Conhecia o seu trabalho como tradutor e ensaísta, mas pouco
da sua poesia. Ontem tive o prazer de o ouvir a recitar o seu trabalho poético.
Dobrei várias pontas das páginas do “cuadernillo nº152” da “Aula de Poesía
Diez-Canedo”, como gosto de marcar no papel aquilo que me marca o pensamento, o
sentir de um determinado momento. Jordi Doce é um grande tradutor do poeta que
leva dentro. Já eu sou de um tal atrevimento que tive de me apropriar do seu
poema “Estações”. Não sei se ele opina o mesmo, mas a tradução, a mim, sempre
me arranca do silêncio.
Estações – Jordi Doce
1
Voltaste a atrasar-te,
mas a novidade
não é essa, atrasas-te sempre,
sempre o fizeste,
e a tensão que espreita enquanto pões
os pratos
ou mexes o refogado que nunca está no seu ponto
é outra coisa,
o pousio de um céu sem vontade
que cala o que viu,
o frio seco que chega ao osso
quando abres a porta e não é ninguém.
2
O medo,
é o medo outra vez, pensas, enquanto a luz
se torna mais forte
no pátio interior e a manhã
arranca sem certezas,
apenas a voz de uma menina
no apartamento do lado, um ruído
de portas e elevadores
para gente convicta do seu ofício,
nomes redondos,
e o leite que há pouco puseste no fogão
a queimar-se.
3
As coisas que te dizem
são muito sensatas, mas
não te interessam,
estão muito longe de ajudar-te
e só
por respeito te páras a ouvi-las,
sem impaciência,
enquanto atascas o pé em mal-entendidos
e o silêncio prospera
como um tumor na garganta, tens
razão, não tinha pensado nisso,
e o passo fiel, o olho aquoso.
4
O que sonhas é uma mancha
nas horas, um coalho negro
que se expande às escondidas
e põe os seus tentáculos aqui,
onde o sangue
é fraco, onde o ar se torna mais escasso
e fere,
e o teu nome não está em nenhuma boca,
e todo o dia
vais e vens entre duas águas
sobre o fiel de ti mesma,
a tentar não te afogares.
5
Desertos dos dias,
demónios das minhas noites,
digam-me
o que foi da matéria
que foi vida,
em que acabaram
o sangue e o seu
latido, a água
tensa do desejo?
Já só restam perguntas,
tão só uma insistência muda,
como o dormir,
e a menina que o tempo não dissolveu
a brincar
com a noite, com os demónios, consigo mesma.
(trad. Luis Leal)