"Descendente" - Luis Leal
Desde miúdo que sei o que é um “esgazeado”, quero dizer, sei bem o que é ter os olhos abertos de espanto, medo ou estar ofegante e esbaforido, a roçar a loucura. Nascer no Alentejo dotou-me desse vocabulário de forma tão natural que só na vida adulta me apercebi de ser parte da história de tantas famílias à qual a minha não escapou.
Sou descendente de esgazeados, concretamente os meus bisavôs maternos Leopoldo e Umbelino, combatentes da 1ª Guerra Mundial, vítimas das trincheiras e do gás mostarda. O meu bisavô Leopoldo até foi dado como morto no Redondo e ressuscitou de volta a Portugal depois do cativeiro alemão. Pouco mais sei sobre ambos, a miséria do Estado Novo assolou os seus filhos e poucas histórias me ficaram para genealogia.
Os meus avós João e Ventura também andaram pelas lides militares, nos anos 40, mas a “neutralidade” de Salazar apenas os levou a cumprir o serviço militar obrigatório e a única experiência que me legaram foi de humor, com o meu avô João a guardar, toda a noite, no Forte da Graça de Elvas um morto qualquer. Isso e irem e voltarem, a pé ou de bicicleta, nas licenças, da raia para a zona de Évora. Gente rija, mas, dessa época, também foram parcos em informação, sendo o meu tio António quem, por profissão (carpinteiro) e posição social (presidente da junta), mais me ilustrou como se vivia nessa época, relatando negócios ao longo das vias do comboio (arrancadas na minha juventude) e passagens de espanhóis em direção ao Atlântico. Hoje, mais ou menos com uma experiência e cronologia de vida semelhante, sinto-me muito identificado com esta geração, enquadrada numa transição que nasceu de uma guerra, viveu revoluções políticas, crises económicas e, dada a turbulência dos tempos, aplaude enquanto nos tiram a Liberdade.
E chegámos à geração dos meus pais e dos meus tios. Esses jovens, entre 1961 e 1974, educados num colonialismo de metrópole longínqua a quem a instituição militar portuguesa abriu os quadros de sargentos e oficiais devido ao esforço de guerra em África (em proporção, sete vezes superior ao do Vietnam) e não por democratização de castas. É óbvio que não se obrigaria os descendentes de alta patente a irem para o mato de G3, camuflado básico, boné abas de grilo em vez de um capacete, ainda por cima com um macuto cheio de fome. Haveria cunhas no regime para ficar livre ou, no pior dos casos, atrás de uma secretária, em mangas de alpaca. A brigada do reumático recrutou na casa de quem menos tinha e, por si só, já sobrevivia. Gente como o meu tio Manuel, o meu pai e os seus camaradas, que foram parar com os costados ao Ultramar devido à sede de poder e recursos que a história nos acostumou.
Aqui entro eu, duas décadas depois, livre da tropa (mas com cédula militar e inspeção testicular na Calçada da Ajuda), filho da madrugada de Abril, nascido nos hospitais do SNS, formado pelo ensino público português, a fazer a mala para rumar onde quer fosse (quis a vida que fosse Espanha), num dos momentos mais marcantes da minha existência a falar com o meu pai. Durante anos queremos afastar-nos da sua personalidade, crescer, ser e ter a nossa individualidade. Sou e quero ser diferente do meu pai (apesar de emular com os meus filhos, as velhas fotografias às suas cavalitas). Ele não foi criado como eu, às mãos do afecto, e a reserva, a timidez, levaram as suas emoções a não aflorar a cores e, muitas vezes, continuam no preto e branco da RTP dos anos 70. Porém, como descendente, jamais esquecerei esse dia em que o meu desânimo e imaturidade me faziam crer estar na pior situação do mundo. O meu pai, pouco dado às palavras e aos meus dilemas, disse-me: “Luis, eu, com a tua idade, estava no Ultramar e nem pensava se ia ter trabalho ou não, nem sequer sabia se ia voltar vivo…”. É possível que o meu olhar regressasse ao esgazeado dos meus bisavós e os meus testículos tenham reagido de forma mais natural do que ao toque do médico militar, mas sei que esse dia o meu pai fez de mim um homem.
Escrevo esta crónica no 50º aniversário do 25 de Abril, e, com toda a incerteza do presente, há algo que quero reivindicar para sempre: o legado de uma geração que, com todas as suas conquistas e fracassos, teve tomates para lutar pela democracia. Eu não sei se os teria…
Foto de Mário Ventura (1974) |
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