sexta-feira, junho 16, 2017

Cântico negro (Rui Knopfli)



CÂNTICO NEGRO

Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T´ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
Só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.

Rui Knopfli

O passo trocado
Memória consentida 20 anos de poesia 1959/1979. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982


 Lido em canal de poesia


 

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