quinta-feira, novembro 30, 2017

La nube tiene tristeza/A nuvem tem tristeza

La nube tiene tristeza.
El sol está de alegría.
Todo el mundo está con melancolía.
La fuerza está con nosotros.
Mi amiga tiene motivación.
La paz está en el água.
El amor está en el corazón.
La esperanza viene por camino.

Eis os versos de um aluno cujo rendimento escolar está a dois anos de distância do nível exigido pelo currículo. Vai atrasado segundo o sistema educativo vigente. Não chega à media aritmética, à exigência quantitativa duma sala ao magote, de trinta embutidos entre quatro paredes. 

Este não está trabalhado pelas massas escolares, tem o material adaptado ao seu nível cognitivo, mas seremos capazes de lhe manter a pureza? Agarro-me ao seu último verso, "La esperanza viene por camino", como uma boia de salvação. Afinal quem é que necessita uma adaptação? De quem é o desfase curricular?

A nuvem tem tristeza.
O sol está com alegria.
Todo o mundo está com melancolia. 
A força está connosco.
A minha amiga tem motivação.
A paz está na água.
O amor está no coração.
A esperança vem a caminho.

(Tradução para o Adolfo, que está sempre atento ao que interessa e despistado ao que é supérflo)

Amigo Assis Pacheco!


1935 e 1995. Com 60 anos de diferença, Fernando Pessoa e Fernando Assis Pacheco morreram no mesmo dia: um 30 de novembro. Recordamos Fernando Pessoa com muita frequência e, assim, hoje, ficamos com o nosso querido amigo, porque assim o sentimos sem o ter conhecido, mas lido e apreciado, Fernando Assis Pacheco.


PRESO POLÍTICO

1

Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
O dia e a noite são iguais por dentro.
Não há papel que conte a minha vida
mais que estes versos de punhal à cinta.
A barba cresce, e cresce a voz armada
descendo pelos muros tão tranquila;
tão tranquila que já nem desespera
de ser apenas voz, não uma guerra.

Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
Não há papel que conte a minha vida.
Mais que estes versos, esta mão estendida
por sobre os muros só de medo e pedra.


2

Quando saíres, amigo, não me esqueças.
Fico à espera da tua novidade.
Olha bem que farás da liberdade:
quando saíres, amigo, não me esqueças.

Quero mais fazimento que promessas.
São de prata os enganos da cidade
com que outros sujeitam a vontade.
Não me esqueças, amigo, não me esqueças.

1966

Fernando Assis Pacheco, in 'Lote de Salvados'

quarta-feira, novembro 29, 2017

Lugares comuns (Ana Luísa Amaral)



A poeta portuguesa Ana Luísa Amaral lerá os seus versos no dia 15 de março de 2018 em Badajoz, na Aula de Poesia Díez-Canedo.


LUGARES COMUNS

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e um pouco da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mas adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são

Ana Luísa Amaral


Podemos ouvir a própria poeta ler o seu poema em lyrikline.




Paisagem de bicicletas mortas - Francisco Javier Irazoki

Salva-me da paz,
agora que os nossos olhares se unem
e atravessam uma árvore queimada.

Já te oiço a chuviscar
sobre o matagal do meu tempo;
                                                digo
ata-me com a tua voz de soga,
atirarei contra o céu
a minha colecção de pedras vazias.

Com a última frase
apanhas a minha voz,
um raminho
para acender a fogueira. 

Francisco Javier Irazoki
(Trad. Luis Leal)


domingo, novembro 26, 2017

Os putos dos lugares da frente...

Ocupavam os quatro lugares à frente dos nossos e chegaram ainda antes das apresentações prévias ao filme «Justice League». Tinha ido com o meu filho e, dos dois, com os 30 anos a mais que lhe levo de vantagem, o mais infantil sou eu, mas a criança de olhar limpo e curioso, felizmente, é ele. Mas isso pouco interessa para esta nota e nada tem a ver com os quatro adolescentes irritantes sentados à nossa frente.

O incómodo foi relativo, oscilando entre o levemente desagradável e a vontade de os educar ao estalo. Como faço no trabalho, adaptei-me ao seu registo e concentrei-me no exemplo de atenção do meu pequeno e na narrativa hiperbolizada do filme de muitas das minhas bds de puto. No entanto, foi impossível não ouvir a forma como eles se referiam aos seus professores. Deram mais atenção na sua conversa ao de música. Ridiculizaram-no ao quadrado, na impossibilidade de humilhá-lo em pessoa, sem esquecer docentes de outras disciplinas.

Cara, cabelo, óculos, até as calças, sem marca registada, a vincarem o órgão sexual, foram tópicos de conversa daquelas quatro almas que, curiosamente, não estudavam na escola pública. Não afirmo isto porque na escola pública não haja casos de ridículo como estes, sim porque através da sua conversa denotei um elitismo pouco usual no ensino disponibilizado pelo estado para todos. Por outras palavras, estavam quatro betinhos que não sabem um caralho da vida a ruminarem pipocas e a regurgitarem estrume por aquelas bocas de educação prepotente cujo futuro parece estar bem mais assegurado do que o de muitos jovens a quem me dedico profissionalmente.

Não quero imaginar o que dirão de mim. Os meus tiques são bem evidentes e não me parece ter as calças vincadas pelo tamanho da pila - só se for para o trabalho com calções de licra -, porém tenho uma certa preocupação com o exemplo de profissionalismo e higiene pessoal. Não levo para a escola as minhas botas preferidas, aquelas bem cómodas, operárias e operacionais, biqueira de aço, usadas para o trabalho no campo. Talvez devesse.

A profissão que exerço para ganhar o pão, essa que necessita tanto de formação como de vocação, está numa encruzilhada histórica por este mundo fora e, na Europa, nem se fala. Não é porque um qualquer vídeo tutorial nos venha substituir, ou um robot programado em várias “websummits”, ou pela remuneração de subsistência de muitos docentes (que, do salário, subtraem para material didáctico). É pela indiferença pelo conhecimento, é pela indiferença do livre-arbítrio, é pela massificação do individualismo.

Tem piada. Os pais desta rapaziada estão a dar-lhe a melhor formação possível. Acredito que sim e até pode ter sido má impressão minha, cansado do dia-a-dia. Num estado totalitário não se falaria assim das pessoas em público. Num estado barbudo islâmico não se comentariam vestes de vinco fálicos. A autoridade não se contestaria em regimes de autoritarismo, igualmente não haveria a preocupação em motivar o outro, em torná-lo receptivo ao que se tem de transmitir. Currículos de gulag, atenção à diversidade espartana e avaliação de discernimento siberiano.   Obrigar-se-ia e ponto. Lei do cacete. Lei das barbas. Lei das delapidações. Lei das cabeças rapadas. 

“A Liga da Justiça” lá terminou com o Super-Homem ressuscitado. O meu filho feliz e eu à sua felicidade agarrado. Porém, foi-me impossível ficar alienado àqueles jovens que, como os bancos, e o chão, nos quais se sentaram, deixaram essa projecção cheia de sujidade e indiferença no chão. Alguém foi lá limpar a merda que deixaram. Voltei para casa chateado comigo mesmo por me apetecer que existisse alguém autoritário que os obrigasse a limpar o que sujaram.



   

Enquanto a corto - Issekiro

Enquanto a corto
vejo que a árvore tem 
serenidade
(ISSEKIRO)

(imagem de autor desconhecido)

Uma crónica de Pedro Rolo Duarte para o despedir



Sente-se pena quando morre alguém antes de tempo, e sobretudo alguém que, embora não o conheças pessoalmente, aprecias porque o lês ou o leste, e de vez em quando lá aparecia. Pedro Rolo Duarte morreu anteontem com apenas 53 anos, e isso dói. Leiamos esta crónica dele para o recordar neste último domingo de novembro.


AOS 12 ANOS
(Crónica originalmente escrita para a revista Lux Woman em 2013)

Quando a directora me disse que a revista fazia 12 anos, senti uma espécie de frio na barriga. Ela nem sequer pediu que a crónica fosse alusiva à data, mas senti-me subitamente a rodopiar numa espécie de funil que me mergulhou no passado. Num instante lembrei-me que o tempo existia e senti-me com 12 anos.

Recuei. Voltei à entrada do Liceu de Camões e vi-me sentado numa carteira manhosa, num anexo meio-improvisado, com uma professora de inglês a perguntar-me a cor das minhas unhas. Estava na fase da aversão à água, e o pediatra que os meus pais consultaram terá explicado, numa onda revolucionária (era ainda o ano de 1976...), que há “uma fase assim mesmo”, os rapazes não tomam banho. O resultado foi lamentável, uma vergonha na turma, mas nem por isso impeditivo de alinhar politicamente e me empenhar nessa guerra já então perdida. Até perceber que aquilo a que chamavam “centralismo democrático” não era mais do que uma ditadura a fingir-se de democracia, andei por aquelas bandas todo contente. Mas não deixava de ter 12 anos. De dia, militante político e fumador dos primeiros SG-Filtros da vida...

... E depois de noite, em casa, inventando jornais para a família e criando cidades de Lego onde me imaginava bombeiro. A vida aos 12 anos é uma enorme confusão, pelo menos para o rapaz que eu fui: num mesmo universo misturam-se a vontade infantil de brincar com Legos e carrinhos e a convicção adolescente de que se pode fumar ou beber café, mas também a paixão assolapada que nos faz sofrer profundamente. Ter 12 anos é o maior drama de uma existência – ainda não se é mais do que uma criança, mas já se sente a adolescência e julgamo-nos donos da razão. Pior é impossível.

O outro lado deste drama é maravilhoso: aos 12 anos, uma paixão é mais ou menos como correr a maratona e ganhar. Falta-nos em ar o que nos sobra em felicidade, e a angústia tem um sabor próximo do algodão doce. A vida corre suavemente sobre os carris dos pais, da escola, e de um mapa bem desenhado. Ah, e temos muito mais direitos do que obrigações...

Mas há um drama maior quando se tem 12 anos. Chama-se, em psicologia barata, “a seguir temos 13 anos”. Melhor dito: é quando nos deixam de desculpar os 12 anos e nos cobram o que há a cobrar. É cair na realidade e perceber que a idade não apenas não é um posto, como rapidamente deixa de ser uma desculpa.

Quando, aos quatro anos, a filha mais pequenina de uma amiga diz que “nasceu na eternidade”, toda a gente ri, é romântico e fica bem. Quando eu, aos 13 anos, disse aos meus pais que “nasci com o direito a dedicar-me à política e chumbar o ano por faltas”, não teve graça, ninguém riu, e foi uma estupidez sem nome. Hoje não me sobram dúvidas: a vida vive-se ao contrário. Quando se sabe o que antes se devia saber, é tarde para aplicar o que se aprendeu. E quando nada se sabe e tudo se julga saber, não há como iluminar a sombra invisível. O que vale é que nascemos todos iguais: por mais tecnologia, internet e redes sociais que se criem, ninguém vai saber aos 12 o que devia saber aos 30. Nem o contrário. E no dia em que a nossa Lux Woman faz 12 anos, há quem esteja a nascer, há quem esteja a morrer. Mas em nome das velas a apagar, há quem tenha 12 anos e sofra o pior dia da existência porque não sabe se o miúdo lá do fundo da sala olhou mesmo, fingiu olhar, sorriu, ou é aquele perfil do Facebook que lhe pediu amizade. Aos 12 anos, o fim do mundo é qualquer destas coisas. E é tão bom, não foi?

Pedro Rolo Duarte

(Abril 2013)

Blog de Pedro Rolo Duarte




sábado, novembro 25, 2017

Ladrões de virgem inteligência...

Em pleno século XXI ainda é tão difícil ser-se mulher. Até a bicicleta é vítima da violência de género, por ser o mais feminista de todos os veículos, o único digno de ser chamado «senhorita». É amável e não invadiria nenhum país. Mas mete medo a umas quantas almas a quem desejo salvação. Espero que o seu deus os ajude, lhes mostre que os silenciosos ladrões não lhe roubam a virgindade, sim a inteligência.

sexta-feira, novembro 24, 2017

Estações - Jordi Doce

Conhecia o seu trabalho como tradutor e ensaísta, mas pouco da sua poesia. Ontem tive o prazer de o ouvir a recitar o seu trabalho poético. Dobrei várias pontas das páginas do “cuadernillo nº152” da “Aula de Poesía Diez-Canedo”, como gosto de marcar no papel aquilo que me marca o pensamento, o sentir de um determinado momento. Jordi Doce é um grande tradutor do poeta que leva dentro. Já eu sou de um tal atrevimento que tive de me apropriar do seu poema “Estações”. Não sei se ele opina o mesmo, mas a tradução, a mim, sempre me arranca do silêncio.

Estações – Jordi Doce

1

Voltaste a atrasar-te,
mas a novidade
não é essa, atrasas-te sempre,
sempre o fizeste,
e a tensão que espreita enquanto pões
os pratos
ou mexes o refogado que nunca está no seu ponto
é outra coisa,
o pousio de um céu sem vontade
que cala o que viu,
o frio seco que chega ao osso
quando abres a porta e não é ninguém.

2

O medo,
é o medo outra vez, pensas, enquanto a luz
se torna mais forte
no pátio interior e a manhã
arranca sem certezas,
apenas a voz de uma menina
no apartamento do lado, um ruído
de portas e elevadores
para gente convicta do seu ofício,
nomes redondos,
e o leite que há pouco puseste no fogão
a queimar-se.

3

As coisas que te dizem
são muito sensatas, mas
não te interessam,
estão muito longe de ajudar-te
e só
por respeito te páras a ouvi-las,
sem impaciência,
enquanto atascas o pé em mal-entendidos
e o silêncio prospera
como um tumor na garganta, tens
razão, não tinha pensado nisso,
e o passo fiel, o olho aquoso.

4

O que sonhas é uma mancha
nas horas, um coalho negro
que se expande às escondidas
e põe os seus tentáculos aqui,
onde o sangue
é fraco, onde o ar se torna mais escasso
e fere,
e o teu nome não está em nenhuma boca,
e todo o dia
vais e vens entre duas águas
sobre o fiel de ti mesma,
a tentar não te afogares.

5

Desertos dos dias, demónios das minhas noites,
digam-me
o que foi da matéria que foi vida,
em que acabaram
o sangue e o seu latido, a água
tensa do desejo?
Já só restam perguntas,
tão só uma insistência muda,
como o dormir,
e a menina que o tempo não dissolveu
a brincar
com a noite, com os demónios, consigo mesma.  

(trad. Luis Leal)

quarta-feira, novembro 22, 2017

Indiana Pinto

Graças a ele, em tempos, existiu o Indiana Pinto, o meu alter-ego de aventuras e desventuras nos textos livres e nas brincadeiras da escola preparatória. Disseram-me até que a minha professora Manuela Leite mostrou algumas das redações a outra miudagem que por lá passou depois de mim. Se assim foi, só me resta agradecer-lhe a confiança e o estímulo docente. A inspiração, desconhecedora do que é o plágio, devo-a a uma personagem com nome inspirado num cão, ao Indiana Jones!

Por onde andará o Indiana Pinto? A última vez que o vi andava por essas planícies de inocência a à garupa dos irreverentes cavalos saltitões. Um dia voltaremos a encontrarmo-nos. Prometo escrever todas as suas parvoíces.

terça-feira, novembro 21, 2017

Pura gramática da vida

Os valores vigentes não prezam o esforço. A sociedade do momento não privilegia dar o melhor de si como um exemplo para um futuro melhor. Custa-me aceitar isso. Custa-me educar neste contexto, quer em casa, quer no trabalho. Esforço-me para não me desmotivar com esta forma de estar cada vez mais generalizada. É difícil, confesso-o para fins terapeuticos inerentes à minha pessoa.
A preguiça e o peixe dado, e não ensinado como se pesca, produz em mim o pior dos sentimentos. Desprezo. Odeio a preguiça como estilo de vida. Mas mais ainda odeio o sentimento gerado dentro de mim. Não posso ser um baldas. Não herdei esse luxo. Tão pouco é época para isso, para herdar mais vícios e viver indignado. 
Urge mudar os meus ódios de estimação? Hoje dei o melhor de mim, contudo não melhorei nada. Odeio não ser a pessoa que penso ser. Tudo era mais fácil se me baldasse. Tudo era mais normal e talvez pouca coisa mudasse. O imperfeito sempre tem um valor condicional, pura gramática da vida.

O presente do ano regular do indicativo

Ano lectivo 01/02:
O presente do indicativo
Ano lectivo 02/03:
dos verbos regulares
Ano lectivo 03/04:
da primeira conjugação
Ano lectivo 04/05:
com a vogal temática
Ano lectivo 05/06:
«a»
Ano lectivo 06/07:
formam-se juntando ao radical
Ano lectivo 07/08:
do verbo
Ano lectivo 08/09:
as respetivas desinências
Ano lectivo 09/10:
o; as; a; amos; am.
Ano lectivo 10/11:
Os irregulares há que estudá-los
Ano lectivo 11/12:
pois não seguem um padrão de conjugação.

Os anos lectivos sucedem-se regulares em matérias.
Estás farto de desinências e preocupa-te a raíz do que és
envelhecer radical sem discriminar vogais.

Os anos vividos acumulam-se irregulares e intangíveis.
És um verbo sem padrão de conjugação habituado à rotina 
do indicativo. Sonhas a modo de conjuntivo e amas consoante
a oportunidade de aproveitar o dia. 

Professar só a honestidade do pão. Rigorosa.
Como uma monótona conjugação. 







Litros de inconsciência...

Já há muito tempo, anos mesmo, que me sinto mal com a situação, mas agora sinto-me quase como um criminoso amoral. Não há duche possível de lavar-me a consciência dos litros de água cano abaixo e sem a mais mínima reutilização na, por exemplo, limpeza da sanita. É um crime os litros de água potável gastados nas incontáveis vezes que uma família vai por dia à casa de banho. É um luxo pornográfico, ofensivo às gretas dos campos secos, aos quilómetros que muitos semelhantes meus fazem para matar a sua sede, feita corda na garganta, e dos seus. Litros de estupidez doméstica vertida pelo esgoto e não de sensatez necessária para regar o futuro.

Sei, desde muito pequeno, o que é a falta de água. Nasci alentejano e vi secas fazerem procissões saírem à rua pedindo água aos céus. Vi o São Pedro estar-se nas tintas para a secura do montado e vejo que assim continua. Pelo menos é honesto, nunca escondeu a sua tacanhez hídrica a ninguém. O mesmo não se passa com o sector agrícola, à mama de subsídios de regadio ou transvases polémicos,  em zonas bem mais propícias ao habitat de camelos e dromedários. 

Estamos em seca extrema. O solo duro já nem consegue gemer por água. Cala-se compactado. Evade-se em poeira. Os oásis estão a acabar por aqui graças à presença do homem e à sua irresponsabilidade. Resta-lhe um deserto. Porém, por mais amor que tenha à terra seca e gretada da minha alma, eu não quero cá estar. Como eu, muitos dos que agora não querem conviver com refugiados de África ou do Médio Oriente também quererão dar de frosques se continuar a secura. Não, não é mentira. Não, não é invenção minha. Todos seremos todos refugiados climáticos.


sexta-feira, novembro 17, 2017

The great clown Pagliacci...

It’s from Alan Moore’s graphic novel Watchmen, and it goes: “Man goes to doctor. Says he’s depressed. Says life seems harsh and cruel. Says he feels all alone in a threatening world. Doctor says, "Treatment is simple. Great clown, Pagliacci, is in town tonight. Go and see him. That should pick you up". Man bursts into tears. Says, "But doctor, I am Pagliacci".

É um excerto da novela gráfica Watchmen de Alan Moore e é assim: "Um homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Diz que se sente sozinho num mundo ameaçador. O doutor diz "o tratamento é simples, o grande palhaço Pagliacci actua hoje à noite na nossa cidade. Vá lá assistir ao espectáculo, isso vai animá-lo de certeza". O homem desata a chorar. Diz "mas doutor, eu sou o Pagliacci".


terça-feira, novembro 14, 2017

Cadeiras de costas encostadas à lateral da cama

Sempre gostei de viajar, mesmo em criança, à noite, em sonhos que me punham a dormir enviesado na cama ou de cabeça para baixo. Viajava duma ponta da cama à outra. Hoje sou mais comedido nas deslocações e arrumo-me na parte da cama que me corresponde, contudo voltei às minhas voltas em vale de lençóis de criança graças aos meus filhos. É normal ouvir o mais velho dar uma cabeçada na parede e o mais novo aconchegar-se ao fundo da caminha. Ambos dormem com uma protecção, uma fronteira que os impede de cair no chão vindo rebolados do mundo do João Pestana.

Caí várias vezes da cama, mesmo em adulto e a última vez não foi há muito tempo. Já lá vai o tempo em que o meu avô me erguia uma fronteira de cadeiras vinda da sala e impedia os meus périplios nocturnos de acabarem no chão encerado. Escrevo esta nota e estou ali. Ouço o meu avô na cozinha, vejo pela frinja de luz a minha avó a pôr as gotas nos olhos e eu estou deitado na velha cama, com colchão de espuma (o ortopédico viria herdado depois), que range a velha madeira a condizer com a mesinha de cabeceira. Na cómoda está a sagrada família, um terço, umas cartas com contas já pagas e um naprom. A luz da cozinha está acesa, mesmo que não a visse ouvir-se-ia o seu zumbir característico. Daqui sei que não caio. O meu avô encarregou-se disso. 

Escrevo esta nota e estou aqui. A distância é aquela que o tempo na minha memória permitir perdurar. Mas eu, aqui deitado a escrever, permito algo ao qual sou avesso. Um pouco de nostalgia, para não cair na saudade.

"Pensas que nunca te vai acontecer" - Paul Auster

Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente.

Paul Auster, in "Diário de Inverno", p.5

segunda-feira, novembro 13, 2017

Évora, 13/XI/2017

Viemos numa visita relâmpago ao médico, fazer um exame na clínica CDI. Acompanho a Elsa na esperança que a rotina continue rotina nos resultados destas provas médicas. Também venho adoentado, dores de cabeça e digestão malfeita. Acumulo um não sei quê de cansaço, fácil de identificar por ser tão difícil de explicar ao meu corpo e a mim mesmo. Não é normal vir a pedalar para casa como se me viesse a arrastar, mesmo que, na cadeirinha de trás, o ocupante cresça a olhos vistos.
Mas aqui estamos, na mesma sala onde, há um ano, conheci a senhora Mona Lisa, bem acompanhada pelo marido, o qual, como eu, se preocupava com a saúde da sua cara-metade.
Hoje a sala é menos interessante. A televisão está no canal 1 e entrevista um escritor conhecido, apelativo em paleio, estilo e letras. Mostra a sua obra, as suas viagens. Fá-lo muito bem, como poucos. A mim já não me convence e, também, há coisa de um ano, deixei de lê-lo com o entusiasmo de antes. Talvez porque, para além de escrevermos bem, devamos viver mais além do curso das letras e manter uma certa coerência no que somos, mesmo que isso implique viver para escrever a metro. 
Do outro lado da sala de espera está o Zé, parece-me que é Mendes de apelido. Mal nos conhecemos e não o via há anos. Estava a falar alto ao telefone e ouvio-o mencionar uma ressonância. Espero que esteja bem, que o resultado seja inofensivo à sua saúde como a ressonância do passado que a sua presença me causou.
Os ecos levaram-me à juventude da boémia à noite. Dos copos bebidos e das amizades duradouras como o álcool destilado pelo corpo ao longo dum dia de ressaca. O Zé era um gajo tido em conta pela malta que me rodeava, os meus amigos de infância dos quais eu me afastava e me entristecia ver estancados na noite, no fundo duma garrafa.
As amizades da noite, da fixe folia de festival de Verão, de concerto de Queima das Fitas, da noite de fim-de-semana, são fortes para alguns, isso é inegável, porém para mim sempre me pareceram como um shot. Um trago que bate forte e rápido mas impossível de se saborear como um bom vinho.
Será que o Zé, com a sua irreverência noctívaga, ainda ressoa no íntimo da malta? Não sei e espero que sim e que tenha encontrado moderação nos consumos. Espero-o mesmo, com uma tristeza mais madura do que então. Faço questão de tentar manter contacto com muita dessa malta que a noite e o brilho do cristal dos copos encandeou numa idade crítica. O Zé provavelmente seguiu a sua vida, conserva um fígado saudoso e esponja só o Sponge Bob dos seus putos.  Aparenta cuidar-se bem e mantém o estilo de «beto» que o caracterizava. Mas ele não é meu amigo, nem nos cumprimentámos, logo não me preocupa. Preocupam-me outros. Meus. E não vivem longe da costa dum mar numa garrafa de whisky.

domingo, novembro 12, 2017

"Bicicleta" por Marc Augé



Não se pode falar da bicicleta sem se falar de si próprio. A bicicleta é a infância, é o descobrimento do corpo, uma exploração do espaço e do tempo diferente; o conhecimento dos limites e do mais além.  O sonho do ciclista é o de andar pela terra como o peixe na agua ou a ave no céu e no entanto, paradoxalmente, a bicicleta frente ao mundo mediático em que vivemos é o principio da realidade. Andar de bicicleta é também o que não se esquece.


No se puede hablar de la bicicleta sin hablar de sí mismo. La bicicleta es la infancia, es el descubrimiento del cuerpo, una exploración del espacio y el tiempo distinta; el conocimiento de los límites y del más allá. El sueño del ciclista es el de andar por la tierra como el pez en el agua o el ave en el cielo y sin embargo, como paradoja, la bicicleta frente al mundo mediático en que vivimos es el principio de realidad. Andar en bicicleta es también lo que no se olvida.

Marc Augé




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sábado, novembro 11, 2017

Moscas emigrantes

Bem que eu podia enxotá-las, conduzir de janelas abertas, mas as maganas queriam vir comigo. Duas moscas entraram clandestinas no meu carro em território português, duas varejeiras atrevidas que, por algum motivo, queriam mudar de ares e decidiram vir chatear para Espanha.
Na fronteira, na bomba de gasolina onde costumo comprar a imprensa pelo prazer do papel impresso em português, abri as quatro portas, usei a Sábado, comprada neste sábado, mas o duo dinâmico de moscas acrobatas esquivou a revista até eu desistir por falta de tempo para dedicar a dois insectos voadores. Lembrei-me que o Antonio Sáez também já foi vítima deste carjacking dum gangue de moscas e como o deixou bem patente no seu En otra pátria
A atitude persistente destes dois insignificantes seres vivos, fáceis de matar com a palma da mão ou com um mata-moscas de plástico que nunca se tem à mão, fez-me pensar se não haveria por detrás motivos políticos, quem sabe até um possível exílio. Deixei que se pousassem no tablier enquanto as conduzi como conduzo tantas vezes acompanhado da família. São gulosas as moscas, mas estas duas eram ágeis em malabarismos, algo que um tamanho mais pequeno do que o habitual (quem sabe são moscas infantis ou teenagers) dava jeito. 
Enfim, já cá estão com sus hermanas moscas, sabe Deus em que carro, casa, caixote do lixo ou acolhedora caca. Talvez até já saibam o motivo porque me forçaram a dar-lhes boleia. Tendo em conta as notícias de Portugal, não me custa pensar que, à semelhança da bactéria da legionella, só agora é que as moscas se aperceberam que tinham sido proibidas de voarem pelo anterior governo do Passos Coelho. Por cá voarão livremente mas convém não irem para os ares da Catalunha, porém não as censurarei. É lutar contra a sua natureza e, mesmo com o artigo 155, é onde há mais porcaria.