segunda-feira, outubro 17, 2016

A linha da vida

Se a vida for como uma linha desenhada num papel branco, um risco com princípio e fim, em que parte me encontrarei? 
Pela idade contabilizada no bilhete de identidade, espero encontrar-me uns restos de tinta, ou de antracite se se desenhou a lápis, antes do meio do traçado. 
Irwin Yalom, psiquiatra e célebre autor do "O dia em que Nietzsche chorou", usa esta analogia linear com os seus pacientes, exigindo-lhes uma localização cronológica e uma reflexão no baú dos remorsos. 
Não tenho muitos, mas tenho alguns, quase todos relacionados com perdas de tempo e com condutas pessoais que deveriam ter sido melhores como ser humano. Felizmente, não se tratam de remorsos feitos em insónias. 
Conhecermo-nos mais ou menos ajuda. Não tenho medo de reconhecer a minha vergonha nem as minhas limitações. 
Hoje cruzei-me com uma vergonha que me moldou e que se silenciou com o tempo. Quando era adolescente tive uma paixão como tantos outros clientes da Clearasil. Apaixonei-me e via na outra pessoa tudo aquilo que a falta de maturidade, o impulso sexual, o idílico romântico dos 17 anos te fazem pensar que é aquela e será eterna. 
Atirei-me de cabeça, baixei a guarda, abri os cordões à bolsa de moedas de mealheiro e tentei ser o mais encantador que um neto de analfabetos e filho de trabalhadores podia ser. Até pensava ter um look que ajudasse à conquista, a essa lenda de paixão a ondular nos meus cabelos louros. A verdade é que nunca fui muito confiante no que concernia a assuntos do sexo oposto, mas desta vez ia ser diferente, gostava da chavala a valer e ela correspondeu com charme, sedução e uns quantos serões de Verão de "curtes". 
A coisa não deu. Ela não estava virada para um "Brad Pinto" ridículo, pouco educado (a dizer "a gente vamos") e sem garantias dum futuro imediato interessante a vislumbrar desejos futuro. Conheci a minha primeira insónia. Derrotado na cama calorosa de Agosto, enrolei-me ensopado nos lençóis da vergonha e fechei para sempre a frustração de não ter sido aquela. 
Fui ao tapete muitíssimas mais vezes, inseguro mas atrevido, tentei viver o momento como me foi possível. Encontrei o amor e a reciprocidade e abraço-a todos os dias. 
Dessa época ficou essa vergonha, a de ter sido recusado. Sei que não era o indicado, que não encaixaríamos. Doía-me sentir a diferença, aquela que alguns do seu entorno apontavam a dedo, "ele não é do teu nível, do nosso nível"... Hoje esses que apontavam estão em cargos de poder político em Portugal. Por acaso são sociais-democratas mas podiam ser de outro partido qualquer. 
Como o Nietzsche, cujas lágrimas terão tido sífilis, o que não me matou fez-me mais forte. Mas tive vergonha, muita vergonha. De onde vinha, da humildade dos meus, da sua iliteracia, do nosso carro, de ter de dar serventia de pedreiro ao meu pai, de casa, do bairro, das minhas roupas, de mim. 
Hoje envergonho-me da minha vergonha. Sei o nível que tenho e gosto de não ter o mesmo nível dos que tão bem sabem apontar.

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