"Pássaros dum tiro" por Luis Leal (in revista "Mais Alentejo" nº 136)

Sei pouco sobre ornitologia. Há por esta península tantos bandos de aves à solta que isso ajudar-me-ia a compreender melhor o nosso habitat. Tal como observar pássaros, ouvir música é bastante prazenteiro para uma alma simples como a minha. Se posso, faço-o em simultâneo, de fones nos ouvidos e binóculos nos olhos, misturando aves, algumas raras, e melodias. Seria mesmo capaz de compilar uma banda sonora ornitológica. Ainda sou daqueles que aprenderam a entender o conceito de álbum mas, por pragmatismo, também faz “playlists” de momentos e ocasiões. Boas letras e trovas, para mim lírica pura, evadem-me de controvérsias, conceitos de estanqueidade literária e “nóbeis” atribuições.

Poucas vezes cheguei a um cantautor por conta própria, quase sempre alguém, ou algo, me guiou. Ligo bastante à crítica e às recomendações de uma amiga chegada, a casualidade.

A viajar, ainda adolescente pela palma da mão do Duarte Coxo (amigo além do fado), cheguei ao Jorge. O Sérgio acompanhava as noites bem passadas na casa do mestre Jorge Neto. Graças ao ouvido versado do meu cunhado Francisco von Gilsa conheci Joaquín, “el hombre del traje gris”. No entanto, não sei graças a quem ou o quê, fui apresentado ao Juan Manuel. Quatro melros de guitarra a tiracolo, jograis do meu e do tempo dos meus pais, que se deixaram apanhar nas minhas arapucas e, graças a artimanhas de caça para alimentar algo mais que o meu corpo, são magníficos exemplares das minhas capturas como caçador de versos e cantigas.

“Só” por existir, só por caminhar por bairros de amor e em alguns lados errados da ingenuidade, descansei num qualquer “Domingo no Mundo”. Descobri que também Rimbaud andara por desertos do amor e, no primeiro dia do resto da minha vida, mergulhei num mar inconcebível, “Pongamos que hablo de Madrid”, onde até a passarada vai ao psiquiatra e as princesas não querem ser princesas. Ali, no cruzamento de todos os caminhos, rumei ao “Mediterrâneo”, à cidade condal, assumindo a minha afeição por Antonio Machado e Miguel Hernández. A Hernández só pedi perdão por o Portugal de Salazar o ter entregado à “Guardia Civil” ao tentar cruzar a fronteira para exilar-se dum franquismo que o “mataria sem música, com os seus grandes olhos azuis abertos soterrados debaixo do vazio ignorante”.  

Desde o ninho se aprende a voar, desde um esconderijo tornado público se levantam voos solitários. Passadas horas ermitas a subir céu aprende-se a contemplar a companhia, a sincronia, dum bater de asas experiente e carregado de sabedoria. Se a solo o Jorge Palma e o Sérgio Godinho são magníficos, juntos são soberbos. Aqui em Espanha, o mesmo se aplica a Joaquín Sabina e a Juan Manuel Serrat, esses amigos tão diferentes que podiam ter nascido do mesmo parto. 

Curiosamente, encontro muitas parecenças urbanas, com tendência a pisar o acelerador do excesso, nas obras de Palma e Sabina. Igualmente nas de Godinho e Serrat, ambas interventivas e fraternais. Sei que Jorge Palma conhece o Joaquín Sabina. Num final dum concerto, envergonhado mas atrevido, perguntei-lhe enquanto lhe pedia um autógrafo. Quanto aos outros, não faço a mínima ideia, porém espero atrever-me a perguntar ao Sérgio Godinho, aquando da sua “tourné” poética por Badajoz, Cáceres e Plasencia, sobre o seu congénere Serrat. 

Quando me falam de destino, costumo dizer não acreditar no determinismo da palavra. Não o digo muito convicto, digo-o com a “boca pequenina”, recordando o obstetra da família quando se fala de ampliar a família. Mas, se tal sina, desígnio cósmico, fado, ou qualquer outro sinónimo sem volta atrás, existe, espero que em pleno voo, a sobrevoar a península, estes pássaros se cruzem. Prometo estar atento, como bom caçador, sem munição, só com o coração. 

domingo, dezembro 25, 2016

A arte sem afeto de nada me serve. São palavras vazias, notas soltas, imagens perdidas e melodias sem ritmo para os meus dias. É como sapatos bonitos que tenho mas que uso pouco porque não são cómodos ao caminhar. Sempre opto pelos velhinhos, sem estética nem moda, mas que me aparam os pés como mais nenhuns.

"Uma ideia de Bíblia" - Frederico Lourenço

"A Bíblia é uma narrativa em que o herói é filho de um carpinteiro e as restantes personagens são pastores e pescadores. Julgo que isso é muito revolucionário e interessa-me compreender como é que esse mundo greco-romano, no qual esse tipo de literatura era desconsiderado,  se deixou conquistar. Podemos pensar que A mensagem de Jesus de Nazaré se dirigia aos judeus, mas o que ele acabou por conquistar verdadeiramente foi o mundo greco-romano, que não dava o mínimo de crédito a pescadores e a carpinteiros." in "Revista Visão", 15/XII/2016

sábado, dezembro 24, 2016

Luzes de Natal

Todos os anos, desde que comecei a conduzir, ia mostrar as luzes de Natal da minha cidade aos meus avós. A vida idosa de periferia não lhes facilitava deslocarem-se com o fim de visitarem o ambiente natalício do centro histórico. O Natal éramos nós, as luzes eram artificiais mas não falhavam a iluminar-nos. 
Hoje cumpri esse ritual com os meus filhos. E os meus avós estavam connosco.

Alarme: Bicicletas! (por Eduardo Galeano)

- A bicicleta fez mais que nada e ninguém pela emancipação das mulheres no mundo – Dizia Susan Anthony.
E dizia a sua companheira de luta, Elizabeth Stanton:
- As mulheres viajamos, a pedalar, em direcção ao direito de voto.
Alguns médicos, como Philippe Tissie, advertiam que a bicicleta podia provocar aborto e esterilidade, e, outros colegas, asseguravam que este indecente instrumento induzia à depravação, porque dava prazer às mulheres que roçavam as suas partes íntimas contra o assento.
A verdade é que, por culpa da bicicleta, as mulheres deslocavam-se por sua conta, desertavam do lar e desfrutavam do perigoso gosto da liberdade. E, por culpa da bicicleta, o opressivo espartilho, que impedia de pedalar, saía do roupeiro e ia ao museu.


(Tradução: Luis Leal)

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Aproxima-se o Natal...

Aproxima-se o Natal. O mundo afasta-se da solidariedade da época.  Em Alepo não há milagres. Na Alemanha os mercados natalícios são vítimas de atentados. Nos EUA, um tirano de cabeleira loura prepara-se para subir ao poder com a amizade duns russos que veem morrer os seus às mãos dum vil alcoolismo que se consola, na ausência do vodka, com garrafas de colónia...
No quarto ao lado, dorme uma estrelinha e um pinheirinho. Por eles vivo o Natal e por aqueles que se afastam de serem humanos... Por mim, que me afasto de mim.

Civilidade (Alberto Pimenta)



CIVILIDADE

não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.

Alberto Pimenta



Recitado por Luís Gaspar em Estúdio Raposa







quinta-feira, dezembro 15, 2016

domingo, dezembro 11, 2016

Seis anos, parte II (9/XII/2016)

Cumprem-se hoje seis anos que descobri que o amor se escreve a caneta e não se apaga… Parabéns filho! Seis anos únicos, teus, nossos… / Se cumplen hoy seis años que descubrí que el amor se escribe con boli y no se borra… ¡Felicidades hijo! Seis años únicos, tuyos, nuestros…


sexta-feira, dezembro 09, 2016

6 anos

Hoje o Santiago faz 6 anos e está a escrever esta entrada comigo no telemóvel. É um dos momentos mais importantes das nossas vidas. Ele está a ler isto em voz alta. Será que um dia ele se recordará de o estarmos a fazer, lado a lado, cabeça com cabeça, dedo a dedo? 
Agora o quê, pergunta ele?  
Vamos publicar, digo-lhe eu.

quinta-feira, dezembro 08, 2016

Ferramentas e afeto


A Amélia e Francisco Nunes, "In memoriam"

Aceder a ferramentas é fundamental para que qualquer obra se edifique. A ferramenta é uma extensão da mão, moldada à necessidade e caracterizada pelo engenho, como tal, quando não se têm os utensílios adequados, o projeto tende a ser mais duro de trabalho, lento, algo tosco, longe dos padrões da perfeição exigida.  

Em casa havia ferramentas suficientes, nem todas específicas, mas sempre tive a sorte de alguém mas emprestar com confiança e generosidade. Isso não impede que a casa da nossa infância se vá desabando na Rua Reguengos de Monsaraz. Não a terminámos a tempo. É imperfeita por medos e ingenuidade, no entanto, tal como a capela do Mosteiro da Batalha, é bela na sua história e não faz falta ver-se acabada.

Atualmente tenho as minhas ferramentas. Aprendi a desenrascar-me, a fabricar algumas por conta própria, mas continuo a ir frequentemente à garagem do Chico Nunes pedir-lhe ferramentas emprestadas. Um alicate específico em pontas, uma broca de diamante, uma chave de bocas ou se posso usar o torno na sua bancada tão organizada que me faz querer ter uma igual na qual seja capaz de escrever um poema e soldar ao mesmo tempo.

Lá está o meu vizinho favorito, músico militar em camisola de alças, a ensaiar com o seu saxofone. Bem me quer ensinar solfejo, porém o ritmo da minha maturidade tarda, é irregular como o dos amantes e nunca poderá executar música porque só serve para frui-la. No meio desta garagem, organizada por serventias, ouço o sopro dum jazz futuro e improvisado, o canto biográfico dum "Bird" e revejo-me na camaradagem do Clarence Clemons na obra, de mangas arregaçadas, do “Boss” Springsteen.

"Leva o que quiseres Pintainho", diz-me com voz grave, brilhante, igual ao saxofone cuidado pelas suas mãos. Confia em mim e eu nele. É uma alegria vê-lo na missa a tocar na banda do Jesus com cara de quem não está chateado comigo por eu odiar que a minha mãe me obrigue a ir à missa todos os domingos. Foi a melhor aquisição para a capelinha da Senhora da Saúde e eu sinto-me melhor ao vê-lo aí. Até os grandes homens, másculos e fortes, vão à missa, logo a minha virilidade não está ameaçada pela beatice a que a minha mãe me obriga.

Não há ferramenta que detenha o tempo, muito menos que o concerte. Da época da garagem, da Eucaristia dominical imposta, passando pela única classe que algum dia tive - porque o meu vizinho Chico, com tanta paciência e carinho me dava o nó na gravata, agradado por ser o eleito da minha amizade, da minha admiração, sempre me dizia "o meu Pintainho" – chego a este dia.  

Também não há ferramenta, de pleno juízo, que me tire a alegria em recordar ir ao outro lado da rua, bater à porta e perguntar à vizinha Amélia pelo vizinho Chico. Ela deixa-me entrar e diz-me para ir ter com ele à cozinha ou à garagem, ali onde ele é a grande ferramenta que a vida, confiante e generosa, me emprestou.

Quis também a vida que não nos despedíssemos. Os amigos não se despedem, honram a amizade de maneira simples. Nunca aprenderei a fazer o nó da gravata. Não quero. Será sempre o vizinho Chico quem mo vai fazer, orgulhoso de ver o Pintainho que as suas ferramentas ajudaram a crescer.

Hoje o meu amigo Francisco Nunes fazia 78 anos. A vizinha Amélia já o ouve a ensaiar na garagem. Qualquer dia volto a atravessar a rua e bato-lhes à porta. Levarei a gravata na mão, bem passada, e peço-lhe para me fazer o nó “windsor”, aquele que ele acha dar-me mais classe…

quarta-feira, dezembro 07, 2016

Víctor Erice - El sur



Por falar em água e vedores..., é o que acontece, Luís. Tens de ver El sur (1983), este filme, esta beleza, mesmo não terminado como o seu realizador, Victor Erice, desejava.

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Eduardo Salles



Eduardo Salles. Su página, Cinismo ilustrado.



segunda-feira, dezembro 05, 2016

A propósito da necessidade de levar o ego a cagar à rua


Todos nós passeamos o nosso ego. A diferença está em que uns o passeiam à solta e outros à trela. Melhor estrangulados pela própria força, não vá morder em alguém... 


domingo, dezembro 04, 2016

Fidel

Fidel morreu fiel à revolução cubana. "Com muitas luzes e sombras" dizem alguns. Não duvido e não tivesse ele sido um dos símbolos do seu próprio século, o século XX.
Durou como um dos seus discursos. Foi longo, estruturado, argumentado e findou coerente. Mas a coerência individual, a culminar num culto ao líder de sabe deus quantos dias de luto nacional, é impositiva.
Olho para este barbudo, que associo à k7 de tango do meu pai, com a minha coerência individual, nada impositiva, era um ditador com as suas circunstâncias... Todos têm as suas com mais ou menos bloqueios e sanções económicas mesmo a sul do seu arquinimigo. A circunstância não pode justificar tudo... O mal menor justificado por alguns não deixa de estar mal.

O Bunker

Na Suiça, é comum os edifícios terem bunkers, fiscalizados de 5 em 5 anos, não vá o diabo tecê-las. Se alguém me contasse iria ter dificuldade em acreditar, mas vi para crer como São Tomé.
A neutralidade da história desta nação não lhe confere um estatuto de ingenuidade, todo o contrário, de cautela, precaução e estratégia. Vejo isso como sabedoria e visão a longo prazo.
Hoje, na Áustria, não muito longe donde nos encontramos, houve umas eleições renhidíssimas das quais sair vencedor, por escassos votos, o candidato dos verdes, seguido, quase ombro a ombro, pelo candidato de extrema-direita.
Ouro valem estes momentos partilhados com amigos, sem impedimentos de línguas e com crianças a crescerem iguais em oportunidades pelas convicções de quem as educa. Ouro imaterial, invisível para trocas de sobrevivência comercial, como a de tantos refugiados da história e do presente.
O Jorge receia o pior. É cauto como o país em que vive. Tem razão em sê-lo. Não o sou da mesma maneira porém entendo-o com a mesma certeza que tenho para com a minha intuição. Isso não significa que não deteste que ela tenha constantemente razão.
O tempo também deveria ter bunkers com compartimentos úteis para a sobrevivência da história, revistos com frequência e ensinados por lei... ou não...  Talvez só lá se protegesse a história de alguns.
Este diário digital é um bunker de bytes, escrito para resistir ao olvido do cérebro de quem o escreve. Tem a arquitectura defensiva do betão e a consistência do papel. O que fará em caso de urgência? Apagar-se-á? De certeza que sim. Até lá pode ser que alguém o tenha lido, construa o seu próprio bunker e proteja a liberdade do seu próprio pensamento.

Uster bikes (Switzerland)

As bicicletas dormem na rua e não são infelizes...
Observam como as estações vêm e vão...

Badajoz, Lisboa, Zurique

Nada como a hospitalidade dum colchão e um saco de cama na casa dum grande amigo. Família a reboque e carregado que nem um burro, lá cheguei a Zurique depois dum dia intenso - desses que parecem uma semana - de trabalho, estrada, aeroporto e avião...
O corpo ainda vai aguentando, mas já se começa a queixar da intensidade da jornada e das poucas horas de descanso compensatórias... Vale o abraço das boas-vindas e as boas notícias que nos esperam!

quinta-feira, dezembro 01, 2016