quarta-feira, novembro 01, 2017

Dia das vítimas do fim

Era o dia em que se ia ao cemitério lavar campas e ver a minha avó Rita a chorar num ritmo compassado, sentada num banco, dando beijos à foto sépia do meu avô Ventura. Esta imagem não estaria completa sem o lenço de tecido com o qual limpava os resíduos chorosos na fotografia vidrada para o efeito da defunção.

(Só vejo este tipo de fotografias em cemitérios, quem sabe numa tentativa vã de imortalizar o que o papel não é capaz de fazer ao nitrato de prata.)

Acompanhava o meu pai para hoje odiar flores de plástico. Acho que ajudava a levar o pequeno banco desdobrável de campismo, com o qual a minha avó acampava ao lado do túmulo do marido e, depois, no dos seus pais. O regador e o balde não. De certeza que não. Não tinha força para isso e não havia vida para regar.

(A minha memória é assim, materialmente diferente do poliuretano das flores deste dia, murcha como as flores verdadeiras.)

Sabia lá eu o que era o "Dia de Todos os Santos". Nem hoje percebo o que é isso de santidade. Entendo dedicar-se um dia aos finados, essa outra forma de nos referirmos aos que morreram, aos que foram vítimas do fim.

Quando a minha avó Rita foi vítima do fim, e já não precisou do banquinho de campismo lamurioso pois a terra levantou-se para levá-la para a campa matrimonial, descobri que, junto com o meu pai e a minha irmã, sou proprietário dessa tumba. Confesso o “mea culpa”, pois o meu primeiro pensamento verbalizado foi do mais mundano e egoísta para esse bem imobiliário herdado: tenho de pagar IMI?

(Parece que não há impostos directos para a última residência, o estado ainda não se lembrou de exigir a declaração de campas e jazigos no IRS.)

Depois disso, já muitas coisas me passaram pela cabeça e, uma delas, prende-se com os motivos que levarão uma pessoa a querer possuir o pedaço de terra onde se fundirá com ela. Creio entender o investimento feito pelos meus avós, a sua noção de propriedade, de património a deixar de herança aos que cá deixavam.

Não seria pela carga fiscal, agradeço a intenção dos meus antepassados, sei que, quando chegar o fim, a algum buraco iremos parar, algo nos vai incinerar, ou, no esquecimento do mar, o que antes foi corpo decompor-se-á. Porém, abdico desse investimento, desse bem material que, como tantos outros em vida, é supérfluo, não me faz falta e não o desejo ostentar.

As gerações globalizadas, celebram o Halloween com doces, rebuçados e travessuras. Máscaras e divertimentos macabros a mês e meio antes de se celebrar no calendário o nascimento. Para quê celebrar o fim? Para quê celebrar os finados? Para quê mostrar, ao mundo global, que num passado recente se recordavam as mortes e que para a morte comprávamos a última morada?

Ninguém está preparado para ser vítima do fim, por mais que o fim esteja à frente dos olhos. Pensar no que fica, no que se vai deixar para herdar, terá a mesma utilidade que a campa que os meus avós nos deixaram. A terra por cá ficará. Eu fico com as suas boas intenções, que, como o IRS, devo declarar em sua memória.

(Foto de autor desconhecido)

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