"Habitar" de José Antonio Santiago (Apresentação 25/11/2016 em Leganés)

“Habitar” é dos verbos mais importantes para a condição humana que, infelizmente, se vê pervertido por um materialismo de índole economicista. “Habitar” não é sinónimo de construção nem de propriedade. É tão transitório no seu aparente imobilismo de tijolo e cimento, que nos esquecemos do habitante poder ser também o habitat.

José Antonio Santiago Sánchez sabe-o melhor do que ninguém. Ele, e eu, habita onde sempre é primavera porque o inverno não se acaba e o verão e o outono não se põem de acordo com o calendário oficial…

Lado a lado, vejo o meu filho a juntar letras em sílabas e sílabas em palavras. Antes de sequer imaginar que começaria a ler, um ano antes de que eu começara a ler, fluem-lhe frases com esforço mas repletas de naturalidade.
Tem um rosto meigo e uns olhos sinceros. Lembra-me o físico do lado Leal da família, com a capacidade de desenhar herdada do lado da mãe. Já sabe ler. É a terceira geração letrada...
O meu avô João Leal continua a definhar, o seu bisavô analfabeto continua à espera do fim da escrita naquele lar... Aqui aprende-se a ler e há amor inocente nesta rima triste com morrer...

Queixo semeado de meninice (Leiria)

Tenho o queixo semeado de barba branca. A mandíbula desleixada e com remoinhos de preguiça de pêlos a necessitarem de ser cortados ou (para disfarçar o estar-me a cagar para estas pilosidades) penteados.
É normal que os meus trinta e seis anos sejam mais que evidentes o menino, a viver em mim, esteja escondido debaixo do ar de falso pioneiro, ou peregrino, que a minha pinta vai promovendo fora de mim. 
Mas há sempre quem invista para além da barba cerrada, dos dias por barbear e não deixem de encontrar a alma imberbe vinda ao mundo sem saber para quê. Agradeço à simpática senhora do self-service, da sopa de legumes e do bacalhau à Gomes de Sá, me ter lembrado, ao tratar-me por menino, ainda não ter idade para beber café e beber vinho. Fiquei-me por um sumo de laranja natural mas, para reivindicar um queixo que não quero fino, não abdiquei do cafézinho. Sozinho, cheio, a observar este menino não querer envelhecer. 
Porra para a sementeira de canas brancas...

Honestidade

"Sabendo o que sei hoje, trocava os meus sete romances por um filho" - Valter Hugo Mãe (entrevista ao "Diário de Notícias")

sábado, outubro 29, 2016

The theory of poetry

Cortesia do grande Jorge Rosmaninho Neto, sempre a semear o ar com o seu fértil olhar... Obrigado amigo.

Ruy Belo


Esta é a medida de espanha
ó vida minha vida estranha


Ruy Belo, "Homem de palavra(s)"

quinta-feira, outubro 27, 2016

Mona Lisa

A rececionista chamou:
- D. Mona Lisa Cruz!?
Levantou-se uma pintura africana, inspirada por Da Vinci, e dirigiu-se para o gabinete do fundo onde se prepararia para a ecografia.
Estranheza só se tem quando não se sabe apreciar a composição do quadro. Aquele era real e casualmente belo no quotidiano cinzento desta semana. Não precisei de estar nas filas intermináveis do Louvre para o contemplar. Mona Lisa estava ali, acompanhada do marido a tratá-la como peça de arte única a precisar de cuidados especiais, mostrando-me que, afinal, o nome até não desfigura o ser.

O meu “pueblo” Valencia de Alcántara (in "Mais Alentejo"nº135)

A primeira vez que viajou até ao país vizinho a fronteira estava povoada por alfândegas e guardas-fiscais. Nem sequer imaginava um dia a poder cruzar livremente, no velho Clio, de mala cheia e, no banco de trás, para caber, uma bicicleta desmontada e não ter de abrir o porta-bagagens para declarar os escassos pertences.

Atrás deixava a geografia do Alentejo, no fundo desconhecida, e, na fronteira dos Galegos, vislumbrou pela primeira vez Puerto Roque, onde escalaria um 5 de Outubro e cairia numa cicatriz, essa dolorosa lembrança de um tornozelo partido que prefere sentir com orgulho republicano.

Adentrado em território espanhol, apercebeu-se dum recente incêndio, visível no cinzento rochoso carente do verde flora de antanho. Não sabia o que pensar. Esperava que devido ao facto de, entre 1644 e 1668, esta raia ter sido portuguesa, a mesma não tivesse contraído o mal crónico dos fogos florestais.

No semáforo das Huertas, experimentou o prazer de cumprimentar o banco de homens sentados à porta do bar. Seguiu em frente, pela N521, mais alguns quilómetros até à entrada do “pueblo”.

A noção de “pueblo” em português pode traduzir-se numa localidade mais pequena que a cidade, abarcando a dimensão da vila e da aldeia, e Valencia de Alcántara tinha-lhe passado de raspão no mapa das estradas a caminho de Cáceres, contudo ali estava, a tirar mochila e sacos do carro, para começar uma nova vida laboral na escola secundária da terra.

À semelhança da última capital de distrito portuguesa por onde passara na viagem, não se via muita gente nesse primeiro domingo de Setembro. Estacionado no parque das “Ranas”, subiu com a tralha para o apartamento alugado ao Sr. Maneli (um bom amigo a quem deve uma crónica) e terminou a tarde absorta na varanda virada a pôr-do-sol.

Saiu de casa. O recolhimento da tarde fora substituído pelo alarido dum serão de gente a falar, a rir, a comer, a tomar a sua “cañita” ao balcão de um bar ou numa das muitas esplanadas. As crianças corriam pela praça e brincavam no parque com uma alegria despreocupada à qual não estava acostumado no outro lado da fronteira.

Sentia a mudança. O sotaque anunciava-lhe a condição de estrangeiro cuja pinta confundia a procedência de jovem duma cidade do interior português. Caminhou só pelo Bairro Gótico, subiu ao castelo e parou no Rocamador, onde se celebrara a boda régia de Isabel de Aragão e D. Manuel de Portugal. Aí lembrou-se das vinhetas duma agradável BD, lida há pouco, sobre “Histórias da Raia”.

Regressou tarde, ainda acompanhado pelo movimento da rua. Queria descansar o suficiente para se levantar cedo e apresentar-se com boa cara na escola. “Hola, soy Luis, el nuevo profesor de portugués”.

Não foi preciso lembrar-se da canção do Sérgio, era o primeiro dia do resto da sua vida, dum contrabando de afectos que o levaria à Fontañera, a El Pino, à Aceña, ao Jiniebro, a toda essa “campiña” que, cada dia 15 de Maio, celebra S. Isidro, o Lavrador, vestida a rigor e com carroça a condizer.

Não são muitos os portugueses a adoptarem um “pueblo”. Em Portugal não se ouve tanto dizer ao fim-de-semana, num feriado feito ponte (vá lá, talvez nas férias grandes, mais a norte do país), “vou para a minha aldeia, vila…”. Seria pouco provável uma campanha de marketing, como a que fez aqui ao lado uma famosa bebida isotónica, ao propor-se pôr em contacto “pueblos” a necessitarem de gente e gente a necessitar de “pueblos”. Em Espanha, o amor e regresso ao “pueblo” perpassa gerações e não se resume ao berço, vive-se.

Hoje já não está em Valencia de Alcántara. Sente-se afortunado por aquele “pueblo” o ter deixado ser o seu durante sete anos. Agradece-lhe por, ao ser de cidade, poder sempre dizer “Valencia es mi pueblo”.

Outra vez com herpes literários

É por estas pequenas coisas que ainda aturo o ego do Lobo Antunes: "(...) Para sempre, porque a amizade de dois homens, tal como o herpes, é para toda a vida. 
É que os homens, quando de facto o são, estão condenados a entenderem-se. Meu camarada, meu companheiro, meu mano para sempre." (ao Ernesto Melo Antunes)
Se é o génio cuja escrita mudará para sempre a literatura portuguesa não sei. Para mim é "como o herpes". Há mais de uma década que me rebenta a boca todas as semanas.

sexta-feira, outubro 21, 2016

"Los espistolarios sirven para pegarse un tiro con la pistola que hay en su título" - Ramón Gómez de la Serna (in "Greguerías", 1940-1943)

quinta-feira, outubro 20, 2016

"O sorriso do cão" - Crónica de António Lobo Antunes (in "Visão", 13.10.16)

"(...) O problema do cão é que vai obrigar-me a vasculhar nos caixotes à procura de ossos enquanto ele espera, comovido, um resto de tutano, ferrando os dentes que ainda lhe sobejam no que ele imagina uma sobra de carninha que quase não há e da qual, se houvesse, eu aproveitaria os últimos fiapos. Por aqui se depreende que escrever crónicas é um trabalho não apenas penoso mas terrível de dificuldade e persistência.  Se, por exemplo, eu falasse de política seria canja mas não posso porque a minha mãe ensinou os filhos a não se sujarem, era uma mulher honesta e detestava porcarias."

segunda-feira, outubro 17, 2016

A linha da vida

Se a vida for como uma linha desenhada num papel branco, um risco com princípio e fim, em que parte me encontrarei? 
Pela idade contabilizada no bilhete de identidade, espero encontrar-me uns restos de tinta, ou de antracite se se desenhou a lápis, antes do meio do traçado. 
Irwin Yalom, psiquiatra e célebre autor do "O dia em que Nietzsche chorou", usa esta analogia linear com os seus pacientes, exigindo-lhes uma localização cronológica e uma reflexão no baú dos remorsos. 
Não tenho muitos, mas tenho alguns, quase todos relacionados com perdas de tempo e com condutas pessoais que deveriam ter sido melhores como ser humano. Felizmente, não se tratam de remorsos feitos em insónias. 
Conhecermo-nos mais ou menos ajuda. Não tenho medo de reconhecer a minha vergonha nem as minhas limitações. 
Hoje cruzei-me com uma vergonha que me moldou e que se silenciou com o tempo. Quando era adolescente tive uma paixão como tantos outros clientes da Clearasil. Apaixonei-me e via na outra pessoa tudo aquilo que a falta de maturidade, o impulso sexual, o idílico romântico dos 17 anos te fazem pensar que é aquela e será eterna. 
Atirei-me de cabeça, baixei a guarda, abri os cordões à bolsa de moedas de mealheiro e tentei ser o mais encantador que um neto de analfabetos e filho de trabalhadores podia ser. Até pensava ter um look que ajudasse à conquista, a essa lenda de paixão a ondular nos meus cabelos louros. A verdade é que nunca fui muito confiante no que concernia a assuntos do sexo oposto, mas desta vez ia ser diferente, gostava da chavala a valer e ela correspondeu com charme, sedução e uns quantos serões de Verão de "curtes". 
A coisa não deu. Ela não estava virada para um "Brad Pinto" ridículo, pouco educado (a dizer "a gente vamos") e sem garantias dum futuro imediato interessante a vislumbrar desejos futuro. Conheci a minha primeira insónia. Derrotado na cama calorosa de Agosto, enrolei-me ensopado nos lençóis da vergonha e fechei para sempre a frustração de não ter sido aquela. 
Fui ao tapete muitíssimas mais vezes, inseguro mas atrevido, tentei viver o momento como me foi possível. Encontrei o amor e a reciprocidade e abraço-a todos os dias. 
Dessa época ficou essa vergonha, a de ter sido recusado. Sei que não era o indicado, que não encaixaríamos. Doía-me sentir a diferença, aquela que alguns do seu entorno apontavam a dedo, "ele não é do teu nível, do nosso nível"... Hoje esses que apontavam estão em cargos de poder político em Portugal. Por acaso são sociais-democratas mas podiam ser de outro partido qualquer. 
Como o Nietzsche, cujas lágrimas terão tido sífilis, o que não me matou fez-me mais forte. Mas tive vergonha, muita vergonha. De onde vinha, da humildade dos meus, da sua iliteracia, do nosso carro, de ter de dar serventia de pedreiro ao meu pai, de casa, do bairro, das minhas roupas, de mim. 
Hoje envergonho-me da minha vergonha. Sei o nível que tenho e gosto de não ter o mesmo nível dos que tão bem sabem apontar.

O monge e o gato ("photo by Jasper Flemming")

O monge e o gato

No mosteiro havia apenas um gato. Não tinha dono apenas um monge tratador que, para além de tratar da barriga do felino, cuidava com paciência de encinho o jardim zen.

O gato gostava de apanhar sol num dos grandes seixos trazidos do ribeiro, ali mesmo no meio do jardim, deixando um pequeno rasto de patitas atrevidas na fina areia, lavrada, ordenada e simétrica pelos dentes do encinho do encarregado monacal. Esta presença gatuna não ajudava à concentração do monge tratador, chateava-o frequentemente, talvez por não conseguir acariciar a natureza do animal.

Um dia, ao arar a suavidade do jardim, viu como, pata ante pata, o gato desafiava a sua presença e se sentava a olhá-lo desde o centro do areal. Pensou para consigo mesmo ao ver-se fitado por aquele verdejante olhar: “Ainda por cima desafia a minha presença, eu que sou quem lhe dá de comer!”.

O momento durou o tempo que o gato quis que durasse. Como se estivesse farto dos pensamentos inúteis do tratador, pisou outra vez a areia em direção ao indignado monge.

Parou a meio e defecou no jardim sem geometrias floridas.

O monge não soube se teve naquele instante o seu quê de zen ou se foi posteriormente, quando foi buscar uma pá e apanhou as provas daquele momento. 

domingo, outubro 16, 2016

O meu passo

O meu passo é firme e o firmamento
não se afunda em areia movediça.

A terra não treme e o tremor
não conhece medo nem esperança.

Quando caminho, é um romeiro
quem caminha.

Quando descanso, é uma planície
que descansa.

O meu bastão é um reduto de solidão.
Governo-o só, amparado pela multidão.  

sábado, outubro 15, 2016

A primeira aula de condução ao colo do meu pai

Também o meu pai me sentava no seu colo e me deixava controlar o volante para estacionar o velho 127 debaixo do telheiro de zinco do nosso quintal. Hoje, em comum temos o facto de termos dois carros antigos e um filho no colo. De carácter, sou mais aventureiro que o meu pai e hoje metemo-nos numa estrada de terra no Garro de Cima... Para trás ficou uma nuvem de pó, um sorriso de criança a sentir-se aceite no mundo adulto e um adulto a recordar o colo do seu pai...

A vida (Mário Quintana)




A VIDA

A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida...

Quando se vê, passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado..
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava
o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca
dourada e inútil das horas...
Seguraria o meu amor, que está a muito à minha frente, e diria
EU TE AMO...
Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido
à falta de tempo.

Não deixe de ter alguém ao seu lado
por puro medo de ser feliz.

A única falta que terás será desse tempo que infelizmente...
não voltará mais.

Mario Quintana 




quinta-feira, outubro 13, 2016

Bob Dylan, Prémio Nobel da Literatura

As únicas artes cujo número sei que ocupam no “ranking” artístico são a 7ª (cinema) e a 9º (banda desenhada). Os suecos outorgaram hoje um Nobel da Literatura que pôs para aí os “ratings” das artes às avessas… 
O D. Dinis que sabia trovar queixava-se que os provençais só o faziam no tempo da flor, já o trovador Bob Dylan fê-lo uma vida inteira sem ter medo de “bater a umas quantas portas”. As da eternidade escancarou-as em pleno século XX, hoje parece que foram as da instituição literária… O Martín Codax, o Nuno Fernandes Torneol, o Pero Meogo e até o Mendinho estão felizes com o galardão. A partir de agora vai ser mais fácil legitimar o estudo da lírica galaico-portuguesa na história da literatura.
Entretanto, a ver se não morre o Leonard Cohen, está mal de saúde, e com o “ranking” artístico assim vai ser difícil fazer-lhe o obituário. 
Notícias de última hora: Desde o além, o Winston Churchill e o Sartre parece que se estão a marimbar para o assunto. Dizem que “o prémio vai ficar por aí e o estatuto de poeta, ou letrista, ou escritor, ou filósofo, ou o que quer que seja, vai continuar a soprar-se no vento. Chato mesmo é a morte do artista.”.

terça-feira, outubro 11, 2016

Mon petit garçon (Serge Reggiani)




Une vieille chanson pour Elsa: "Mon petit garçon". La voix du grand Serge Reggiani!





domingo, outubro 09, 2016

"Unbreakable"

A casualidade é um grande símbolo e tem a interpretação que lhe queiramos dar. Em inglês diz-se "everything happens for a reason" em tom tão proverbial e global para o mundo de hoje. Não sei se acredito nisso. 
O primeiro filme que vimos juntos chamava-se "Unbreakable" e quinze anos depois apercebemo-nos que o título casualmente define a liga com a qual nos temos forjado... 
Essa é a interpretação que lhe queremos dar, a razão porque tudo tem acontecido... 
Esta é uma liga composta por dois metais pesados à qual se juntaram outros elementos numa temperatura estabilizada para a durabilidade.

[nove poemas] de Ángel Campos (in "Devir#3, antologia organizada por Luis Leal)

Solo conocí la obra de Ángel Campos después de su muerte gracias a mi buen amigo José Antonio Santiago, sin embargo hoy puedo afirmar que es una de las poéticas que mejor conozco y siento por afinidad rayana… Por eso acepté el reto de los directores de la revista “Devir” para organizar la antología de su nº3. Me enorgullece su confianza como la confianza de la familia del poeta que me permitió elegir estos [nueve poemas]… También la amistad de los que me ayudaron en esta difícil (e ingrata) tarea de seleccionar poemas… Gracias


Apenas conheci a obra de Ángel Campos depois da sua morte graças ao meu bom amigo José Antonio Santiago, no entanto hoje posso afirmar ser uma das poéticas que melhor conheço e sinto por afinidade raiana… Por isso aceitei o repto dos directores da revista “Devir” para organizar a antologia do seu nº3. Orgulho-me da sua confiança como da confiança da família do poeta que me permitiu escolher estes [nove poemas]… Também a amizade dos que me ajudaram nesta difícil (e ingrata) tarefa de seleccionar poemas… Obrigado.


A Vida na (minha) Terra

Para uma família de católicos dum bairro periférico de Évora nos anos 80, a vida na terra era uma bênção de catálogo Reader's Digest e não de Deus. Esta aproximação à biologia e às teorias de Darwin era um complemento à bíblia e aos seus versículos.
Hoje ao cruzar-me com o que este livro do David Attembourgh fez por mim, apercebi-me que ele estava lá antes da bíblia. É verdade. Apesar do cristianismo herdado pelos sacramentos, o pretenso livro com a palavra d'Ele só se adquiriu já o meu corpo estava na puberdade e os meus pais eram devotos casais de Santa Maria (parece que o Guterres também foi, logo tenho algo em comum com o atual orgulho luso). 
Ficava horas nas páginas dedicadas aos tubarões e aos dinossauros, tanto era o fascínio que "A Vida na Terra"  em mim exercia. De capa dura, papel de altíssima qualidade, este livro impunha-se perante a escassez bibliográfica que a minha mãe paliava com o "Sexus" do Henry Miller, o "Sangue na Areia" do Ibáñez, se não me engano, "Os Deuses e Demónios da Medicina" do Namora e uns escassos mais liderados pelo "Kamasutra" da Vastsyayana. Se as vezes que folheei e li excertos deste livro fosse proporcional às minhas experiências podia anunciar-me no jornal como guru sexual. Mas aqueles desenhos indianos, atrevidos de conteúdo explicito para adulto mas ainda por descobrir para um puto curioso, não eram rivais das bandas desenhadas pornográficas que o meu tio Leopoldo me comprava nos quiosques da Senhora da Rocha e de Porches. Talvez por serem tão uni-dimensionais, e de estética quase egípcia, e isso comparado com o traço voluptuoso de inspiração Manara não sei se me desperta mais a libido ou a nostalgia.
Não tínhamos muitos livros em casa mas tínhamos os suficientes. A "Vida na Terra" era um deles... Hoje precisaria de uma edição aumentada de mim. Feito estúpido pus-me a ler outras vidas, a viver outros nomes, e já não sou o borbulhento de antes agarrado às grandes bestas da natureza... Agarrei-me a outras bestas, às que não têm desculpa por serem umas bestas... 

quarta-feira, outubro 05, 2016

Broken bones... 10 years ago...

Há dez anos atrás, quis a ironia do destino que o 5 de outubro, e a minha condição republicana, me ficasse marcado com uma bela cicatriz no tornozelo direito. 
Ficou feio, mais gordo e com menos flexibilidade do que o esquerdo, mas já não me imagino sem esse tom cor-de-rosa cicatrizado com marcas de pontos da cozedura no artelho. 
Estava com dois amigos a escalar em Puerto Roque e no horizonte avistávamos Marvão. O Javi e o Michel, amigos distantes fisicamente, mas presentes no meu coração. 
Foram meses duros de dor física. Psicologicamente também, inseguro numa nova realidade laboral, numa nova localidade, numa nova sociedade. 
Só voltei a escalar mais duas ou três vezes depois de ter partido o tornozelo neste acidente. Nem foi por medo, foi por falta de tempo, meios, companhia e até vontade. Não há trauma pós-trauma ortopédico. Há muito mais consciência de mim, do meu corpo, das minhas limitações, das minhas expectativas e do tempo que passou desde esse dia. 
10 anos é uma quantidade interessante de números numa cronologia. Uma década em que o meu corpo conheceu esta e outras limitações mas o espírito parece mais leve... 
Não me apeguei a estes 10 anos, aferrei-me a várias pessoas durante estes anos... sin flexibilidad en el tobillo pero muchísimo más flexible de espíritu... 

terça-feira, outubro 04, 2016

Júlio Pereira - Chula de Lisboa



Júlio Pereira - "Chula de Lisboa" do disco Os Sete Instrumentos (LP 1986)

Musica (primeiro disco de originais), arranjo e direcção musical de Júlio Pereira.
Participam entre outros, José Mário Branco, Carlos Zingaro e Ana Bola.




Elemento "Fogo"

Os efeitos do fogo são os mais versados, de isso não há dúvida. Do Camões, antes o Sá de Miranda, o Marlowe, o Goethe, até tantíssimos outros, há queimaduras de vários graus, carvão convertido em minas de lápis, cinzas misturadas com o pó de lares e de estradas de terra batida. 
Ardem para aí volumes de polémica, paranóias de egos, mitos de chama olímpica de anti-"fairplay", tanto combustível pacóvio, ardem muitos fios e pavios e dinamita-se tempo. 
É assim em tudo. Não apenas neste mundo descrito por palavras e carregado de pretensiosa lenha literária que não passa de palha elitista. A palha verdadeira pelo menos alimenta burros e aquece-lhes o camalho. 
Mas, mesmo assim, estas altas temperaturas, atraem-me e fixam-me o olhar quando se incendeiam flamejantes. Só desculpo o pirómano se admitir puxar fogo ao pousio do passado para adubar com cinza um futuro mais original. 
Brinco com o fogo cada vez que passo para o papel muitas das fagulhas que me vão saltando de dentro. Não o posso evitar. Se tudo aqui arder, a cinza que restar nada trará de original. Aceito, sem queixume, que o esterco é bem melhor para fertilizar.

segunda-feira, outubro 03, 2016

Ossos do ofício...

Quase nunca escrevo sobre a minha profissão, aquela da minha formação básica, aquela que acredito ter vocação (sem me ver exclusivo e escravo dela). Mesmo a pensar na minha família - prioridade pela razão - sei que é à minha profissão ao que dedico mais horas da minha vida. É uma realidade consciente e bastante bem equilibrada com excepção de alguns dias como o de hoje. 
Contar-se-ão pelos dedos de uma mão as vezes que entrei no local onde exerço a função de docente sem uma preparação prévia. Não me atrevo a dizer nunca, por o síndrome da terra do Peter Pan e por alguma vez ter improvisado algum relax em contexto de sala de aula. Mas mesmo até o relax deve estar pensado e contextualizado para melhorar o processo de ensino/aprendizagem e melhorar a nossa prática docente. 
Tanta palha para dizer que sou professor. Tenho orgulho nas minhas funções como tinha quando repunha no supermercado, trabalhava no "Sol e Desporto", lavava pratos no restaurante do meu tio ou ajudava o meu pai a fazer cimento e outros trabalhos manuais, quase sempre no Verão. 
Há nobreza em todos os trabalhos feitos com honestidade e remunerados e respeitados com honestidade. O meu vai-me pondo comida na mesa, vestindo e possibilitando uma vida sóbria, sem luxos, com direito a alguma dignidade laboral. Não é perfeito mas é justo o suficiente para estes tempos tão injustos em que somos governados apenas por técnica cega para a humanidade. 
Mas ensinar, com todos os métodos e técnicas pedagógicas de última geração, exige predisposição do outro, respeito pela tua condição e, algo nada divertido no meio de tanto facilitismo, algum esforço. Não me posso queixar demasiado, vou tendo alunos dignos da minha dedicação, eu digno deles ou um pouco de ambas coisas. No entanto, há funções que desempenho extra sala de aula no espaço escolar que me fazem pensar se acharei vocação nos anos vindouros. Estar a fazer rondas no pátio, estilo polícia educativo, e as famosas aulas de substituição, onde aguento os alunos cujo professor está ausente nesse momento. Entras numa sala de aula e aguentas uma hora a impor disciplina sem grande didáctica possível para entreter o vazio...  Um carcereiro poderia fazer o mesmo, com a opção de disciplinar à cacetada ou sancionar com o código penal...  
Só quero poder ensinar a dignidade com dignidade e respeito. Quem quiser aprender tudo farei para estar à altura de tamanha exigência... Mesmo quem não queira, tentarei enquanto achar que vale a pena... Até ao limite do humanamente possível sem deteriorar-me como pessoa, se chegas a esse limite nem és um bom profissional nem um ser humano equilibrado (o que quer que isso signifique!?). 
Hoje, no recreio, houve um prenúncio de zaragata feminina, estúpida, meio delinquente, e, no meio da massa interessada na possível cena de porrada, a escassa autoridade da minha função foi ridícula, indiferente e pouco efectiva. A coisa felizmente não piorou, ficou por um bate boca reflexo da educação daquelas jovens sem afectos e sexualmente activas sabe Deus desde quando... Eu voltei a pensar o que já pensei tantas vezes. "Foda-se, o que é que eu ando aqui a fazer?". 
A resposta está ali. Rumou para ali, para a barafunda "vouyer" hormonal e adolescente. Ser professor numa modernidade que não necessita de ser ensinada, basta ser vivida, intensamente consumida, é uma profissão de risco mental e físico. Quem está preocupado? 
Eu faço sempre o mesmo. Lembro-me que a vocação não é singular, é plural. Há vocação em tantas outras coisas e não tenho de deixar de ser um professor sem vocação. Nego-me a ser assediado por esta circunstância. Penso no meu ego, na minha auto-estima, na verdadeira arte de ensinar, sem politicamente ou socialmente correto, numa "Arte da Guerra" para a educação do século XXI. 
Se não consigo derrotar a multidão para quê enfrentá-la? Mistura-te nela e mina o sistema desde dentro... Há sempre alguém que se apercebe que não vamos longe com peças defeituosas...

"Portugal es el verdadero descubrimiento de este viaje" - Ramón Gómez de la Serna

“Portugal es el verdadero descubrimiento de este viaje (…) Tenemos que visitarlo urgentemente. (…) Iremos a Portugal. Llamaremos a todos excelencias y nos lo dejaremos llamar, aunque en medio de esa cortesía entrañable más que etiquetera, seamos totalmente democráticos. Iremos a Lisboa porque, entre otras cosas, nos ha encantado eso que nos ha contado Carmen [de Burgos] de que está llena de jardines con grandes árboles, con aquellos grandes árboles, cosa muy importante y que hace que las grandes capitales que extirparon sus jardines hayan abolido algo muy importante, necesario, mejorador, que influye tanto en la ternura y en el espíritu de todos.” – Ramón Gómez de la Serna


domingo, outubro 02, 2016

A Rádio Phillips salva um domingo qualquer...

O domingo sempre foi um dia odioso. O regresso à escola, a segunda obrigada de rotina no calendário semanal carregam de estranheza o dia em que o senhor descansou da criação do mundo.
Já não tenho este dia tão traumático, desculpem o peso que só quer ser literário do adjectivo, como quando era miúdo mas continuo a não gostar dele...
Só tolero as manhãs lentas, de café e torradas com a família, de disco domingueiro eleito para banda sonora e o velho rádio Phillips, herdado do meu pai, sintonizado com o mundo...
Os meus filhos não se apercebem desta antipatia de final de semana, nem lhes demonstro muito. Não quero que herdem as minhas animosidades, os meus ódios de estimação, a minha infantilidade da qual não me orgulho - aquela que vale a pena esteve num conflito familiar galáctico de bonecos do Darth Vader, Luke Skywalker e Kylo Ren antes da hora da cama -, em fim,  não quero que herdem a minha estupidez, já terão a suficiente com a sua.
Gostava que apenas herdassem o velho rádio Phillips e a boa onda que nos transmite. Também era do meu pai, deu-mo quando sai de casa sem saber que iria tocar as manhãs e os fim-de-semana que esteve em casa e não teve de estar fora a trabalhar. Os meus miúdos são dois e não sei como serão a partilharem os escassos bens materiais que por cá deixar ... O rádio Phillips, se ainda existir, que se entendam, mas a onda no ar essa já a estão a partilhar... Sem ódios de estimação, só rotina, da boa, da que cheira a café...

Bruce Springsteen, in “Born to Run”, p.31 (trad. Luis Leal)

“Com os anos (…) cheguei a sentir a fadiga emocional e corporal do catolicismo. No dia da minha graduação do 8ºano, saí de tudo aquilo, farto, a dizer a mim mesmo «Nunca mais». Era livre, por fim livre… e assim eu acreditei… durante bastante tempo. No entanto, conforme ia ficando mais velho, fui detetando certas coisas na minha forma de pensar, reagir e comportar-me. E acabei por entender, com perplexidade e tristeza, que um católico o é para sempre. E deixei de enganar-me. Não sou um praticante assíduo da minha religião, mas sei que em algum lugar muito dentro… continuo a formar parte da equipa.
Era esse o mundo no qual encontrei as origens da minha canção. No catolicismo existiam a poesia, o perigo e a obscuridade que refletiam a minha imaginação e o meu eu interior. Descobri uma terra de grande e escabrosa beleza, histórias fantásticas, castigos inimagináveis e recompensa infinita. Era um lugar glorioso e patético no qual ou encaixas ou te fazem encaixar. Tem estado junto de mim como um sonho em vigilância durante toda a vida.”

Bruce Springsteen, in “Born to Run”, p.31 (trad. Luis Leal)

Le vélo du printemps - Robert Doisneau




Robert Doisneau, A bicicleta da primavera (1948)