"Conversas à volta de... Luis Leal - Alguém a tentar cultivar uma vida com sentido..." (Évora, 25 de Novembro de 2022) - Texto da apresentação
Primeiro, permitam-me agradecer o convite à Associação Solidariedade Social dos Professore de Évora, agradecer o vosso tempo (algo valiosíssimo e que não vos posso devolver) e também agradecer, como aprendi com o naturalista Joaquín Araújo, ao Rio Xarrama, ao Rio Degebe, ao Alto de S. Bento, a toda essa confluência de elementos que permitiram que os romanos aqui criassem um núcleo urbano, o qual posteriormente árabes e cristão povoaram, permitindo assim que, em 1980, no dia 2 de maio, no seio destas três culturas, o acaso consentisse que eu nascesse aqui.
É importante referir que, quando me convidaram para estas conversas, não sabia o que podia partilhar convosco. Vivo do meu trabalho docente, não me considero poeta, e se admito que me chamem escritor é pelo facto de ter escrito milhares de páginas (99% indignas de publicação). Sou também agricultor de ocasião, sou filho, sou marido, sou pai, mas, à parte de tanto que me pode definir ou tornar ainda mais confusa a minha existência, a única coisa que sou é um ser humano repleto de dúvidas, inseguranças e com escassas certezas. Essas certezas estão na base das minhas tentativas de cultivar uma vida com sentido e, como tudo na vida, não são nada novo, existem desde a antiguidade, são transversais a outras civilizações e o que faço é impregná-las com as minhas imperfeições através das minhas interpretações.
A filósofa e investigadora Emily Esfahani Smith enuncia algumas destas certezas como “pilares de uma vida com sentido”, eu prefiro olhar para elas como olho para as árvores, como concebo o seu enraizamento, o seu crescimento, a tutorização, a poda, a sua resistência às estações e elementos, o legado da sombra, até ao seu termo, preferencialmente de pé, ou se somos dignos de uma existência memorável, fulminados por um raio.
Portanto, permitam-me partilhar convosco os elementos que considero basilares para esta busca, elementos estes que têm como partida a saúde integral do ser humano, pois sem ela parece-me que tudo o resto é difícil de se encontrar.
1º Elemento: “Pertença”
A primeira vez que ouvi falar de estímulo e de reforço positivo foi a um sacerdote (o cónego Manuel Barros) e ainda eu estava longe dos bancos de pedagogia na universidade. Advogo que nos sintamos valorizados e valorizemos os demais. Em casa, no carro, no trabalho, nas redes sociais, onde quer que seja. A qualquer escala existe singularidade e importância, algo bem mais relevante do que ópticas utilitaristas no seio de qualquer instituição ou sociedade.
Tenho a sorte de a minha infância, adolescência e início da vida adulta pertencerem a Évora. Fui plantado aqui, as minhas raízes foram generosamente regadas aqui, fui, à semelhança limoeiro, bastante podado e sovado aqui, até ser transplantado para outros solos da nossa Ibéria, solos esses nos quais o meu sistema radicular sempre denunciará húmus eborense. Eis o porquê de quando se menciona um lugar no mundo, o meu tende a encontrar-se na honestidade, na lealdade para com as minhas raízes e na esperança que frutifique algo digno de quem as plantou.
2º Elemento: “Propósito”
Luto constantemente por este elemento. Sou vulnerável ao absurdo, sou capaz de entender a vida como paixão inútil, à maneira de Sartre, porém, evito o chamamento do niilismo, e resisto, como vou podendo, a responder às questões dos meus filhos de se Deus existe ou há uma vida para além desta que nos tocou viver .
Por outras palavras, a criança insegura que habita em mim tem tanta dificuldade em manter vivos propósitos, que não escondo os meus objetivos, as minhas causas, as minhas motivações serem o motor e o combustível da minha acção, à qual junto uma certa noção de dever, talvez anacrónica, mas sem a qual seria bem possível que as minhas insónias se multiplicassem.
Sem ser estóico, quero encontrar alguma virtude associada ao propósito e para mim os mesmos não se medem por prestígio ou significância, portanto tão respeitável é um desígnio de encontrar curas para as doenças do corpo, como a vontade de preservar um legado humanista num planeta tão viciado na técnica que tende a esquecer a sua própria alma.
3º Elemento: “Transcendência”
Por mais que o nosso ego nos diga o contrário, a verdade é que somos minúsculos, simples vestígios de poeira cósmica. A imagem do astronauta, sem gravidade, a ser invadido pela total humildade de saber-se uma partícula microscópica num vasto e incompreensível universo, fascina-me, pois esta consciência da pouca importância da nossa pessoa no cosmos é, paradoxalmente, um sentimento poderoso e profundo. Sou aquilo que denomino um “crente discreto” e houve épocas em que me ajoelhei perante altares erguidos pelo homem. Hoje a minha oração encontra-se no silêncio, na contemplação de várias naturezas. Na transcendência aproximarmo-nos da sabedoria daquilo que somos e do que não somos.
4º Elemento: “Narrativa”
Charles Dickens perguntava, através de David Copperfield, “serei eu o herói da minha história ou qualquer outro tomará esse lugar?”. Quero dizer, que história de vida contamos a nós próprios?
Miguel Torga escrevia diários (e não só), o imperador Marco Aurélio meditações, o Ellon Musk escreve no Twitter (e por isso comprou-o), eu num blogue, o António Aleixo quadras populares e Claudio Rodríguez poesia, quando, como dizia o próprio, “estava poeta”.
Escrever a nossa vida ajuda a retirá-la da fragilidade do nosso corpo, do efémero dos nossos dias, e, com ou sem artifícios, permite editá-la perante os nossos próprios olhos. Decidir organizar os capítulos da nossa existência, decidir pontuar parágrafos, recorrer a vírgulas e pôr pontos finais, é o livre-arbítrio na nossa história que, como bem lembrou Victor Frankl, nos pode salvar (e este neuropsiquiatra austríaco, formado pelo Holocausto, sabia empiricamente do que nos lembrava). Em resumo, porventura o sentido da vida não será muito diferente da sintaxe numa frase, quanto mais coerente é, mais sentido tem.
Estes são os quatro pilares para viver uma vida com sentido inventariados por Emily Esfahani. Admito existirem mais nos quais possamos apoiar a carga que, por vezes, é viver e encontrar sentido onde, quer queiramos, quer não, simplesmente não existe. Nesta etapa da minha vida, em pleno século XXI na qual os extremos exterminam a moderação, tento cultivar um elemento que custa a germinar, no entanto, através da insistência, da rotina, acredito ser uma filosofia de vida.
5º Elemento: “Amabilidade”
Fernando Assis Pacheco dizia «Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros, mesmo os inúteis». A amabilidade é um deles, mas na sua aparente inutilidade tem um super-poder que não pertence a nenhuma personagem da banda desenhada comprada pela Disney e está ao alcance de qualquer um de nós: tem o poder de não piorar o mundo. Tenho fé nesta fórmula, já que é tão complicado melhorá-lo, simplesmente não o deixemos pior, e a amabilidade, nem que seja por segundos, aligeira qualquer existência. Se da amabilidade formos capazes de dar o salto para a generosidade (caridade não, essa palavra carece de altruísmo!) intuo que o futuro terá mais qualidades dignas do ser humano do que o presente.
Os Cinco Elementos
Estes são os cinco elementos que considero ferramentas fundamentais para cultivar uma vida com sentido. Não são messiânicos nem panaceia para solucionar os problemas do mundo. Se alguém tem razão, apesar do contributo inestimável de tantos como Jesus Cristo ou Buda (não menciono Maomé porque não conheço suficientemente o Corão e tenho as minhas dúvidas), é Ghandi ao diagnosticar que “os problemas do mundo solucionar-se-ão no dia em que cada um de nós limpar a sua própria retrete”. (Confesso, neste momento estou a pensar em Donald Trump, agachado a esfregar a sua sanita de ouro maciço).
A vida continua “a salto de mata”...
Depois de ter merecido, ou roubado, o vosso tempo, é impossível negar que sou alguém que se vai encontrando nos outros, na família, nos amigos, na comunidade, mas igualmente no silêncio, na arte, na própria parvoíce, e que sente como suas as palavras de Antonio Machado. Sim, “há nas minhas veias gotas de sangue jacobino, mas o meu verso brota de nascentes serenas, e, mais do que um homem ciente de saber a sua doutrina”, tento ser, tento ser, “no bom sentido da palavra, bom”.