Apresentação de Criptopórtico de Ruy Ventura (Portalegre, 24/III/2023)
Antes de mais, permitam-me saudar todos os presentes e agradecer ao Ruy Ventura a amizade e a consideração ao querer ter-me aqui, nesta cidade tão importante no percurso vital de ambos, a acompanhá-lo na apresentação deste seu Criptopórtico. É uma honra e uma responsabilidade, pois as minhas palavras são limitadas para a apreciação de um poeta como o Ruy Ventura, mas, como sabe, a estima que por ele tenho exige-me a tentativa de superar as minhas limitações.
Conheço a obra do Ruy Ventura desde 2015 e tive a privilégio de o conhecer pessoalmente, também no mesmo ano e, casualmente, também num mês de março, ao apresentá-lo em espanhol na Aula de Poesía Díez-Canedo de Badajoz, onde a figura do poeta se sobrepôs às facetas de investigador e de divulgador cultural (destacando-se como co-director da revista iberoamericana de cultura Devir), sendo parte integrante de uma lista de ilustres da lírica peninsular que merece a pena consultar.
Resgatei para português o que escrevi na época e parece-me pertinente voltar a partilhá-lo em público: “Não é o tempo cronológico que põe as vírgulas na poética de Ruy Ventura, quiçá alguns grãos de areia ou ramos podados de alguns momentos que enchem uma casa, cujos alicerces são uma espécie de raiz a suster uma arquitectura de silêncio. Desde o relevo encontramos a força telúrica da serrania, a escrever e a reescrever a sua voz. O poeta persegue imagens a caminhar com a lucidez do vate que não fecha os olhos, que fotografa tudo porém sem encontrar nada para revelar. E por que razão se tem de revelar o olhar? (...) Ao optar pela prosa, narra o poético que encontra no seu universo, com uma linguagem a deixar deslumbrar-se pelo seu próprio movimento, chegando ao ponto de permitir ferir-se pelas suas imagens. (...) Ao guardar nos olhos as sementes, o poeta logra abandonar a brevidade e as correntes que podem ser as nossas raízes, obturando, sempre, em gestos impregnados de nitrato de prata, a sombra da sua original voz poética.”
Hoje, volvidos oito anos, Ruy Ventura não é apenas esta poesia em prosa compreendida nas minhas limitações de leitor de então, esse lirismo narrativo cuja riqueza de léxico (e que riqueza, diga-se de passagem!) sobrepassa densidades, adjetivações e adentra-se num território vasto, possivelmente indecifrável, com exceção para aqueles que conhecem a agrestia desta serra e a solenidade destas vistas.
Contudo, a herança do húmus, quer biográfico, quer da devoção a Raúl Brandão, afastam este Criptopórtico da exclusividade da mencionada solenidade, isto é, a erudição que o leitor encontra nos primeiros capítulos “Contramina” e “Arqueologia” (onde o poeta denota outras vocações e a presença da academia, que o reconhece como historiador da arte e intelectual) não é alicerce e dilui-se num tom intimista, desmorona-se em plena “Sismografia”, evidenciando a luta entre uma crença que não é impermeável à dúvida que, enquanto elemento de escuta, é também a voz de Ruy Ventura.
“Passagem”, por seu turno, não depende da dúvida e não questiona a redenção para a literatura de Judas Iscariotes, Simão Pedro ou Lúcifer, admite a poesia como via sacra e assume o poeta como peregrino, não só através do caminho, mas pelo desbravar da escrita. Admiro esta “Passagem” de um poeta que, num presente dessacralizado, tem a coragem de se ajoelhar perante um altar matriarcal, que muitos são incapazes de conceber para além de uma simples manifestação de “fé de Portugal”.
A arquitectura deste Criptopórtico leva-nos à base alicerçada da casa, da infância, do passado de um jovem poeta presente no “horizonte com cidades ao fundo” de um poeta adulto que, como tantos outros, saiu, da sua cidade sem jamais abdicar da honestidade para com o seu substrato.
“Apócrifos”, possivelmente o mais biográfico de todos os capítulos, encerra esta antologia com um poeta que, através da sua lírica, se compromete mais além da poesia, indagando sobre o monocultivo artístico, a frivolidade de um certa intelectualidade (se é que podemos mencionar intelectualidade) e se assume como cidadão livre e guardião de valores que esta pós-modernidade, líquida, carente de pensamento simbólico e deselegante, faria com que José Régio, provavelmente, reecrevesse o seu “Cântico Negro”, reivindicando transfusões de “sangue velho dos avós” para alguns que se autoproclamam poetas e que nem sequer lêem, muitíssimo menos poesia…
Ruy Ventura pergunta-nos se “valerá a pena escrever?”. Atrevo-me a responder-lhe que escrever é uma necessidade à qual nos prostramos como seres marrecos que somos, ou, como ele próprio bem sabe, há quem seja como esses rebentos, esses pés de burro, que teimam em resistir à pode e ao herbicida, e, se vêem a sua sobrevivência ameaçada, têm a lucidez de se transplantar.
Caro amigo, não sei se te lembras, mas, no dia 24 de Julho de 2015, escreveste esta discreta entrada de diário que sublinhei sem imaginar que hoje, nesta bela cidade de Portalegre, ta ia recordar:
“Gosto de ler, pensar e escrever nesta espécie de jardim sem flores, fitando as oliveiras. Como eu, são alentejanas exiladas que, apesar do desterro, vão agarrando a terra com as raízes, produzindo rebentos, resistindo a podas sem tino, produzindo fruto que só alguns aproveitam. Sobreviveram ao deserto e à barragem, mas tiveram de migrar. Também eu, se me permitem.”
Migrar não se adapta a ti (e, se me permites, tão-pouco a mim), nem sequer esse transplantar típico das nossas oliveiras. As tuas raízes há muito que superam pedra, entulho e secas circunstanciais, têm a longitude da nossa Ibéria e bebem em vários mananciais… No entanto, nada como podermos saciar a nossa sede na terra que nos brindou generosamente com as primeiras gotas…
Muito obrigado pela vossa atenção.
Luis Leal
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