda sonora de k7s áudio, de lado A e B, que nos obrigou a ir mais lento – possivelmente sem a melhor qualidade associada ao pós-modernismo que em troca só nos dá obsolescência programada  –, mas mais seguros de nós próprios, o que nos ajudou a superar confinamentos, distâncias físicas (os dois achamos isso de “distanciamento social” uma treta!) e a perda do estacionamento seguro eborense. Ainda estivemos algum tempo protegidos pelo ambiente bucólico, numa bela quinta, onde o pôr-do-sol tem cores de aquarela. Ali o 127 enriquecia a paisagem, como o enriqueceu o meu terceiro filho. 
Évora, Templo Romano, 2013.


Fronteira do Caia, 2014, a emular a viagem de Win Wenders em Lisbon Story (1994)

Pormenores das gravações do programa "Falamos Português" (2013) do Canal Extremadura Televisão

    Impôs-se a realidade através da fragilidade. Mais uma vez o tempo, amo e senhor, indiferente a dilemas de segurança do presente, tal como as gerações anteriores que brincaram no assento traseiro dos automóveis da sua época. A verdade é que quando conheci o meu amigo era apenas um jovem comprometido com a história e os afectos reminescentes nos cromados dos seus pára-choques. No dia em que nos despedimos não o fiz sozinho, fi-lo com uma família considerada numerosa para o paradigma do século XXI. A despedida não foi custosa, pois quem estima deseja que o outro mantenha o seu brilho e assim continuará o FV-18-08, a luzir uma alma que perdurará além da própria saudade e do fim dos combustíveis fósseis! Estamos a falar dum 127, essa matriz ladina e latina que inspirou o 147 no Brasil e na Argentina, teve versões comunistas na Europa de Leste e, sem conflitos a necessitar intervenção americana, foi a base do russo Lada Niva! Mas o mais importante é o valor da amizade e o valor que me ensinou a dar a tantas coisas... Antes do adeus rimo-nos quando lhe disse: “Eh pá, tu daqui a mais 50 anos ainda por aqui andarás para as curvas, já eu duvido muito!”. 

Fiat 127 e Luis Leal (2013), Évora, Alto de São Bento.

(Texto escrito de acordo com a antiga grafia)

Cf. Luis Leal, “Alma de 127 - 50 anos de um amigo irrequieto”, Diário do Sul - Dom Quixote, Suplemento de Artes e Letras, ano 53, nº 14.219,  28/II/2022, p. 5.

Mais fotos algumas fotos deste modelo com alma:



O 127 dos meus grandes amigos Ángela e Pedro (anos 90).

1 comentário:

  1. Luís Leal, siempre es una delicia leerte, sensibilidad, sencillez y una dosis de nostalgia, como buen portugués. Un abrazo.

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