terça-feira, junho 27, 2017

Angústia adormecida

Estava cansado. Há dias que durmo a correr, depressa. Acordo cansado e o primeiro pensamento é quando poderei dormir outra vez. Se encontro uma resposta mental distante do final do dia, há uma sensação de consolo. Pouca vezes acontece e entro no remédio da rotina.
Estava cansado. Mas não dormi à pressa. Dormi descansado até que o sono, pesado de tantos dias acumulados, começou a sonhar angústias de pai ainda filho e neto. 
Despedidas. Ritmo cardíaco acelerado. Perguntas sem resposta. Saudades que não deveriam existir. A vida real projectada num inconsciente dum homem que não consegue deixar de querer ter fé nos olhos herdados da infância.

«Saudades de mim» é um livro tardio de António Ferro. O polémico homem da política do espírito do Estado Novo não é um poeta de referência para mim, ao contrário da sua personalidade fascinante, e aqui o tenho na mão, lido, estudado. Debruço-me sobre o título e acabo por reconhecer neste saudosismo algo de mim também.
Amanhã comerei as minhas palavras. Esquecerei noites de subconsciente incontrolável, angústias das minhas circunstâncias de homem de fronteira e negarei a saudade com medo da sua existência. Uma coisa só existe se a aceitarmos.

Que, um problema relativo

Que, um problema relativo de escrita. É verdade da qual estou consciente há muito e sem ter tido grandes conselhos de redacção criativa. Ao contrário de mim, os grandes escritores, os do panteão e os anónimos, não abusam da primeira pessoa do singular e não recorrem com demasiada frequência ao pronome relativo que.
Que esta seja a nota de hoje, não é de estranhar. Decidi abandonar o espanhol como língua da primeira pessoa, uso-o apenas como idioma do dia-a-dia e com peso de oralidade em casa, na rua e em grande parte do meu trabalho. Desde a publicação do [33] que decidi centrar-me na língua materna ao invés de investir a pena na língua do país de acolhimento. Não é um abandono convicto, voltarei se assim o sentir, também porque o espanhol cada vez mais está presente no meu português, algo extrapolável ao meu ser e estar. No caso da língua usada para escrever, nota-se num predomínio conjuntivo, com recurso aos pronomes relativos, e num certo desuso do infinito pessoal típico do português. Não é que me preocupe demasiado com estilística, apesar duma vez ter contado os «ques» duma crónica dum referente literário, mas, como o meu pai sempre diz, há que ter brio. A palavra merece atenção, a sinceridade relativa de quem a escreve, portanto merece ser revista sempre que possível.
Ultimamente apenas lhe tenho dedicado a sinceridade, o brio vai-se ficando pelo arquivo, onde, qualquer dia, alguém o possa rever.

sábado, junho 24, 2017

Córdoba de encontros (e reencontros)

Pensava vir a Córdoba encontrar-me com Góngora, com as lições de cultismo que me levaram (insipidamente) a conhecer o barroco espanhol e o seu «siglo de oro». Já fiz os deveres e, num alfarrabista de sonho, levo uma breve antologia do mais célebre poeta e peculiar sacerdote cordobês. No entanto, à beira do Guadalquivir, num dos pilares de uma ponte vejo um graffiti, pouco elaborado de arte pictórica, que me fez pensar: «Sin poesía no hay ciudad».
Será a poesia o ordenamento territorial necessário à subsistência da cidade? Um motor de desenvolvimento económico, tipo indústria do espírito? O que seria das cidades sem os seus poetas? Como seria Córdoba sem Góngora? Continuei a andar e à senhora que vendia águas e cervejas junto à ponte romana voou-lhe a tampa da geleira onde guardava o fresco das bebidas dum final de tarde a escaldar quase aos 40°c. Exclamou baixinho, impotente, a olhar para a tampa a navegar no rio da cidade: «tu puta madre».
Deixei de divagar sobre versos a alicerçarem urbes e tive pena de ver o sustento da vendedora de cerveja e água fresca ir, literalmente, água a baixo.
Acabei por refrescar-me junto à estátua de Averroes, sentado nuns degraus a partilharmos umas «granizadas» em família. O intelecto activo caracteriza a forma como vivo as cidades, os passos dados em caminhos desconhecedores das minhas rotinas, porém luto com convicção e, por vezes desilusão, de querer sentir a passividade da inteligência, aquela que, este médico e filósofo devoto de Aristóteles, me ensinou encontrar-se unida à alma humana, a única coisa que me parece possível conceber como divina e eterna...
Afinal, pensava vir a Córdoba encontrar-me com Góngora, mas quem reencontrei foi o meu velho mestre muçulmano.

Encinarejo, a horta de Córdoba

Por aqui dizem-me que estou na segunda zona mais fértil do mundo, depois das margens do Nilo. É uma boa forma de divulgar este «pueblo» de 2000 habitantes da bacia hidrográfica do Guadalquivir e o primeiro de «colonización» nos anos 50 com a reforma agrária franquista.
Andei a tocar a terra com as mãos, a comer pêras directamente da árvore, a ver como subsiste esta região tão quente como a minha à qual chamam «a horta de Córdoba».
Aqui entre aromáticas, aloé vera, flores, viveiros de oliveiras, verduras e frutas da temporada, dou por mim a falar húmus real, de minhoca, de fertilizante agrícola e não de literatura, do «Húmus» do Raúl Brandão que conheci graças ao Sr. Edmundo, o motorista bibliófilo da carrinha do Centro de Dia, numa das épocas mais férteis da minha existência.
A fertilidade dos nossos dias depende de tantas misturas, de dosagens pessoais, e da matéria orgânica da qualidade das vidas que os povoam. Gostava de ser como as margens deste rio, fértil de vidas orgulhosas de trabalhar aquele solo... 
(Não tenho a modernidade de Brandão e já aceitei o Gabiru sem filosofia nenhuma.).

sexta-feira, junho 23, 2017

Fita-Cola

Se o mundo se arranjasse com fita-cola, o meu filho mais velho seria um grande estadista com remédio para tudo. É incrível a fita adesiva que esta alma gasta! Desde muito pequeno, sabe usar esta invenção de escritório e usa-a para tudo, papéis, livros, brinquedos, palitos, etc.
«Papá, ¿puedo usar el tesa film?». Não sou capaz de dizer muitas vezes não e lá vão rolos gastando-se à medida do seu crescimento. Haverá um dia em que descobrirá a ineficácia da fita-cola, que o que está partido partido fica, porém até chegar esse dia vai desenrascando-se com material de papelaria. Se o seu coração for de papelão a sua infância poderá remediar qualquer coisa. Tesoura na mão, um bocadinho de fita cola estes momentos na nossa memória antes de se converterem em fragmentos do futuro.

quinta-feira, junho 22, 2017

O vilão que lia García Lorca

Uma boa história pode ser tão má que fico a adorá-la. Um mau actor pode ser tão canastrão que me fica no coração. Porque é que a arte tem de ser só sublime? Não há arte pateta? Quanto mais estudo arte, mais dúvidas tenho em defini-la, catalogá-la, ainda menos hierarquizá-la.
Nos últimos dias, tenho feito a digestão do jantar tarde. Eu, que não sou de me deitar demasiado tarde, tenho ido para a cama depois da uma e com um ou dois filmes vistos. Para o critério cinéfilo só tenho visto série b, talvez mesmo z, ou, simplesmente, merda. Mas para um escatológico o dejecto é resultado da vida. Só caga quem está vivo e nestes últimos serões as interpretações foram o menos importante, as histórias agradavelmente previsíveis, mas a porradaria épica!
Ainda hoje estava a divagar sobre o tanto que aprendi graças a ter sido um fã do Bruce Lee, de como, para além de Wing Chun ou métodos de Jet Kune Do, fiquei curioso com filosofia oriental e com a sua própria filosofia. Lee era mais que um pontapé rápido, era um mestre de aforismos cuja figura ganhou a imortalidade porque a sua vida merece a pena ser recordada.
O Sylvester Stallone também está no rol. O Rocky é indissociável do «Italian Stalion» que começou pelo porno e se manteve erecto no meio duma indústria que já não necessita dos anabolizantes de outrora, mas que continua sem perceber que o Rambo é muito mais do que o soldado do regime Reagan.
O regime Trump terá um canastrão como o Reagan teve nos 80? É capaz, mas o género já não vinga. Talvez qualquer coisa rápida e com carros furiosos de vários milhões de dólares possa evadir as mentes dos novos cinéfilos de coca-cola e pipocas no centro comercial e em streaming.
Não sendo velha escola (totalmente), ainda vejo DVDs e vou gravando filmes na box. Streaming nunca me habituei e as internets caseiras também não ajudavam...
Tudo isto para dizer que vi uns quantos filmes maus com a felicidade de os ter visto numa tarde de Verão escaldante em que não tinha para onde ir, tal qual como quando era miúdo.
Mas a idade pesa. Já não quero ser tão bom à porrada como o Van Damme e tenho um olho apurado para o verossímil. Gosto de boas coreografias de luta mas com fundos de realidade e menos espectacularidade. O efeito «Matrix» já é estilo clássico e o MMA não é só grappling, o «pound to pound» devolveu a espectacularidade de combinações e rotativos dignas dum hipster de 70 anos chamado Chuck Norris.
No entanto, para voltar à essência do que me fez escrever esta entrada no diário, foi no filme «Undisputed III», com o Scott Adkins, em que a poesia não abandona os filmes fáceis e previsíveis com a personagem do colombiano dopado, protegido pelos vilões acima dos vilões (os vilões ao quadrado digamos), a ler a poesia de Federico García Lorca à sobra do chapéu de sol, enquanto os adversários trabalham (mas convertem-no num treino) num campo de trabalhos forçados.
Dois mundos estes. O da dureza da força da picareta e o da subtileza da poesia...

quarta-feira, junho 21, 2017

Ismael

O Ismael não é para mim a personagem principal do Moby Dick. Não anda embarcado no mar às ordens dum louco Capitão Ahab.
O Ismael é o professor do meu filho Santiago e, aos seis anos, é uma grande referência para ele. Eu fico muito feliz por ver o meu pequeno adorar a escola e ter em conta tudo o que o seu professor lhe ensina. Uma criança que quer aprender é um universo que se quer dar a conhecer e não o contrário, como vulgarmente pensamos.
Como pai fico-lhe grato pelo brio e profissionalismo que põe na sua profissão, só com isto já é suficiente e não lhe posso exigir a tremenda vocação que tem. Como profissional da educação revejo-me na sua atitude e tenho fé que todas as coisas boas que tentamos fazer sempre salpicam com uma espécie de água benta os que ao nosso redor por bem estão.
Amanhã termina o ano lectivo e o Santi não deve poder estar presente por o "rotavirus" chato cá de casa. Não vai poder despedir-se e desejar boas férias ao seu professor e está triste. Eu fico feliz pela sua tristeza. Vale a pena acreditar na educação, vale a pena lutar por estas crianças e, no meu caso, por tantos jovens.
Tal como o Ismael deveria sentir, assim o espero, demos o nosso melhor e demos o exemplo que há que dar, imperfeito, mas como deve de ser, consciente. Consciente que na escola somos um exemplo e temos de ser coerentes com o que predicamos. Hoje fecho a loja como docente para férias. Há alguma papelada antes de desconectar da escola. Foi duro para mim como profissional, no entanto, acompanhar o trabalho do Ismael com a turma do meu filho, ajudou-me a superá-lo.

domingo, junho 18, 2017

Bomberos extremeños a la espera de ser movilizados para ayudar a Portugal

Após acordar com a notícia do inferno em Pedrógão Grande, passámos a manhã a ouvir rádio e a tentar perceber o que aconteceu. A geografia portuguesa ardida não é novidade, é recorrente todos os Verões, mas este é o primeiro destas dimensões, com, de momento 62 mortos, vários feridos e todas as pessoas de bem afectadas.

Quem me conhece bem, sabe que tento evitar moralismos, que não domino soluções científicas de ordenamento do território nem de engenharia florestal, que não gosto de pirómanos de florestas nem de redes sociais, que a política somos todos e não apenas os outros nos quais não votamos, por isso o que quer que escreva ou opine nada vai melhorar esta tragédia ainda a deflagrar num dos distritos mais importantes no meu trajecto de vida, Leiria.

No entanto, após uma manhã a ouvir rádio portuguesa e um telejornal espanhol, espero que este dia não seja um mais para estatística anual, que se junte ao caso dos fenómenos naturais causados pelas alterações climáticas por todo o mundo. Lembram-se do furacão Kartina ou dos incêndios no Chile? Que sirva de exemplo de não ser normal ondas de calor a roçarem os 45º em pleno Junho e que se actue em consciência dos factos e não dos tweets dum Trump. 

O que virá depois da terra queimada? Podia ir pela resposta de teoria da conspiração e mencionar algum benefício para privado, mas não. Já não é isso que me preocupa. Depois da terra devastada pelo fogo, das brasas feitas cinzas, vem a violência da inundação duma água sem vegetação para ser absorvida. Quais serão as notícias no Outono? Mortos em Reguengos do Alviela? Espero que não.

A esperança vem também pela geografia, no meu caso particular, que tanto gosto de falar e escrever da “geografia dos afectos”, vem da Península (e de muitas outras partes do mundo felizmente), de Espanha, da minha Extremadura, para quem Portugal não é outro país, mas também o seu país, a sua herança lusitana com capital, para sempre, na Emérita Augusta. A minha Extremadura, pela mão do meu amigo Emilio Mateos Ortega, que escreve “Bomberos extremeños a la espera de ser movilizados para ajudar a Portugal”…

Terra Devastada (Incêndio de Pedrógão Grande)

"Tenho andado distante. Por preguiça, por necessidade de silêncio, por necessidade de mais realidade empírica que virtual. Porém o dia chegou com más notícias a passarem a fronteira. O distrito de Leiria (que também é cá de casa) arde descontrolado e a queimar vidas... O fogo do Pinhal Interior chegou ao nosso íntimo e deixou tudo devastado. Teimam algumas lágrimas, algum sal, herança, como diz o poeta, de Portugal..." in Facebook

sexta-feira, junho 16, 2017

Este sou eu a ter pena de si próprio...

Há dias em que tenho pena de mim mesmo. Dias de sentido lamecha, doridos, febris, de pouca perspectiva e cheios de miopía do que é a minha vida e as vidas por essa humanidade fora.
São dias virulentos, de rotação, como o vírus que me afecta o corpo, me sobe a temperatura e que não me aceita comida no estômago. Estes dias são ausentes do Luis saudável, afastados do optimismo trabalhado por filosofia e por resignação, são dias espectrais em que me vejo de fora, deitado na cama, com sesta suada e forçada, e me enfado por não controlar o que sinto e, como comecei esta nota, a ter pena de mim.
Tenho de permitir-me este desânimo pois sou homem e isso é legítimo para a minha condição. Tenho de permitir ver-me falível e desmotivado. Tenho de permitir o jovem activo, trintão, caminhar para a realidade física dos quarenta. Tenho de queixar-me um pouco para não cair no queixume. Tenho de dizer claramente que também necessito dumas palmadinhas nas costas como as que vou dando por brio profissional e pessoal. Tenho de reconhecer que sinto saudades do colo da minha mãe e dos braços da minha avó e mais presença de pai. Tenho de reconhecer que, apesar de pensar que sou um Super-Homem, não passo dum Clark Kent de carne e osso e alérgico a muito mais coisas que kriptonita e, ainda por cima, com a tripa fraca...
Tenho tanto para reconhecer, tantas máscaras quotidianas para tirar e ser o que sou. Pouca coisa, bastante insignificante, com sonhos e silêncio, com direito à tristeza, à falibilidade de ser, à impossibilidade de estar... Este sou eu a ter pena de mim. Não busco grande consolo, escrevo e abuso de verbos transitivos...

Cântico negro (Rui Knopfli)



CÂNTICO NEGRO

Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T´ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
– esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
Só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.

Rui Knopfli

O passo trocado
Memória consentida 20 anos de poesia 1959/1979. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982


 Lido em canal de poesia


 

quinta-feira, junho 15, 2017

Chamaram-me cigano e maltês...

Por acaso nunca me chamaram cigano e maltês, mas houve uns quantos adultos nos meus tempos moços que me apelidaram de má companhia a uns pais duns amigos meus pelo simples facto de já tentar pensar pela minha própria cabeça. Na época sofri a fama e senti um certo ostracismo e, como qualquer adolescente a querer afirmar a sua personalidade perante o mundo, passei um mau bocado, principalmente porque vivi estes momentos no seio duma comunidade católica que predicava de forma muito peculiar a doutrina do JC. Neste caso, a falta de cultura, de bom-senso, até mesmo alguma inveja pessoal (triste sentimento de difícil entendimento hoje, imagine-se então), estavam na base desta visão deturpada da minha jovem pessoa por parte desses adultos, cujas vidas dos filhos preenchiam os vazios pessoais das mesmas.
O tempo encarrega-se de pôr tudo no sítio e esta má companhia continua a tentar pensar pela sua própria cabeça, ciente que deve estimular o mesmo na cabeça dos seus filhos e fazer o mesmo como profissional da educação. Valeu a pena ter sofrido essas falsas acusações, deram-me a resistência em forma de iniciativa e quem valia a pena conservar como adulto não foi em conversas de outros ditos adultos que necessitam denegrir adolescentes para sobressair virtudes que nem eles nem os seus descendentes têm.
A minha mãe não soube ver os sinais do que se passava então. Obrigou-me a frequentar locais, cerimónias e instituições que, graças à sua distracção, passei a odiar mas com as quais, rapidamente, fiz as pazes. Infelizmente, o meu pai pouco voto teve na matéria e não se opôs à sentença materna. Só não me converti num rebelde sem causa, a pinta de James Dean até já tinha estado na moda com o Beverly Hills 90210, porque os alicerces de leal eram fortes e tinha vida para além da paróquia de Nossa Senhora da Saúde.
Não tinha nenhuma intenção de relembrar esta vivência, não é nenhum trauma, mas ao ensinar hoje os versos da canção «Chamaram-me cigano» do Zeca aos meus filhos, lembrei-me que outrora fora má companhia, um maltês. Talvez ainda o seja como adulto e não seja boa rês para uns quantos Dons Fulanos Marqueses. Ao contrário de há decadas, não passo nenhum mau bocado com isso, pois «limpei a viseira, agarrei no arpão, mas tive o diabo na mão».

Una postal de Sicilia

"Querido hijo,

Quizás hoy no lo entiendas, pero recuerda que «navegar es preciso, vivir no es preciso». Siempre que puedas viaja. Dile a tu hermano...

De papá, que te quiere..."

terça-feira, junho 13, 2017

A democracia é também permitir a ideias contrárias às minhas poderem expressar-se e representar-se no colectivo.

A democracia é também permitir a ideias contrárias às minhas poderem expressar-se e representar-se no colectivo. Sou laico. Se um dia quiser que os meus filhos tenham uma educação religiosa levá-los-ei ao local adequado, não à escola, no entanto não sou capaz de entender porque motivo se veta a opinião e voto à minha colega de religião no seio dos diversos departamento escolares. É-me indiferente quem a contrata, se o arcebispo, a junta, a direcção. É fora da comunidade educativa que se luta por o laicismo e contra a influências dos lobbies que sejam e quero que tenha o direito a poder votar como qualquer um dos meus colegas que, na teoria, representam os seus pares de disciplina no âmbito duma comissão pedagógica, algo que, no fundo, não passa de um grupo de trabalhadores a representarem outros. 
Veta-se-lhe o voto em nome da lei educativa, esse é o argumento contextualizado. E a lei do bom senso? A lei do dia-a-dia, da pessoa que vai mais além do sistema? É nestas incongruências que a democracia perde para os extremismos. No caso em questão apenas ultrapassa a falta de educação e companheirismo, porém noutras latitudes leva ao germinar de ódios que não se acalmam com palavras, nem com tolerância.
Serei criticado por, ao defender o direito de intervenção desta colega de religião, de não ser verdadeiramente laico. Vivo bem com isso. Não vivo bem é entre colegas que pensam ter mais direitos interventivos graças a um qualquer vínculo administrativo. Enquanto o sistema educativo permitir a presença desta colega entre nós, e não somente na paróquia (onde creio que deveria de estar o adoutrinamento religioso), deve poder pronunciar-se como qualquer um de nós, com voz e voto. 

Onda de calor em Junho

Ainda nem chegou o Verão ao calendário e já dormi umas quantas noites tropicais. O calor é um dos substantivos mais usados e escritos por mim desde que me tornei pacense de residência. Não gosto deste calor, sofro com ele, mas não tenho outro remédio que aclimatar-me e rir-me dele com as típicas piadas de whatsapp como «cariño dime algo caliente: Badajoz» ou o Darth Vader a seduzir-nos para o lado negro da força com o argumento de que têm sombra. Assim vivo eu há uns anitos refém do ar condicionado, da sombra e sempre a querer refugiar-me em locais mais frescos. Évora criou-me habituado ao calor, Leiria e Valencia de Alcántara sempre me exigiram um casaco pelos ombros nos serões de Verão, mas Badajoz, nem com o Guadiana aqui a correr, desfaz-me em suor durante mais de dois meses. É o que há e já está, resumindo a minha resignação climatológica. Porém, começo a sentir o cansaço e a sede da terra. Não gosto de extremos em nada e em questões de clima o meu corpo começa a dar sinais de necessitar descansar mais com o termostato a temperaturas que não sejam febris...

sábado, junho 10, 2017

10 de Junho

Portugal e o seu dia, Portugal e o seu poeta, Portugal e as suas comunidades. Portugal aqui ao lado, Portugal país onde nasci, Portugal na língua que escrevo, Portugal irmão de quem me adoptou. Sentir Portugal não é difícil, até mesmo para quem não é português, mas o meu Portugal está num quintal duma tarde de Junho, de calor refrescado por uma mini Sagres, em que me sento, com quem me criei, a ver os nossos filhos a brincarem sem dia de Portugal, nem preocupações de país que não seja o da sua infância.

A minha infância não está longe do bairro de Almeirim onde queríamos ir a pé comprar caracóis. Estava fechado. O César, feliz, como nos deixa feliz vê-lo, foi ao «Rei dos Caracóis», à minha Senhora da Saúde, de propósito para palitarmos este final de tarde na casa do nosso «piquinino» Gonçalo de sempre. O passeio pelo bairro levou-nos aos despojos de alguém espalhados pela rua. Restos de electrodomésticos, uma grelha de churrasco reaproveitada pelo Cajó, de cadernos e vários livros por mim recolhidos do ostracismo literário que jazia no chão. Vários títulos de leitura obrigatória, forçada pelo sistema educativo, do qual um título é igual ao meu dia, «A Relíquia». A minha relíquia não é a obra de Eça de Queirós por mim resgatada, é o facto de há mais de 20 anos o nosso passado continuar saudável e com os nossos filhos a darem à nossa juventude uma perspectiva de futuro.

Planta que cura...

Dentro dum pequeno vaso levei uma planta a uma colega de trabalho, no inicio desta semana. Com a picareta recolhi um pouco de terra dura, seca pelo clima alterado, mas fértil. Acomodei-a junto à raíz e dei-lhe uma pinguinha de água, apesar dos manuais de plantação não o recomendarem, reguei-a por solidariedade de saber que a sede extrema é das piores sensações que o corpo e a alma podem ter.
Preparei tudo com o gosto de partilhar uma coisa boa e com potencial curativo. Aprendi-o da minha mulher, de como a medicina da natureza nos ajuda a não esquecer a saúde e o passado, e cada vez tenho mais curiosidade sobre esta planta que sobrevive com tão pouco e que cura tanto, cuida tanto. Conheço pessoas assim, como o aloé vera, discretas de beleza, com picos que não picam, adaptadas às circunstâncias duras do seu substrato, mas que não negam uma folha curativa a quem dela precisa. Essa gente, como este cacto, vão buscar força à terra e são imunes a quase tudo, pegam em todo tipo de solo, escaldam ao sol desértico, adoptam a forma do vento dominante, mas morrem por falta de agasalho, de reconhecimento, de esquecimento que até a malta rija morre de frio se o sangue, a seiva, se congela coberta por geadas negras.
Os cravos sempre me impressionaram. São sonhadores e florescem no meu jardim por terem sido plantados pelos meus pais. Sei que eles gostariam de ver mais cores, mais flores formosas, vistosas ao olho, e menos ervas para roçar, carrascos a rebentar, amêndoas rústicas a florirem em linha com tantos aloé veras. O meu jardim, cada vez menos secreto, não se resume ao contemplar, nele muitas das minhas feridas posso curar...

quinta-feira, junho 08, 2017

Alegre

Na política deu-me o sonho de quase ser realidade ter um presidente poeta, mas na literatura trouxe um canto combativo que é a sua principal arma.
Não sendo um poeta de cabeceira, pois da política perdi-lhe o rasto, Manuel Alegre escreve para o meu agrado e a sua voz tem o mesmo efeito radiofónico de liberdade que difundia na Rádio Argel. Por isso, e apesar de não lhe fazer muita falta o prémio, não me produz mal-estar a atribuição do prémio Camões ao seu percurso literário tão parecido a uma gaveta, um armário cheio recordações do antes e do depois da mais importante Primavera dos últimos 60 anos, essa estação florida a vermelho cravo em Abril de 1974. Aos 81 anos, Alegre é ainda o nosso poeta político e ambas facetas fazem-nos falta. A primeira ao ser e a segunda à cidadania.
Quando se atribue este prémio anualmente, penso sempre em quem lhe dá nome, Camões. Ponho-me na sua pele, na sua perspectiva zarolha e imagino o que é que o poeta pensaria. Triste de certeza não estaria.

Arrepender-se numa era de estupidez

Arrepender-se é de corajosos ou de cobardes? Reconhecer remorsos é nobreza de espírito ou vil forma de se sentir?
Não o pergunto com algum tipo de arrependimento ou remorso que seja. Pergunto-o porque uma das formas de vida que adoptei, e a vida assim mo tem permitido, é viver para não me arrepender de ter vivido. Como disse Borges, tento ter «mais problemas reais e menos imaginários». Dá um bom mantra e ajuda-me neste momento de cansaço em que escrevo roubando tempo ao descanso e imerso no pânico colectivo de atentados no Reino Unido e noutras partes do mundo mais anónimas e menos mediatizadas.
Mais do que remorsos, muita gente deve pensar como eu estou a sentir, um distanciamento, uma incredulidade, uma insensibilidade que nos torna indiferentes à realidade em massa transmitida pelos media. 
Quem não tem acesso à informação porque é manipulado pelo poder sofre a ausência de liberdade, porém quem tem acesso a informação manipulada sofre de igual privação. Ultimamente, tenho sentido demasiada manipulação e vejo que o mundo não se arrepende. Mundo corajoso ou cobarde? Nem um, nem outro. Um mundo apenas, um tanto ou quanto, estúpido. Terroristas da tanga e Trumps de trampa imperam nesta era de estupidez que já está a gerar muitos remorsos...

domingo, junho 04, 2017

«Alguns gostam de poesia» - SZYMBORSKA,Wisława

Alguns gostam de poesia

Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

SZYMBORSKA,Wisława. Poemas. Trad. de Regina Prazybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 

sexta-feira, junho 02, 2017

Fugir ao destino

Fugi ao destino de quarta geração de caminho de ferro. Bisavô, avô e pai, eu seria o quarto.
Porque é que fugi? Não sei e nem os meus antepassados me poderiam alinhar as agulhas desta linha de vida.
Creio que o caminho de ferro existirá na minha infância enquanto conseguir ouvir o apito do comboio em frente à minha casa no bairro, enquanto puder abraçar a roupa do trabalho do meu pai e ele me deixar acelerar a automotora para Casa Branca sentado no seu joelho. 
O Leal impôs-se ao Pinto por circunstâncias administrativas e de aliteração. Apenas isso. As minhas veias são linhas que me unem ao meu pai, ao meu avô Ventura e ao seu pai. São de ferro, como o destino da sua profissão, e são inquebráveis...
Volto à pergunta inicial, porque é que fugi? Pensando bem, nem sequer se trata de fugir. Há muitas maneiras de se seguir o caminho férreo da vida. Pode ser a construí-lo, a cuidar das suas agulhas, a conduzir na sua bitola ibérica, como o meu bisavô, avô e pai, respectivamente, ou como eu, a escrever o que sinto, com medo que no futuro o único ferro que tenho nas veias seja por ingestão e não por herança patrimonial...

Essa negra Fulô (Jorge de Lima)



Essa negra Fulô

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!


Jorge de Lima  (1893 – 1953)





quinta-feira, junho 01, 2017

"O mais difícil de ser professor é não ser só professor"

Para a minha Martita. 

Um dos grandes objectivos de quem ensina é que lhe prestem atenção. Tenho tido o privilégio de alguns alunos me dedicarem alguma como foi o caso da Marta Pirón Bruno, hoje ex-aluna com estatuto de amiga, que apontou esta minha frase, talvez mais de desabafo do que filosofia...
Muito obrigado Marta. A tua atenção ajuda-me muito a não ser só professor... Se a vida te enveredar por esta profissão, a vocação já a tens e a formação, como quase tudo na vida, é contínua. Não deixes de tirar apontamentos, eu não me canso de anotar coisas e tenho muito orgulho em poder ter-te nos meus apontamentos. Primeiro como jovem aluna com vontade de deixar este mundo melhor e, agora, como jovem profissional a ajudar outros a acreditarem que vale a pena continuar a acreditar. 

(Tenho um desejo profissional para ti de realização, ajuda nesta parte das nossas vidas, mas, se o futuro for docente, gostaria muito que fosses professora dos meus filhos. Estariam em boas mãos. Mãos abertas e com fé no futuro.).

Eu cá não sou supersticioso, mas, pelo sim, pelo não, deixa-me lá usar o meu amuleto da sorte...

Ter superstições não é algo que me caracterize facilmente, mas sou um pouco como a canção dos Heróis do Mar, "eu cá não sou supersticioso, mas o pai dela dá-me azar". Tampouco me reconheço demasiado supersticioso, desses dos gatos pretos, escadas abertas, ou horóscopo consultado diariamente, no entanto tenho as minhas manias, algumas partilhadas com a Elsa, outras herdadas dos meus pais e dos meus avós. Vou tentar enumerar umas quantas e analisar-me enquanto me escrevo.
Não conto os sonhos antes de comer qualquer coisa de manhã. Gosto de arrumar os chinelos ao fundo da cama. Respeito o pão e não o ponho de cabeça para baixo na mesa. Evito abrir guarda-chuvas dentro de casa. Não digo a frase «cheira a terra molhada». Ponho a decoração de elefantes de cu virado para a porta e tenho uma tacinha de sal que reponho para limpar o ambiente energético cá de casa.
Estas são algumas das minhas pancas, todas herdadas e adaptadas às minhas vivências. Na verdade, só tenho uma superstição inventada por mim. Tem por base um objecto de afecto convertido em amuleto de coragem, a navalha do meu avô João, gravada na Suiça por um dos seus amigalhaços da caça. Sempre disse que seria para mim e já me acompanhou e deu segurança em momentos em que qualquer das minhas navalhas não o fariam. Muitos desses momentos implicavam alguma exposição pública, alguma intervenção com necessidade de parecer formado e inteligente e foi a navalha do "Ti João" quem me trouxe sabedoria de vida e não de letras. À navalha juntei-lhe o relógio de bolso e a corrente. Dou-lhe corda muitas vezes à noite, antes de me deitar, e sinto uma união material, humilde mas pragmática, com ele.
«Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia», aprendemo-lo de Shakespeare, e eu, que não acredito em bruxas, dou-lhe razão. A minha filosofia não tem grandes alicerces racionalistas, tem mais raízes de fé, e hoje escrevo e assumo que tremo de lembrar a roda traseira do nosso jipe explodir a metros de casa após quilómetros na autoestrada. Não temos nenhuma medalha do S. Cristóvão como tem o meu pai, acho que há para lá um pequeno Buda dado por um dos poucos chineses proprietários de Lojas da China que conheci, ainda estudávamos na universidade. A quem é que devo agradecer este rebentar desagradável que não passou disso, desgradável?
Eu cá não sou supersticioso, mas vou dar graças a Deus, vou mudar o sal da tacinha e esperar que o mau-olhado seja só a merda de conjuntivite do remeloso do meu olho esquerdo...