“O passado não é um sonho” – Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 162.
“Tinha oito anos quando o meu avô me agarrou a mão e não a soltou até que encontrámos os meus pais em Atenas. Quem sabe o que poderia ter acontecido se tivesse ficado na aldeia. Era 1946. Princípio da Primavera de 1946. As amendoeiras floresciam lado a lado e o campo estava no seu esplendor”. Assim começa um dos livros mais autobiográficos de Theodor Kallifatides, porém ainda desconhecido do mercado editorial português que recentemente acolheu “Outra Vida Para Viver” com a chancela da Quetzal. Se de mim dependessem critérios editoriais, começaria por traduzir este “O Passado Não É Um Sonho” do escritor grego exilado na Suécia que decidiu fazer da sua língua de acolhimento, o sueco, a principal para a sua obra até aos últimos anos em que regressou à sua língua amniótica. Desde o primeiro momento em que me cruzei com a sua obra, deleitei-me com uma escrita simples, contudo magistral, a narrar a sua vida desde que abandonou a terra natal até que a ela retornou, volvidas décadas, para o homenagearem já como escritor consagrado. Desta forma acompanhei a sua infância e adolescência numa Grécia governada por regimes autoritários, vi nascer a sua consciência política e de classe, assisti à descoberta da sexualidade e do amor, embarquei para o exílio e admirei a sua surpreendente capacidade para refazer a sua vida laboral e criar uma família, enquanto se afirmava como escritor de ficção, ensaio, autobiografia e do género, agora tão na moda, de autoficção. Cheguei a Kallifatides graças a outro grande (e um dos poucos críticos literários que tenho como referência), o poeta espanhol Álvaro Valverde. A sua leitura tem sido um verdadeiro convite à reflexão e à escrita, e a verdade é que me parece que me penso (e me escrevo) de maneira semelhante (com a devida distância entre a mestria do grego a escrever em sueco e dum português a abdicar do infinitivo pessoal para expressar-se em espanhol).
“A Pátria é lá onde a vida não precisa de explicações”. Onde é exactamente esse lugar? Cada um tem as suas próprias coordenadas, como cada um tem o seu próprio destino quando se lembra “em demasia quem é”, pois nunca se atreverá a adentrar-se noutra sociedade e “será sempre um estrangeiro”. E como é possível ser-se escritor numa língua alheia ao ventre materno? Theodor Kallifatides tem a amabilidade de responder: “Um escritor ora escreve na língua que conhece bem ora na que não conhece, mas escreve. Talvez caminhe com muletas na outra língua, talvez avance de joelhos, talvez se arrastre como um verme, mas escreve, simplesmente porque necessita, porque a sua mensagem é maior do que ele mesmo.”. Não creio que tenha grandes mensagens, tenho grandes necessidades e medos. A literatura não é apenas narrar histórias, não é apenas ideias e mensagens, é o mistério da própria escrita e como ela é sinónimo da nossa condição. Indiferente a idiomas, escrevemos porque somos humanos. “O Passado Não É Um Sonho” é mais do que um livro, é uma declaração de intenções. Alguns podem perguntar, porquê recorrer ao passado para aludir a assuntos preocupantes de um mundo a voltar a investir parte significativa do PIB em armamento? Porque Kallifatides, que foi neto, filho, pai e hoje é avô, teme que o passado já não seja conhecido e ignorância é diferente de esquecimento.
Não sei se chegarei a avô, no entanto, ainda antes de conhecer este escritor, sentia não conseguir escrever o que antevejo como uma potencial tragédia: uma criança perder os seus pais. Eis a decisão de Kallifatides ser também a minha e agradeço-lhe por verbalizar esta necessidade impossível de se redigir: "Desta forma, [durante a guerra civil na Grécia, depois da 2ª Guerra Mundial] uma coisa era certa. A maior tragédia para uma criança era perder os seus pais. Talvez tenha sido quando tomei uma decisão que influenciou a minha vida mais do que qualquer outra. Jamais abandones os teus filhos. Nem mesmo morto”. Por isso escrevemos.
Sem comentários:
Enviar um comentário