Valery Larbaud en Alicante (1918-1919) |
terça-feira, março 31, 2020
segunda-feira, março 30, 2020
Amanhece o medo
Não dormi profundamente. O meu filho mais novo chamou por mim durante a noite e o bebé do apartamento de baixo chorou bastante por volta das seis da manhã. Neste preciso momento estou a ouvi-lo, tem dois ou três meses, e como nós, inicia mais uma semana de confinamento.
À parte de umas notas e de trabalho, pouco tenho escrito. Não tenho vontade, nem tenho sentido necessidade. Porém, tenho recordações frequentes, nada nostálgicas, diga-se de passagem, de gente que já não está (ou está demasiado longe) e de como eles viveriam esta situação inexperimentada, como dizia Emilio Lledó.
Tento manter a rotina e a segunda-feira amanhece «lunes» para mim. Não piso Portugal há quase um mês e está aqui ao lado, apesar de não o conseguir ver desde a minha janela.
Amanhece este país, ao lado do país onde nasci, como nunca o vi, com medo, apreensivo e sem contacto físico. Amanhece à espera de números, essa vala comum de dígitos que incineramos no vazio destes meios em que nos comunicamos.
Se desde sempre abracei, em Espanha, aprendi que o abraço sincero é estima a aproximar-te do coração.
Os meus dormem a meu lado. Estão calmos. Vou levantar-me sem mais ruído do que os dos pássaros já a chilrearem nas árvores e a cagarem os carros que pouco se têm usado nos últimos tempos.
Tenho a certeza que vivemos num mundo enganado, que deveria de ser diferente, que deveria de ouvir melhor e observar tudo o que o rodeia. Tenho a certeza de termos as prioridades equivocadas.
Amanheceu o medo. Mas eu levanto-me e abro a persiana.
Ele sempre ali esteve e há anos que o vejo e o contemplo, mais ou menos desperto. Nas últimas semanas, fartou-se de não ser levado a sério e deu a cara, lembrando muita gente que, como todos os sentimentos, o medo é digno de respeito e ali estará ao lado da euforia, do prazer, da ebriedade que estávamos mergulhados para não questionarmos o quão inconvenientes nos tornámos para nós próprios.
domingo, março 29, 2020
Desde nuestra ventana (29/III/2020)
Desde nuestra ventana todavía se ve alguna naturaleza solitaria, alguna belleza en estos días de confinamiento, solo hay que usar el viejo teleobjetivo y seguir con ganas de asomarnos...
Desde a nossa janela ainda se vê alguma natureza solitária, alguma beleza nestes dias de confinamento, apenas há que usar a velha teleobjetiva e manter a vontade de nos assomarmos...
A fotografia é um presente do passado que se poderá revelar no futuro.
A fotografia é um presente do passado que se poderá revelar no futuro.
sábado, março 28, 2020
O meu único orgulho...
Mi único orgullo es, precisamente, este: saber que son capaces de hacer cosas que todavía no sé hacer. Jugar ajedrez, por ejemplo.
O meu único orgulho é, precisamente, este: saber que são capazes de fazer coisas que ainda não sei fazer. Jogar xadrez, por exemplo.
sexta-feira, março 27, 2020
"Bucólica" - Miguel Torga
Bucólica (Miguel Torga)
A vida é feita de nadas;
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.
Bucólica
La vida está hecha de nadas;
De grandes sierras paradas
Esperando el movimiento;
De mieses onduladas
Por el viento;
De casas de gente
Encaladas y con marcas
De los nidos que antaño había
En los aleros;
De polvo;
De ver esta maravilla:
Mi padre levantando una vid
Como una madre que hace la trenza a su hija.
(Trad. Luis Leal)
“Yo soy el hombre más optimista, pero me aíslo mucho para no dejar de serlo” - Ramón Gómez de la Serna
“Yo soy el hombre más optimista, pero me aíslo mucho para no dejar de serlo” lo decía Gómez de la Serna. También recordaba que su “integridad está en el no ir, en el no estar, para así permanecer incólume, integérrimo, incorruptible”. Ramón es mucho más que la genialidad de la greguería. Por detrás de esa pinta picaresca había muchísima sabiduría. Seguiré su consejo. Aislarme para mantener el optimismo.
“Eu sou o homem mais otimista, mas isolo-me muito para não deixar de o ser” dizia Gómez de la Serna. Também lembrava que a sua “integridade está em não ir, em não estar, para assim permanecer incólume, integérrimo, incorruptível”. Ramón é muito mais do que a genialidade da “greguería”. Por detrás dessa pinta picaresca havia muitíssima sabedoria. Seguirei o seu conselho. Isolar-me para manter o optimismo.
Ramón fotografado por Alfonso (Anos 30) |
quinta-feira, março 26, 2020
O bucolismo da flauta...
El bucolismo de la flauta acompaña siempre a las almas de pastor. / O bucolismo da flauta acompanha sempre as almas de pastor.
Un soneto de Unamuno: Portugal
PORTUGAL
Del atlántico mar en las orillas
desgreñada y descalza una matrona
se sienta al pie de sierras que corona
triste pinar. Apoya en las rodillas
los codos y en las manos las mejillas
y clava ansiosos ojos de leona
en la puesta del sol; el mar entona
su trágico cantar de maravillas.
Dice de luengas tierras y de azares
mientras ella, sus pies en las espumas
bañando, sueña en el fatal imperio
que se le hundió en los tenebrosos mares,
y mira cómo entre agoreras brumas
se alza Don Sebastián, rey del misterio.
Miguel de Unamuno
Del atlántico mar en las orillas
desgreñada y descalza una matrona
se sienta al pie de sierras que corona
triste pinar. Apoya en las rodillas
los codos y en las manos las mejillas
y clava ansiosos ojos de leona
en la puesta del sol; el mar entona
su trágico cantar de maravillas.
Dice de luengas tierras y de azares
mientras ella, sus pies en las espumas
bañando, sueña en el fatal imperio
que se le hundió en los tenebrosos mares,
y mira cómo entre agoreras brumas
se alza Don Sebastián, rey del misterio.
Miguel de Unamuno
terça-feira, março 24, 2020
Si este bello proyecto algún día se publica, me encantaría traducirlo: "Um Dia de Cada Vez" (texto de David Machado e ilustraciones de Paulo Galindro)
Si este bello proyecto algún día se publica, me encantaría traducirlo: "Um Dia de Cada Vez" (texto de David Machado e ilustraciones de Paulo Galindro).
“Abre la ventana para dejar entrar el sol. No tengas miedo cuando la luz inunde el suelo de la casa. Prueba a meter primero un pie. El calor líquido en tu piel será delicado y explosivo a la vez. No te asustes, pronto te acostumbrarás. Cuando tengas alrededor de un metro de sol llenando la casa, cierra la ventana. Entonces, túmbate flotando en la luz y déjate llevar en la corriente.” - David Machado (Trad. Luis Leal)
Poema de la Cuarentena (Santiago L. P.)
Prefiro o silêncio nestes momentos, mas o poema que o meu filho mais velho escreveu, para o seu trabalho de língua espanhola de hoje, enche-me de gratidão. Temos saúde e posso beijá-los e abraçá-los todos as noites. Apercebo-me do que se passa em Portugal principalmente pela rádio e, desde Espanha, apenas desejo que levem este problema a sério...
Prefiero el silencio en estos momentos, pero el poema que mi hijo mayor escribió para su trabajo de lengua de hoy me llena de gratitud. Tenemos salud y los puedo abrazar y besar todas las noches.
Me entero de lo que pasa en Portugal principalmente por la radio, y, desde España, solo deseo que se tomen este problema en serio...
Por la mañana veo dibujos
con toda mi familia. Después juego
con mi hermano y estudio.
Por la tarde hago manualidades y ejercicio.
Nos acompañan nuestros juguetes
y antes de irnos a dormir
nos dan besos y abrazos llenos
de sueños con cosas muy buenas.
Poema da Quarentena (Santiago L.P.)
De manhã vejo os desenhos
com toda a minha família. Depois brinco
com o meu irmão e estudo.
À tarde faço trabalhos manuais e exercício.
Acompanham-nos os nossos brinquedos
e antes de irmos dormir
dão-nos beijos e abraços cheios
de sonhos com coisas muito boas.
(24/III/2020)
segunda-feira, março 23, 2020
Os números assustam há muito...
Os números assustam há muito e a coisa vai em crescendo. Há por aí já vários diários de quarentena e eu não sinto mais necessidade de escrever nestes dias do que senti noutros dias em que não estive confinado a estas circunstâncias. Para ser honesto, acho que menos vontade tenho para escrever o que vejo, o que sinto.
Por todo o lado há opiniões, há sugestões, há queixas, há agradecimentos e há medo. O medo é o único que partilho com as massas. Tenho medo e vou vivendo com ele e, por enquanto, olho-o nos olhos. Parece-me que me tem algum respeito, mas vigio-o constantemente e não fico de costas para ele.
Opiniões, poucas tenho. Sugestões, apenas fazer caso a quem sabe. Queixas, gosto pouco disso. E agradecimento não é coisa de agora, tento praticar a gratidão desde que descobri isso ter mais sentido para mim do que a religião.
Talvez por isso, quando entro numa qualquer rede social, com esses «likes» embriagantes para o ego, apercebo-me que as boas leituras, os contactos proveitosos para me tornar melhor ou deixar este mundo melhor, cada vez são menos e impera um individualismo dissimulado de nobres intenções, à primeira vista, colectivas, que me produz tristeza e, desculpem a franqueza, nojo. Nojo do que leio, do que vejo, do que oiço e nojo de mim mesmo por ali estar a ser parte integrante dessa mediocridade em rede, à qual não quero escapar pois convenci-me que não terei a visibilidade que quero e acho que mereço ter.
O que acabo de escrever retira-me toda a legitimidade para falar sobre o tema e ainda bem. Se há coisa que tão-pouco quero é legitimidade para ser quem sou.
Mas o que é certo, e aceitei como legítimo neste presente que vivo, é a obrigatoriedade do confinamento graças ao Estado de Alarme que o governo espanhol decretou há uma semana.
Não se pode sair para além do pão óbvio, da farmácia necessária ou do cocó ou xixi do cão. Árvores e pássaros, praticamente, só da janela. Nunca fomos tanto à janela nos últimos anos da história da humanidade. Ainda não superamos os assomos às ventanas em número de vezes que espreitamos ao telemóvel. Impusemo-nos a técnica e aceitámo-la como reguladora do mundo natural. Fomos, somos, arrogantes.
Essa arrogância está a ceifar a vida de quem menos o merece. São os mais velhos, aqueles que ainda se recordavam de como era viver mais em comunhão com a terra, que se recordavam de ter o que era possível e não acumularam por o simples acumular que o consumismo nos veio ensinar, ajoelhando-nos no altar da publicidade e dos mercados. São os mais velhos os que estão a ir primeiro e nem nos estamos a conseguir despedir deles. Estamos mais preocupados em ser nós num ecrã qualquer.
Quem disse que a vida é justa ou a justiça poética? Não me é fácil encontrar tamanho optimista, apesar de, às vezes, existirem momentos de sorte.
Eu (que palavra tão pequena, mas que me sujeita enormemente...) apenas me lembro de uma bela cena de um filme que vi hoje antes de vir para a cama. Se não te permitem ter uma campa, ter uma morada final, opta por uma árvore...
Muitos já morreram e mais morrerão nestes meus dois países e quando tudo estiver calmo irão querer homenagear os caídos do COVID-19. O mais fácil serão monumentos, memoriais, porém, eu plantaria uma árvore por cada um deles. Árvores com hipóteses dum futuro bosque centenário, cuja sombra nos protegesse com o exemplo, cuja presença nos lembrasse que os mais velhos são o passado que nos permite sonhar no futuro.
domingo, março 22, 2020
Palavras de Oscar Wilde
A ambição é o último refúgio do fracasso.
O primeiro dever na vida é ser tão artificial quanto possível. Em que consiste o segundo dever... ainda ninguém descobriu.
Amar-se a si próprio é o princípio de um romance para a vida inteira.
Em todos os assuntos de pouca importância o que conta realmente é o estilo e não a sinceridade. Em todos os assuntos IMPORTANTES, o que conta realmente é o estilo. E não a sinceridade.
Se alguém diz a verdade, esse alguém será, seguramente, tarde ou cedo, apanhado.
Nada que realmente tenha acontecido tem a menor importância.
A maldade é um mito inventado pelos sensaborões para diminuir a capacidade de sedução dos outros.
Aqueles que vêem alguma diferença entre a alma e o corpo é porque não possuem nenhuma das duas.
Se os pobres apenas tivessem perfis, não seria difícil resolver o problema da miséria.
As religiões morrem quando se prova serem verdadeiras. A Ciência é o registo das religiões mortas.
Os bem-criados contradizem outras pessoas. Os sábios contradizem-se a si próprios.
A casa de um botão realmente bem feita é a única ligação entre a Arte e a Natureza.
O aborrecimento é o envelhecimento da seriedade.
O Prazer é a única coisa para que se deve viver. Nada envelhece tão bem como a felicidade.
Só não se pagando as contas é que se pode esperar perdurar na memória das classes comerciais.
Nenhum crime é vulgar, mas toda a vulgaridade é um crime. A vulgaridade é o comportamento dos outros.
Só os superficiais se conhecem a si mesmos.
O tempo é uma perda de dinheiro.
Deve ser-se sempre um bocadinho improvável.
Deve ser-se uma peça de arte ou vestir-se uma.
Há uma espécie de fatalidade sobre as boas resoluções. São feitas invariavelmente cedo de mais.
A única forma de se redimir por estar ocasionalmente um pouco vestido de forma excessiva é ser sempre excessivamente educado.
Quaisquer preocupações com ideias ou com o que está certo ou errado no comportamento demonstra um desenvolvimento intelectual tacanho.
Uma verdade deixa de ser uma verdade quando mais do que uma pessoa acredita nela.
Nos exames, os idiotas fazem perguntas a que os sábios não podem responder.
A roupa grega era na sua essência pouco artística. Nada deve revelar o corpo a não ser o próprio corpo.
São apenas as qualidades superficiais que perduram. A natureza profunda do homem acha-se depressa.
A Indústria é a raiz de toda a feiura.
As eras vivem na história através dos seus anacronismos.
Apenas os deuses saboreiam a morte. Apolo faleceu, mas Jacinto que, segundo os homens, o fez andar à roda, vive. Nero e Narciso estão sempre connosco.
O velho acredita em tudo: o de meia-idade desconfia de tudo: o jovem sabe tudo.
A condição necessária para a perfeição é a preguiça: o cume da perfeição é a juventude.
Só os grandes mestres de estilo são bem sucedidos a ser obscuros.
Há qualquer coisa de trágico sobre o grande número de jovens que existe em Inglaterra neste momento, que começa a vida com perfis perfeitos e que acaba por adoptar alguma profissão útil.
Ser prematuro é ser perfeito.
Oscar Wilde, in Poemas em prosa, tradução de Possidónio Cachapa, introdução de Urbano Tavares Rodrigues, edição bilingue, Cavalo de Ferro, Dezembro de 2002, pp. 31-34.
"Frases e filosofias para uso dos jovens", mensagem no blogue antologia do esquecimento (4 de março de 2016)
sábado, março 21, 2020
Contagio de ruído
Contagio de ruído
o silêncio
ao procurar o passado
engavetado
na minha cabeceira.
Dou-lhe corda mais pelo tacto
do objecto
do que pela necessidade
de medir horas,
ritmar a pulsação
pelo ponteiro dos segundos.
Detenho-me a olhar para este velho relógio de bolso.
O tique-taque não corresponde a nenhuma verdade
nem de toque nem de tempo.
Apenas mais uma evidência
do vazio que também eu serei.
Uma qualquer reminiscência
arrecadada numa gaveta de ninguém.
"Miguel de Unamuno" por Fernanda de Castro
Perguntaram-me um dia, já não sei a propósito de quê, se, de facto, Unamuno era, como se dizia, um homem duro, um «bicho-do-mato». Não respondi logo, fiquei um momento a situá-lo na memória, a recordar a sua voz grave, os seus silêncios, a sua bela cabeça de castelhano, os seus olhos agudos, a sua boca austera que raramente sorria. Sim, era bem o autor de El Sentimiento Trágico de la Vida e de Vida de Don Quijote y Sancho, Dom Quixote dos nossos dias a esgrimir com inimigos bem mais perigosos do que os inofensivos moinhos.
Não era fácil fazer sorrir D. Miguel de Unamuno: ou falava de coisas graves com ar grave, de coisas profundas com ar profundo, ou mergulhava num silêncio denso que ninguém ousava perturbar. Mas Unamuno, como todos os grandes homens, tinha o seu calcanhar de Aquiles: à mesa, quando passeava, quando conversava, ia recortando com as pontas dos dedos, figurinhas de papel, bonecos, pássaros, borboletas, tão delicadas, tão graciosas, que parecia milagre terem saído das suas mãos aparentemente rudes. Quem quisesse chamar a atenção de Unamuno, despertar o seu interesse ou a sua simpatia, não lhe falasse da sua obra, da sua filosofia, do seu sentido profundo da vida, mas das suas bonecas, das suas figurinhas de papel. Então sorria, descia do seu pedestal e era o mais simples dos homens, deixando, enfim, vir à superfície o que nele havia de mais humano e de mais fraternal.
Não era fácil fazer sorrir D. Miguel de Unamuno: ou falava de coisas graves com ar grave, de coisas profundas com ar profundo, ou mergulhava num silêncio denso que ninguém ousava perturbar. Mas Unamuno, como todos os grandes homens, tinha o seu calcanhar de Aquiles: à mesa, quando passeava, quando conversava, ia recortando com as pontas dos dedos, figurinhas de papel, bonecos, pássaros, borboletas, tão delicadas, tão graciosas, que parecia milagre terem saído das suas mãos aparentemente rudes. Quem quisesse chamar a atenção de Unamuno, despertar o seu interesse ou a sua simpatia, não lhe falasse da sua obra, da sua filosofia, do seu sentido profundo da vida, mas das suas bonecas, das suas figurinhas de papel. Então sorria, descia do seu pedestal e era o mais simples dos homens, deixando, enfim, vir à superfície o que nele havia de mais humano e de mais fraternal.
Hoje é o Dia Internacional da Poesia
Um poema de Inês Dias para o Dia Internacional da Poesia.
ÁGATA
Foi amor à primeira vista.
Ela tinha nome de pedra preciosa
e, na literalidade dos meus cinco anos,
cabelo em forma de pássaro – negro
asa de corvo.
Era o tempo em que ainda
aprendia com o corpo todo:
uma fractura exposta para entender
o significado de maioria, uma pneumonia
para descobrir a solidão.
Quando ela me cravou um lápis
sob o olho esquerdo, pressenti que a escrita,
grafite fria à flor do sangue,
deixaria marcas para sempre.
Nunca mais nos separámos.
Eu e as palavras,
a Ágata mudou de escola.
Inês Dias
sexta-feira, março 20, 2020
Alentejano ou "Extremeño", como gostava de te ter aqui bom amigo...
Todos os dias vamos tendo notícias tuas, como do resto da família, mas continuamos separados pela fronteira destes dias...
O nosso campo continua com o seu fiel rafeiro, sempre rodeado de alegre canzoada. Em breve, voltarei a caminhar ao teu lado e a encostar a minha coxa à tua cabeça enquanto te acaricio o pêlo e me babas as mãos já habituadas à inquisição, à ditadura deste vírus.
Com tanta coisa estranha por aí e eu (nós todos aqui confinados em casa...) tantas vezes a lembrar-me de ti, meu bom amigo...
"Mastín Extremeño" - Puebla de Obando |
quinta-feira, março 19, 2020
terça-feira, março 17, 2020
Talvez por saber que pouco mais tenho do que algumas janelas...
Talvez por saber que actualmente pouco mais tenho do que algumas janelas para o mundo, presto particular atenção a Montaigne. Do alto da sua torre, viu a paisagem do ser, escreveu o melhor ensaio que pode um escritor almejar, o ensaio de si mesmo.
À parte de um pequeno livro sobre o essencial do pai do ensaísmo, pouco ou nada conhecia deste francês. Porém, neste dia, agora a findar, apresentou-se como boa companhia. Acabámos por nos despedirmos a rir pela forma como goza com os médicos, os heróis do momento que vivemos... Antes de fechar a janela, deixou-me uma citação para dele me lembrar:
«Pode-se ter saudades dos tempos bons mas não se deve fugir ao presente.».
Tem razão. Vou fazer os possíveis para nos voltarmos a encontrar...
Filho acidental da Ibéria...
Miguel Torga declarou ser «um filho ocidental da Ibéria» e que Portugal era a sua «pátria cívica». Quem se dedicou ler o velho médico de São Martinho da Anta, sabe que ele é um filho predilecto de uma pátria telúrica sem fronteiras físicas, porém, bem marcada em cicatrizes.
Em plena quarentena, a olhar pela janela que vislumbra o velho cemitério a esconder uma vala comum da Guerra Civil, sei que sou filho desta Ibéria, mas ao contrário do escritor que deu mundo ao coração, sou um filho acidental. Nasci onde nasci por acaso e formei-me a olhar para o outro lado do Atlântico. Foi sem pontos cardeais que a Península se impôs no meu horizonte e comecei a palmilhar o que posso por caminhos mais aquém dos Pirinéus.
Não há desígnios para os factos, para as circunstâncias que vivo. Hoje há uma janela, uma contingência, um ar livre restrito a ir às compras, à farmácia, despejar o lixo ou a ir trabalhar. Fecha-se-me o dia-a-dia e coabito com os meus pequenos na nossa casa saudosa do nosso campo. Tudo isto é o quê? Um acidente? O ocidente infectado pelo desprezo da experiência do Oriente?
Por enquanto tenho a janela, tenho a certeza da incerteza, tenho a calma de saber que tudo tem sido um acaso. Este que estou a viver, que estamos a viver, é apenas mais um.
segunda-feira, março 16, 2020
Quatro quadras soltas (Sérgio Godinho)
QUATRO QUEDRAS SOLTAS
Eu vi quatro quadras soltas
À solta lá numa herdade
amarrei-as com uma corda
e carreguei-as p'rá cidade.
Cheguei com elas a um largo
e logo ao largo se puseram
foram ter com a família
e com os amigos que ainda o eram.
Viram fados, viram viras
viram canções de revolta
e encontraram bons amigos
em mais que uma quadra solta
Uma viu um livro chamado
'Este livro que vos deixo'
e reviu velhas amizades
eram quadras do Aleixo
[Adriano:]
O i o ai, há já menos quem se encolha
o i o ai, muita gente fala e canta
o i o ai, já se vai soltando a rolha
que nos tapava a garganta
Ora bem tinha marcado
encontro com as quadras soltas
pois sim, fiquei pendurado
como um tolo ali às voltas
Chegou uma e disse: Andei
a cumprimentar parentes
e eu aqui a enxotar moscas
vocês são mesmo indecentes
Respondeu-me: ó patrãozinho
desculpe lá esta seca
estive a beber um copinho
com uma quadra do Zeca
[e é o próprio sôr Zeca Afonso que vai cantar aqui]
O i o ai, disse-me um dia um careca
o i o ai, quando uma cobra tem sede
o i o ai, corta-lhe logo a cabeça
encosta-a bem à parede
Das restantes quadras soltas
não tinha sequer noticia
dirigi-me a uma esquadra
e descrevi-as a um policia
Respondeu-me: com efeito
nós temos aqui retida
uma quadra sem papeis
que encontramos na má vida
Diz que é uma quadra oral
sem identificação
que uma quadra popular
não precisa de cartão
Se diz que pertence ao povo
o povo que venha cá
que eu quero ver a licença
o registo e o alvará
[Fausto:]
O i o, Quando se embebeda o pobre
o i o ai, dizem olha o borrachão
o i o ai, quando se emborracha o rico
acham graça ao figurão
Fui com a quadra popular
À procura da restante
quando o policia de longe
disse: venha aqui um instante
Temos aqui uma outra
não sei se você conhece
desrespeita a autoridade
e diz o que lhe apetece
Tem uma rima forçada
e palavras estrangeiras
e semeia a confusão
entre as outras prisioneiras
Se for sua leve-a já
que é pior que erva daninha
olhe bem pra ela é sua?
Olhei bem pra ela: é minha
O i o ai, nós queremos é justiça
o i o ai, e dinheiro para o bife
o i o ai e não esta coboiada
em que é tudo do sherife
Cabelo branco é... saudade
Cabelo branco é ... saudade
Era uma vez, numa tarde de verão, daquelas que só existem mesmo em terras mouriscas bem a Sul... e onde a minha mais que amiga Dani descobriu o meu 1.º cabelo branco.
Também uma vez numa aula de teatro o Professor Roberto Merino pediu-me que simulasse o aparecimento da minha 1.ª ruga... tinha eu nessa altura 18 anos e o o Professor disse-me que havia feito um retrato bastante realista. Ora, a descoberta do 1.º cabelo branco deveria dar resultado semelhante ao já fingido... nada disso. A sensação que tive não foi boa. Mas depois também não foi má. E depois foi nada. O dia-a-dia. O quotidiano. A coisa simples que acontece e pronto... como tantas outras.
Porém, fez-me pensar no tal fado: Amar demais, é doidice / Amar de menos, maldade / Rosto enrugado, é velhice / Cabelo branco é saudade...
E saudade, disse-me a minha avó, um dia, quando ainda não tinha tantas saudades dela: é um fiozinho apertado ao coração que às vezes alguém puxa e dói pouquinho...
O meu 1.º cabelo branco só me diz que esse fiozinho já foi puxado muitas vezes. Então eu fecho os olhos, sinto o cheiro ... e dói menos!
Mafalda
domingo, março 15, 2020
"No eres quien eras ni quien deseabas ser, puedes empezar a ser tú/Não és quem eras nem quem desejavas ser, podes começar a ser tu" - Pablo d'Ors
No suelo comprar el periódico. Pero hoy sentí la necesidad de alguna materialidad ante la inmaterialidad de todo lo estamos viviendo. En “El País”, además de las páginas dedicadas a la urgencia del virus, hay una discreta crónica de Pablo d'Ors en la cual he subrayado las siguientes frases:
«No eres ya el hombre o la mujer que dejó la casa paterna (tu mundo anterior), pero tampoco el hombre o la mujer que tu voz te había dicho que podías ser. No eres quien eras ni quien deseabas ser, puedes empezar a ser tú.».
¿Quién empezaremos a ser?
Não costumo comprar o jornal. Porém, hoje senti a necessidade de alguma materialidade perante a imaterialidade de tudo o que estamos a viver. No “El País”, para além das páginas dedicadas à urgência do vírus, há uma discreta crónica de Pablo d’Ors na qual sublinhei as seguintes frases:
«Não és já o homem ou a mulher que deixou a casa paterna (o teu mundo anterior), mas tão-pouco és o homem ou a mulher que a tua voz te tinha dito que poderias ser. Não és quem eras nem quem desejavas ser, podes começar a ser tu.».
Quem começaremos a ser?
sexta-feira, março 13, 2020
Sexta-feira 13
O dia acordou cinzento e mais silencioso do que o normal. As notícias infectaram primeiro do que o COVID-19. Não sei se estaremos mais despertos para esta pandemia ou se continuamos a pensar que não chegará a uma cidade onde nem sequer chega, como deve de ser, o comboio.
No meu trabalho o riso já não esconde incertezas. Há mais distância corporal entre nós. Hoje nem cumprimentei com dois beijos uma antiga aluna que nos veio visitar. Aceitamos a distância para evitar males maiores.
Não sei o que pensar. Pela minha família levo isto a sério, mas não deixo de me sentir manipulado, de sentir que há bastantes mais mutações de interesses por trás deste vírus.
Aflige-me a fronteira, o seu fecho, a loucura à procura de víveres num supermercado e nós com uma linha administrativa no meio a poder, de um momento para o outro tornar-se um muro intransponível, a separar-nos do campo, da terra.
Os governos de Espanha e Portugal já decretaram o Estado de Alarme. Compareceram à frente das câmaras para evitar dar a cara na multidão que esgota os produtos das estantes.
Nunca pensei escrever uma entrada deste tipo, entre o surreal e o hollywoodesco, em que nos encerramos no nosso apartamento em quarentena. Foram decretados quinze dias a partir de dia 16. Como serão para além de amedrontados e intoxicados pela mediatização? Espero que sejamos apenas infectados pelo tédio e que consigamos descansar dum mundo que cada vez mais nos diz que não é só nosso...
quinta-feira, março 12, 2020
Corona Livro/Libro
Hace un par de años me compré este libro, como buen consumidor, por impulso. Su autor nos relata un invierno gélido que lleva a una crisis energética que deja la humanidad totalmente desorientada. Todo el bienestar, hecho de objetos maravillosos y de tecnología punta, resulta completamente inútil. El libro se llama “El final del mundo equivocado” y su autor, irónicamente, es italiano y se llama Mauro Corona… Ya lo saqué de la estantería y lo tengo en la mochila.
Há uns anos atrás, comprei este livro, como bom consumidor, por impulso. O seu autor relata-nos um inverno gélido que origina uma crise energética e que deixa a humanidade completamente desorientada. Todo o bem-estar, feito de objetos maravilhosos e de tecnologia de ponta, resulta completamente inútil. O livro chama-se “O Final do Mundo Equivocado” e o seu autor, ironicamente, é italiano e chama-se Mauro Corona... Já o tirei da estante e o tenho dentro da mochila.
quarta-feira, março 11, 2020
quarta-feira, março 04, 2020
"Iberismos" en "Tão Cerca" (Cadena Ser)
No me atrevo a hablar de “Iberismos” más allá de una conversación de amigos, como en “Tão Cerca”, de la Cadena SER, con mi amigo Gaspar. Es mejor leer a Oliveira Martins, a Ganivet, a Torga, a Saramago, a José Miguel Sardica, a César Rina o a Antonio Sáez, entre otros bastante más conocedores del tema que yo. Pero, si os apetece, podéis oír nuestro diálogo on-line o descargar el podcast del programa.
Não me atrevo a falar de “Iberismos” para além duma conversa de amigos, como no “Tão Cerca”, da Cadena SER, com o meu amigo Gaspar. É melhor ler Oliveira Martins, Ganivet, Torga, Saramago, José Miguel Sardica, César Rina ou Antonio Sáez, entre outros bastante mais conhecedores do assunto do que eu. Mas, se vos apetecer, podem ouvir o nosso diálogo on-line ou descarregar o podcast do programa.