sábado, outubro 31, 2015

Parabéns, Carlos Drummond de Andrade!



Carlos Drummond de Andrade nasceu a 31 de outubro de 1902. Há alguns anos que esse dia foi eleito para o dedicar a ele e à sua Obra: o Dia D. Leiamos Drummond, a melhor maneira de manter vivo um poeta.


Poesia

Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.



terça-feira, outubro 27, 2015

"A espada" - Olav H. Hauge


A espada
Corta
Quando se desembaínha,
Se não outra coisa
- o ar.

Uma Palavra (Olav H. Hauge)

- uma pedra
Num rio frio.
Outra pedra mais -
Tenho de pôr mais uma pedra
Para poder cruzá-lo.

A Gracia disse, realista e bem viva, que conhecia tanta gente com vontade de escrever e de se publicar. É verdade. Para quê?
Talvez para mim seja para que não fique tanta merda cá dentro. Tenho tanta e tão inútil que na casa de banho não fica toda.
Restos de papel... Higiénico como tanta literatura que por aí anda. A minha não é diferente. Talvez seja merda que anseia ser estrume e poder fertilizar a terra de uma flor vindoura.
A Gracia tem razão. Eu não lhe disse nada. Fiquei calado com a sua verdade, mas escrevi a minha numa nota solta a lápis, mais provável de se apagar que de se publicar.

Sobre a tradução de poesia (Zbigniew Herbert)

O poeta polaco Zbigniew Herbert



SOBRE A TRADUÇÃO DE POESIA

Como um abelhão desajeitado
pousa numa flor
vergando o frágil caule
abre caminho com os cotovelos
através duma fileira de pétalas
através das folhas de um dicionário
quer chegar
onde se concentram a fragrância e a doçura
e embora esteja constipado
e sem gosto
continua a tentar
até que a cabeça choca
contra o pistilo amarelo

e não consegue ir mais longe
é tão duro
forçar a coroa
até chegar à raiz
por isso levanta voo
emerge pavoneando-se
zumbindo:
eu estive lá
e aqueles
que não acreditam nisso
olhem para o seu nariz
amarelo de pólen

Zbigniew Herbert 



Tradução de Jorge Sousa Braga



Em Poesia ilimitada



 

quinta-feira, outubro 22, 2015

Confunde-se gratidão com lamber cus.

Confunde-se gratidão com lamber cus. Estes tempos presentes são demasiado impessoais, há demasiados egos e interesses ocultos que nos fazem até desconfiar da verdadeira generosidade e altruísmo. É-se generoso porque sim. Poder-se-ia falar de ética, moral, até mesmo de natureza mamífera que se sobrepõe ao darwinismo reptiliano que existe na maioria das relações humanas, de maneira a que se possa sobreviver de forma gregária para assegurar a sobrevivência da espécie através da sua reprodução.

Apenas sei que a verdadeira gratidão vem do coração, que não se confunde com bajulação, ajoelhada, interessada, com restos de saliva cínica e submissa após qualquer acto de sucção.

Pode parecer anacrónico, mas ainda acredito nessa velha palavra, que o meu pai me ensinou a usar, que é a estima. Estima e gratidão confundem-se muito dentro de mim, mas não me provocam más digestões, pelo contrário, ajudam-me a digerir calmamente aquilo que o dia-a-dia me vai fazendo engolir. 

domingo, outubro 18, 2015

Minorias em sintonía não é sinal de bom senso em democracia?

Quando as minorias se põem de acordo e se juntam num programa comum não se convertem em maiorias? Não há legitimidade eleitoral num possível consenso histórico da esquerda portuguesa? O que pensará o Sr. Aníbal Cavaco Silva sobre estas maiorias de minorias em consenso? Estará mais preocupado com os consensos do eixo franco-alemão que dos próprio portugueses? Caramba, tantas perguntas para as quais não tenho resposta…. Talvez a sabedoria de uma criança me possa ajudar. Acho que o Sr. Presidente tem netos, talvez possam ser bons assessores. 
Pelo sim, pelo não, vou perguntar ao meu filho de quatro anos como é que ele resolveria isto com os seu colegas de sala de aula na sua assembleia matinal lá no colégio... Com quatro anos não acredito que já estejam agarrados ao poder. A educadora zela bem pela saúde democrática da sua sala!

terça-feira, outubro 13, 2015

Um excerto do prefácio ao livro "Os Lagóias e os Estrangeiros", da autoria de Rui Cardoso Martins, onde fala sobre os "Lagóias" (Cortesia do Miguel Cebolas)

[...] Serão raros os portalegrenses que não sabem que um portalegrense é um lagóia. Quase tão raros como os que não sabem o que lagóia quer realmente dizer. O apodo, ou alcunha meio afrontosa, tem provavelmente o percurso das palavras que perdem, ou ganham, alguma coisa com o tempo.
No caso parace que se perdeu um "n". Alexandre de Carvalho Costa, nos seus "Gentílicos e Apodos de Portugal Continental", recordou uma conversa com o ex-juíz de direito na cidade, Joaquim Dias Loução.
Poucos portalegrenses, ainda hoje, poderão desmentir esta hipótese publicada em edição de 1973 pela Junta Distrial de Portalegre: lagóia virá de langóia, por sua vez proveniente de langor, que mais não é que "moleza, prostração, preguiça". 
O contexto: "Portalegre é cidade de há muito industrial, com fábricas que ocupam muita gente; quando por falta de matérias-primas, ou outras circunstâncias, as fábricas tinham que fechar por algum tempo, os sem-trabalho, os inactivos demoravam-se às esquinas, nas ruas, nos largos." À espera de melhores dias, continua, "dada a sua falta de hábito para os serviços do campo."
O juíz Loução rematava nunca ter percebido a desnalização do "an" de langóia. Mas um lagóia, por intuição, pode chegar lá. Na sua vocação escarninha, no gosto pelo ridículo auto-aplicado, largou-se em menor esforço o tal "n". Um processo irmão ao das alcunhas com que metodicamente se carimbam os lagóias uns aos outros (eu tenho, Portalegre), património da cidade. Ou do calão ofensivo com que se cumprimentam e divertem no dia-a-dia os melhores dos melhores amigos, em Portalegre, sem se ofenderem. [...]

domingo, outubro 11, 2015

Perguntas de um operário letrado (Bertolt Brecht)




Perguntas de um operário letrado



Quem construiu Tebas, a das sete portas?

Nos livros vem o nome dos reis,

Mas foram os reis que transportaram as pedras?

Babilónia, tantas vezes destruída,

Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
da Lima Dourada moravam seus obreiros?

No dia em que ficou pronta a Muralha da China
para onde
 Foram os seus pedreiros?
A grande Roma

Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?
Sobre quem

Triunfaram os Césares?
A tão cantada Bizâncio

Só tinha palácios

Para os seus habitantes?
Até a legendária Atlântida

Na noite em que o mar a engoliu

Viu afogados gritar por seus escravos.



O jovem Alexandre conquistou as Índias
.
Sozinho?

César venceu os gauleses.

Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?

Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha

Chorou. E ninguém mais?

Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
. Quem
mais a ganhou?



Em cada página uma vitória.

Quem cozinhava os festins?

Em cada década um grande homem.

Quem pagava as despesas?



Tantas histórias
,
Quantas perguntas.

Bertolt Brecht



"Não me digam!" - "Os Lagóias e os Estrangeiros", com textos de Carlos Garcia de Castro e fotos de Raul Ladeira (cortesia do meu amigo Miguel Cebolas)

Portalegre é Portalegre. Um porto de "alegria portuguesa" no sopé duma serra que nos remete para o Islão... Uma toada régia que está no meu coração... Poema "Não me digam!" em "Os Lagóias e os Estrangeiros", com textos de Carlos Garcia de Castro e fotos de Raul Ladeira (cortesia do meu amigo Miguel Cebolas, a quem agradeço com um abraço!)


sábado, outubro 10, 2015

Caso "deputado/a"

A propósito do caso do José Rodrigues dos Santos, lembrei-me da sabedoria do Manuel António Pina (que tanta falta nos faz): "Às vezes às nossas palavras dizem mais que nós; porque é nelas, e não na razão calculista, que pulsa o coração, «o coração revelador» como diria Poe. E o coração das palavras (-actualizo eu- do José Rodrigues dos Santos) está cheio de sombras terríveis."

Saudade, essa exclusividade…(in Revista "Mais Alentejo" nº129)


Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda.
Clarice Lispector

Cresci com epopeias marítimas, que deram novos mundos ao mundo, como um dos eixos fundamentais da biografia inigualável dum povo. Porém, quando viajo no tempo e procuro o primeiro acto real de exclusividade, inigualável e colectiva, da minha gente, aterro na consciência da minha adolescência com o peso do Gama navegador, extraído da audácia d’Os Lusíadas, convertido então em Vice-rei dum viaduto de tabuleiros unidos na ponte mais longa da Europa.

A inauguração da Ponte Vasco da Gama vincou-se no Guiness através da maior feijoada, refogada em massas pelo primeiro chef em Portugal benemérito duma estrela Michelin. Na actualidade, a estrelinha de Michel ofuscou-se por coisas que nada têm a ver com feijões, mas almas como a minha jamais esquecerão o talento de servir a maior mesa de refeição posta, com cinco quilómetros de pessoas sentadas a enfardarem dez toneladas de uma leguminosa com potenciais efeitos colaterais. (Pergunta o cronista o porquê de uma feijoada e não um cozido? Um bacalhau à Gomes Sá ou Zé do Pipo? Já que se tratava da exclusividade da portugalidade… Ainda hoje o atormentam estas decisões pátrias!).

Tantos anos depois, e sem nunca se ter analisado o impacto ambiental deste menu, deparo-me constantemente com outra exclusividade lusa: a da saudade.

A saudade é um exclusivo do colectivo português. Quem for de fora não se atreva a sentir semelhante coisa. O peso do vocábulo é muito mais do que pura nostalgia do passado, ausência do lar, necessidade ou anseio de um porvir. Por isso, nem pensar nisso! Sem BI português não há saudosismo para ninguém! (Vá lá, um da lusofonia ainda permite admissão no clube!).

Eu mesmo, que vivo da língua onde nasci, já parti tantas vezes esse vidro que diz “partir em caso de emergência” para defender e fundamentar a exclusividade da saudade. Como extintores à mão tenho os grandes Camões, Bocage, Teixeira de Pascoaes, um exército de clones Pessoano, o guia no labirinto de Eduardo Lourenço, e um Google a transbordar em citações. (Até já o cronista recorreu ao fado - esse património intangível tão útil, se se tem falta de imaginação, para vender a um turista em Lisboa o que é nascer e ser-se neste pequeno rectângulo ibérico –.).

Se não chegam as tropas disponíveis na frente on-line, recorro ao arsenal secreto de sebentas dos meus mestres, como o finado Cunha Leão ou o meu caríssimo Cândido Franco para que nos diálogos parafraseados aos meus alunos, em que ponho a gravidade da minha cara de intelectual nº27, lhes explique o perigo de confusão com a morriña galega, a añoranza hispana, a yearning anglófona, creio que a Sehnsucht germana, enfim, por favor não se atrevam com trasladações do sentimento do ilustre peito lusitano para peitos alheios, logo não autorizados a decifrar o enigma de tão peculiar caixa toráxica.


(Aqui o cronista não é capaz de pôr a cara nº27. Fica-lhe mal. E para ser sincero com estas linhas, nem ele, que tem na carteira um cartão de cidadão português, está totalmente convencido dum sentir agregador de espaço/tempo passado, presente e futuro. Tal como a feijoada exclusiva da Ponte Vasco da Gama, os efeitos da nossa saudade são iguais num português ou num espanhol. Isso sim seria mais honesto da sua parte elucidar quando lho perguntam. Fica a sinceridade da sua saudade no tinteiro, a única exclusividade a que se pode permitir…).  

domingo, outubro 04, 2015

Syrinx, ficção pastoral (António Franco Alexandre)

VI

As palavras pouco importam: um murro
no estômago, uma vez, alguns pontapés,
chumbo na escola a português, pra mais depressa ver
como se trama a vida, silenciosamente.
Quando se canta é diferente, a voz
pode quebrar-se contra o corpo, e quebra
alguma coisa por detrás da boca
como uma mão mirambolante e escura
que se viesse, dentro, na explosão
de pedaços de carne incandescente.
Acontece também cantar calado, ou com a boca
fundida nos lençóis, pra me esquecer de quem
agora me cavalga por um jantar no poço,
passeio de automóvel, duche morno,
e depois as moedas que se deixam
caídas no passeio como estrelas.

antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio&alvim
1999


Lido no blogue canal de poesia



GRAMÁTICA DE COENTRO E CAL – Manuel Alegre (in “Alentejo e Ninguém”)

                A Vitorino

Gramática de coentro e cal
Geometria do branco e do verão
solidão como sinal
quase cigarra quase pão
em seu falar como um cantar de amigo.

Aqui acaba o último e o primeiro
e o um procura o outro seu igual
para dizer um nome entre azinheira e trigo.

Este é o chão mais puro e verdadeiro.

E as sombras sentam-se comigo
à sombra de um sobreiro.


sábado, outubro 03, 2015

Uma fotografia de Helen Levitt



Nova Iorque, 1988. Phone Booth, fotografia de Helen Levitt.