terça-feira, agosto 29, 2017

Mulher de Sonho

Vestia-se larga de adolescência, cabelo comprido em tranças floridas e olhos de arritmia para os meus. Eu existia silenciando o que sentia, mesmo que, por dentro, no meu íntimo, existisse uma confiança experiente sabe-se lá porquê. Estava apaixonado e quando me chegou a coragem tudo acabou com o seu rosto no meu. Acordei.
Este é o resumo do meu sonho de ontem. Acho que nunca redigi o que vivi no meu subconsciente enquanto descanso. Se o fiz não me lembro e poderá para aqui no blog, ou em algum bloco no escritório, haver algo escrito. 
Realmente um enredo insignificante no qual a minha personagem não sabe se é homem de hoje, gaiatão de ontem ou puto de preparatória. A única coisa que guardo desta noite é a mulher de sonho, cuja graciosidade me apaixonou nesta telenovela onírica e da qual só vi o rosto no final. Fiquei feliz. A mulher por quem me apaixono em sonhos continua a ser a mesma por quem, há 17 anos, sorte minha, me apaixonei e todas as noites sonha a meu lado. 
Não sei o que isso significa, nem se Frued tem para aí algum complexo de esposo eterno adolescente. Apenas sei que o meu amor é real quer esteja a dormir, quer esteja acordado. Não o interpreto. Vivo-o.

domingo, agosto 27, 2017

Faltam acentos e cedilha...

Faltam acentos e cedilha, talvez não seja a melhor grafia para a montra de uma livraria, mas é verdade e é a minha cidade.

Montra da Livraria Nazareth, 26/VIII/2017.

quarta-feira, agosto 23, 2017

terça-feira, agosto 22, 2017

Parque infantil 5x10m

Quiseram ir lá para dentro. A mãe deixou e eu estou aqui fora ver a infância, a magote, a desenvolver a sua criatividade num espaço, de 5x10m com uns miniedificios pré-fabricados, emulado ao de qualquer parque infantil montado para entreter crianças num centro comercial. 
Parecemos peixes num aquário. Eu sou daqueles que morre depressa, pois não sou nada territorial.
Estou desejando que me digam: «quiero irme para casa».

Ainda que tudo se mova

«Deja de moverte y quédate quieto,
y la tranquilidad te moverá.»
(Poema Zen)

Mais fugas no sistema de rega. Incompetência da empresa que mo fez. Irresponsabilidade dos fornecedores. Quem é que paga?
As árvores, os aloé, a nossa carteira e o meu espírito, avesso de dependências externas e também sem água para arrefecer algumas raízes de violência.

sábado, agosto 19, 2017

Valeu a pena?

Acabo de ler um ensaio, muito resumidamente e pecando por alguma interpretação errónea da minha parte, sobre a actividade do escritor em Portugal. Tiro o chapéu à autora, Inês Fonseca Santos, e à Fundação Francisco Manuel dos Santos que promove uma verdadeira colecção de serviço público.
«Vale a pena? Conversa com escritores» faz a radiografia, através da conversa com onze escritores portugueses, como se vive a e da literatura neste país. Fá-lo com conhecimento de causa e duma maneira exemplar. Soube rodear-se de opiniões consistentes de criadores interessantes como António Cabrita, Mega Ferreira, Afonso Cruz ou Patrícia Portela, e outros que guardo a essência das palavras mas olvido o nome.
Inês, guardiã da poesia de Manuel António Pina, põe o dedo numa ferida estructural, que alguns remetem para características de pouco refinamento cultural português quando comparadas com outras realidades, a educação.
Quanto à minha humilde interpretação, é nesta base, influenciada pelo mundo global, que determina tudo: escritor, mercado literário nacional, editor, revisor, distribuidor e leitor. Pelo meio há os auxiliares desta cadeia, crítica e redes sociais. O caso da crítica não foi explorado como estava à espera, tal como o caso das revistas literárias que, na história da literatura portuguesa, geraram cânones («Orpheu», «Seara Nova», «Presença»...). A revista continua a ser um veículo de difusão, discreto é verdade, mas de grande qualidade quer em prosa, quer em poesia.
Outra coisa que a minha sensibilidade me chamou à atenção, foi o centralismo das duas grandes urbes, Lisboa e Porto, nesta reflexão. Isto impede que a literatura portuguesa imponha géneros regionais, impossível mesmo subliteraturas alentejana, transmontana, estremenha. Até que ponto as autarquias e a produção cultural veículada pelo poder local deveria ser estudado e inventariado? Espanha tem essa realidade regional sem a qual se pode falar de literatura espanhola. Falar de literatura no país vizinho é ter em conta uma amálgama de regiões autónomas, algumos com língua própria. O centralismo em Espanha existe a nível editorial, oscilando entre Madrid e Barcelona, mas a dimensão e distribuição pode levar-nos aos mercados iberoamericanos. O caso português não é assim. 
Ficando nomes importantíssimos, e que ajudariam a entender o mercado e a escrita actual, para trás como Virgílio Ferreira, Miguel Torga (o seu caso de primeiro candidato plausível a Nobel e nobre editor, junto com a esposa, da própria obra), Mário Viegas a declamar, Carlos Pinto Coelho a acontecer diariamente um magazine cultural, o Jornal de Letras quinzenal, os cantautores de talento literário reconhecido, o Sérgio Godinho, por exemplo ou o egocentrismo (com possibilidade de Nobel) de Lobo Antunes que tem leitores ainda mais reduzidos que em poesia no que respeita aos seus romances mas que chega à leitura massiva com as suas crónicas.
O passado condiciona demasiado este «Valer a pena». O tamanho do país também, pequeno e com grandes valores literários, tal como livro que alberga este ensaio de excelente abordagem e registo mixto, ensaístico e jornalistico, ao qual lhe faltariam umas páginas para ser completo.
Mas há que ser realista. O que é preferível, esta reflexão na estante da biblioteca da universidade ou em milhares de topos em supermercados e livrarias do país? 
De obrigatória leitura para quem quer escrever e ler boa literatura portuguesa. O mesmo se aplica a quem quer viver dela, escrevendo, editando e ensinando.

sexta-feira, agosto 18, 2017

Comparativa de performances pueris

E é comparar. Preços, materiais, carros, casas, países, economias, corpos, tamanhos, performances... e filhos. Não falo da quantidade, nem se é entre o mais velho, o do meio ou o caçula. Falo de filhos.

«Vejam só, tem seis anos mas já veste de dezoito. Já fala três línguas, sabe judo, toca piano e guitarra, programa aplicações e acabou de receber propostas de várias universidades para ir estudar. Mas ainda não nos decidimos pois teve um convite para ir para o governo e, como pais, não sabemos se o devemos aconselhar a emigrar, com o potencial que tem...».

É verdade. Tem tanto potencial que só é pena eu não ter inveja porque sou um pai preguiçoso demais, até para isso. Os meus têm percentis normalíssimos (mais a dar para o pequeno). A roupa, se possível herdada, é do tamanho que mais jeito dá ao corpo e à carteira dos pais. Falam e abusam do portunhol. São um bocado patosos e riem-se dos próprios puns e de uma aplicação que os reproduz. Têm um cavaquinho desafinado que usam para, se me descuido, se agredirem e só os aceitam mesmo no infantário e na escola primária. Do governo, só conhecem o de casa e o orçamento que possibilita, ou não, a aquisição de um novo brinquedo.

Enfim, não lhes vejo potencial para além de encher fraldas, o mais novo, e a esperança de descobrir uma forma de produzir energia alternativa com o chulé das sapatilhas do mais velho.
Deveria de estar preocupado. Deveríamos, porque isto também é culpa da minha mulher. Já tentei melhorar, tentámos, melhorá-los, mas parece-me que isto é uma questão de cepa torta...
Epá, espera lá! És parvo ou quê?! Com o marketing adequado, até de uma vulgar cepa se pode vender um vinho extraordinário!!! É tudo uma questão de rótulo!!!

«Contou-me um alentejano» - J. Rentes de Carvalho

"Contou-me um alentejano: «Tive um avô que ia ouvir a água a correr como quem vai ouvir a banda filarmónica a tocar no coreto», e fico a recordar que em criança, quando o meu avô ia tratar da horta e me levava consigo - na minha fantasia uma manhã inteira de jornada, as burras transmudadas em corcéis - ficava eu junto do açude, entretido a seguir os girinos, surpreso de não compreender se o som da corrente mudava por eu mudar de sítio, ou se havia ali mistério, talvez elfos emigrados da fria Noruega para o calor transmontano, e que regalados, escondidos entre seixos, sopraravam nas flautas estranhas melodias.".

J. Rentes de Carvalho, in «Trás-os-Montes, o Nordeste», pp. 11 e 12.

quinta-feira, agosto 17, 2017

O vizinho do lado

Há quatro anos que nos conhecemos, nos cumprimentamos, e partilhamos o local de veraneio sem sabermos o nome um do outro.
Este ano temos falado mais desde o primeiro dia. Pescador submarino diário nesta Foz, o simpático vizinho do lado tem mostrado cavalos marinhos, ostras, ameijoas, santolas e outro marisco que o meu vocabulário de sequeiro desconhece.
Hoje obsequiou-nos mais umas ostras e uma pequena santola. Agradeci a atenção e a simpatia, escondendo o pânico de ser incapaz de coser vivo o animal e depois comê-lo.
Lá está ele dentro do alguidar e, amanhã cedo, com medo de ser descoberta a minha ingratidão marisqueira, vou soltá-lo ao mar.

Reiki

Uma vez estive a falar com uma «reikiana» - esse é o nome que têm os seguidores dos fluxos de energia que emanamos - e, para demonstrar a um público de um programa de televisão de então no que consistia esta terapia, usou-me como cobaia. O riso é uma forte energia em mim, contudo o respeito pela energia da convicção do outro conteve-o nos cantos discretos da boca que iam sorrindo nervosismo e falta de fé.
Terminada a sessão/demonstração, disse-me ter encontrado uma fervilhante energia criativa num chakra, ou coisa parecida, situado lá para as bandas da minha testa. Agradeci-lhe sincero. Ainda hoje gostaria de acreditar em coisas que não acredito.

Uma simples medida de cafeína

«Yo he medido mi vida en cucharitas de café.»/«Eu medi a minha vida em colherzinhas de café» (T.S. Eliot)

terça-feira, agosto 15, 2017

«HAPPINESS ONLY REAL WHEN SHARED» Chris McCandless

De volta a «Into the Wild» de Jon Krakauer, para sublinhar palavras de solidão, fascínio, idealismo, aceitação, eu, outro, de filho a pai, pai de filho, natureza, pureza, decalque, egoísmo, erros cheios de inocência. A morte dum filho que rumou a norte de si mesmo.

Ao meu redor, os meus filhos brincam, discutem por brinquedos, matam formigas. O mais velho paciente com os movimentos abebezados e egocêntricos do mais novo a articular aos berros o seu carácter reivindicativo e privilegiado por o ter como irmão.

Quero terminar para eles uma ideia em movimento há tempos. Sinto que o tenho de fazer sem mais ideia de legado que a realidade de por aqui estarmos ser irrepetível. Não sei como o farei sem lhes impor mais presença paternal minha que a necessária para poderem ser eles próprios. Termine como o terminar, a responsabilidade é minha.

«For children are innocent and love justice, while most of us are wicked and naturally prefer mercy.» - G. K. Chesterton

Fila G, Lugar 11, uma sala de cinema só para ele...

segunda-feira, agosto 14, 2017

«Dolcevita, ralaxar ao ar, sem amor não sou nada...», Leiria, 14/VIII/2017

Uma escadaria cheia de sabedoria.

O passado patego do "Running"

Antes de ser actividade marca registada, de ser tema de secção da grande superfície desportiva e de revista de corredor técnico, o "running" não estava na moda. Porém, era barato e, salvo algum problema físico ou lesão, caracterizava-se por ser o mais democrático de todos os desportos.

Em Évora, sem grandes infraestruturas então, à volta das muralhas, a corta-mato nos descampados dos bairros, ou aqui, no campo da universidade, o passado patego do "running" chamava-se correr.

Ontem, deparei-me com esta fotografia, a qual me remete para o meu passado (e presente) patego. Avesso a nostalgias desnecessárias, agrada-me ver gente a fazer o seu "jogging" (terminologia dos 80's) e até suporto políticos a darem entrevistas sobre a resistência das suas meias-maratonas (será que o Sócrates deu umas corridinhas no pátio da prisão da minha cidade?). O que me chateia verdadeiramente é gostar tanto duns ténis técnicos de "trail" que, mesmo nos saldos, teimam em ter mais de três dígitos no preço!

(Foto de Duarte Belo)

A vida encerrada entre quatro paredes, sem frinja de luz, tende a apodrecer

domingo, agosto 13, 2017

sábado, agosto 12, 2017

À procura, por entre fragas...

Estou de acordo quando se diz que, na poesia portuguesa moderna, é impossível escapar da influência de Pessoa. Porém, a Torga há que estar disposto a encontrá-lo por entre fragas. As minhas botas denunciam que o procuro frequentemente. Hoje faria 110 anos.

(Foto da montra da Livraria Nazareth em Évora, 2016)

Foz do Arelho, 12/VIII/2017

Dia especial. Chego à Foz do Arelho uma hora antes de dia onze terminar, com várias horas de viagem, uma carrinha a arder na autoestrada e pizza e cafezinho num supermercado da capital do gótico português.

Venho à Foz graças à amizade e estima do mestre Jorge. Aqui tenho escrito muitas notas e lido muitíssimo mais, neste local onde, durante uma semana, somos unicamente família e Atlântico. 

Deitado debaixo do enorme mapa mundo pendurado na sala, não sou capaz de deixar de sentir a sua ausência em cada livro da sua biblioteca e  em cada objecto deste seu refúgio que, ironicamente, o tem sido mais para mim que para ele. Dá-me pena não estarmos aqui fisicamente juntos, as nossas famílias juntas.

Há uns anos, onde agora escrevo, disse-me com toda a sua experiência de trotamundos e ainda com muito para viver.

- Sabes, o português emigrante tem muito aquela ideia de voltar à pátria para morrer...

Não sei o porquê de me lembrar desta conversa. Escrever entradas de diário é escrever ao sabor do pensamento e, escusado será dizer, a minha cabeça está cheia de correntes de ar...

Portugal é a nossa pátria, terra dos nossos pais, e ambos já a passámos aos nossos filhos, assim como espécie de herança forçada pelas nossas circunstâncias. O nosso voltar à pátria não é ascendente, apesar de toda a lealdade ao nosso passado, é descendente, tal qual como os corpos descem sete palmos abaixo de qualquer terra lavrada de pedras.

A quilómetros de distância do meu amigo, do mestre Jorge, celebro a sua vida, a nossa amizade, tal como a vida de outro grande, como ele, o transmontano, mas com título à alentejana, o mestre Miguel Torga. 

Há uma enorme ironia neste dia que trouxe à vida estes dois seres humanos cuja humanidade  e excepcionalidade não se limitou à fronteira mais antiga da Europa. Ainda nos tempos da universidade, foi o Jorge Rosmaninho Neto quem me ofereceu o primeiro livro do Torga, «Câmara Ardente», edição do autor, capa branca e com as folhas coladas para que o leitor, como eu, vá lendo à navalhinha. 

O nosso futuro é tal e qual como os seus livros, os publicados em vida, edição de autor, capa branca e com folhas que, para serem escritas, têm de se desbravar à lâmina...

Muitos parabéns querido amigo.

sexta-feira, agosto 11, 2017

A Promessa

A promessa que não teve tempo
não passou disso,
de promessa.

O nosso «room mate» Cocas

Ensinaram-me a ter cuidado com os sapos pois podem mijar-nos para os olhos e levar-nos à cegueira. De ciência pouco sei, de mitos só o que me contam, mas o Cocas, como eu e o meu filho mais velho o baptizámos, parece não ter problemas de incontinência e, com o seu ritmo marreta, lá anda pela secura da nossa plantação à procura de insectos, principalmente nas pequenas Amazónias de infestantes que se formam nos gotejadores. O Cocas vai de oásis em oásis no nosso imenso deserto.
Hoje cruzámo-nos com ele e convidámo-lo a descansar num Aloe Vera e a tirar uma foto para a posteridade. Ao princípio estava com medo. Ele e eu. Nenhum se mijou...

quinta-feira, agosto 10, 2017

Se tivesses de escolher entre...

Perguntava a menina loura e de tranças invejáveis:
- Se tivesses de escolher entre animais e humanos, qual escolherias?
Não houve resposta. Ela tão pouco a queria, para os seus 14 anos, já a havia encontrado.
Eu, alheio a tal pergunta, tenho multas dificuldades em diferenciar o natural do artificial. Quase sempre me parecem o mesmo.

É a primeira vez que aqui escrevo...

É a primeira vez que aqui escrevo. Sentado à sombra, a esperar que passe a hora do calor, faço-me acompanhar por um dos mais afamados escritores de língua portuguesa da actualidade. Ouvindo-se as cigarras como se fossem interferências na onda do meu rádio, aqui sintonizo silêncio.
Dou por mim emocionado. Este escritor escreve sobre outro escritor duma maneira inesperada para a minha leitura, à minha percepção que homem e literatura não se podem indissociar. 
Algo em mim se revê naquelas palavras, naquelas mãos delicadas de previlégio capazes de saudar as mãos calejadas e sofridas sem o mais mínimo sentimento de caridade.
Tenho aqui tanto para fazer e nada tem a ver com estas leituras. A temperatura até me perdoa e não está para assar-me a trinta graus, contudo hoje não há ferramenta que me distraia, árvores para tutorizar, ervas daninhas para sachar e me evada desta condição de corpo convicto em terras e incapaz de lançar raízes.

segunda-feira, agosto 07, 2017

"Talking about my generation", os "Xennials"

Até na minha geração vivo uma espécie de fronteira, não entre dois países, mas um limbo entre a inteligência da massa cinzenta e a inteligência artificial. Dizem por aí os sociólogos que a minha geração, ora «rasca», ora «à rasca», se pode orgulhar de ficar para a história da humanidade como os últimos exemplares de uma espécie condenada: o "Homo Sapiens Pré-Web". Justificam isto com as nossas infâncias analógicas e definem-nos como pessimistas e dados a nostalgias.

Como dou bastante importância a estes estudos geracionais, ponho-me a pensar e dou-lhes razão tendo em conta as repercussões evidentes na minha vida. É verdade, antes ia sempre acompanhado à casa de banho por uma revista, uma bd, até por uma enciclopédia. Hoje vou de smartphone na mão e não é preciso procurar por ordem alfabética na Wikipédia. Dizem eles que é a evolução, mas só consigo pensar que, num WC, papel é sempre papel...

«Vamos a banhos? (destacar o que não interessa)», cartoon de Miguel Feraso Cabral (in, revista «Visão», 03/VIII/2017)

Fins-de-semana com Imposto de Valor Acrescentado

A semana terminou cansada, em casa, em rotinas de sábado e domingo de responsabilidades e algum lazer. Supermercado, alguns artigos de papelaria no Chinês e casa. O Xavier pôs o sono em dia, o Santiago andou quase todo o fim-de-semana de cuecas e nós estivemos a tratar de vários deveres domésticos e laborais intercalados com cinema passado na televisão.
Lá fora, o calor sufocante de agosto fez com que não nos custasse tanto a burocracia e contas do IVA, essa surreal tarefa da qual a Elsa trata com competência contabilística. Eu apenas dito números de contribuinte, confirmo valores e separo trimestres.
Não é um fim-de-semana de sonho, apesar de o termos passado ensonados, meio adormecidos e encafuados em casa. Escrevo por mim, até me soube bem. O imposto de valor acrescentado do meu tempo, possibilitou-me ver filmes agradáveis, despretensiosos, e rever uma ou outra obra de arte. 
Rever filmes, reler livros, para mim, tem sido como regressar a um local agradável, de feliz experiência. Há algo de novo no prefixo «re» quando se tem curiosidade. 
Não sei quantos fins-de-semana já teve a minha vida. Se me agarrasse a um calendário, e usasse a calculadora Casio que usámos para os somatórios e percentagens de IVA, talvez averiguasse um número inútil, como quase todos os números que não dão o mais mínimo sentido aritmético ao que sou.

domingo, agosto 06, 2017

Meditar

Aos seus seis anos, o meu filho mais velho perguntou-me o que é meditar. Não sei onde terá ouvido a palavra, provavelmente em algum desenho animado ou no meio de alguma das nossas conversas de casal, mas a minha reacção foi rápida e pouco meditada. Disse-lhe que meditar é olhar para dentro, fechar os olhos e estar tranquilo. Ele, de boca aberta, apenas me disse «vale» e não se falou mais do assunto.

Conto Zen

Pergunta o abade ao cozinheiro do mosteiro.
- O que é que é mais valioso, uma barra de ouro ou um balde de terra?
O cozinheiro não hesita.
- A barra de ouro, é claro!
O abade apenas responde.
- Nunca para a semente.

«Unforgiven» by Clint Eastwood

Isto não tem nada a ver
com merecer.

Não se dispara primeiro
ao mais hábil pistoleiro.
Dispara-se.

Matar um homem
é tirar-lhe tudo o que tem
e o que poderá ter.

Eu sou William Munny.
Já matei de tudo o que caminha
e se arrasta por este mundo.

Ninguém se salva de mim.
Nem tu, meu amor...

sábado, agosto 05, 2017

"O leitor de poesia não é menos leitor" - Filipa Leal

O leitor de poesia não é menos leitor
do que o leitor de romance.
O leitor de poesia não é menos
culto do que o leitor de romance.
Ser leitor de poesia não é um
defeito.
Ser leitor de poesia não é ter lido
menos.
A literatura não é um concurso
de palavras.
A literatura não se faz com
fita métrica.
Não obriguem o leitor de poesia
a ler o que não quer. A não ser que
se comprometam a ler poesia também.
E nem assim.
O leitor de poesia tem o direito
de não ler os romances na integra,
como o leitor de romance lê um
poema aqui, outro ali.
O leitor de poesia tem o direito
de só ter lido Tolstoi. Ou Thomas
Mann. Ou Clarice Lispector. Ou
Philiph Roth. Ou nenhum deles.
O leitor de poesia tem o direito
de não conhecer as novidades.

A poesia também é literatura

Filipa Leal, in “Pelos Leitores de Poesia”, p.23.  
   

José Rentes de Carvalho (Fotografia do DN)


Amigos de sempre... (Serão de 200 km)

Fizemos 200 quilómetros para ir a Évora e passámos duas horas na estrada. Não é nada do outro mundo para os quilómetros que tenho feito ao longo dos últimos doze anos e comparando com as milhas diárias que se fazem em países gigantescos como os Estados Unidos. Fi-los com a certeza de sexta-feira, de que amanhã não trabalhamos. 
A temperatura despreocupada de Agosto e a Praça do Giraldo a cantar com o amigalhaço Duarte, juntou-nos como antes. O Nunecas, o Gonçalinho, o Cajó e eu. A pandilha estaria completa com o Juba, o Carlos, o Catapeta, o mestre Jorge e talvez outro, se não fosse parvo e quezilento. 
Partilhámos uma infância e uma juventude juntos em Évora, porém só eu e o Jorge fomos viver para outro lado. Pode parecer uma estupidez anacrónica para o presente que vivemos, mas, cada um à sua maneira, mais ou menos cúmplices, mais ou menos em contacto, todos mantemos intacta a nossa amizade desde tenra idade. Algo aparentemente estranho, hoje em dia, em que tudo se descarta, tudo é rápido, tudo é efémero e sobresselente. Em Évora, a minha cidade, estão lá os que me fizeram ser quem sou, os que não necessitam de falar com filtros de educação ou contexto. Estão lá os que, há 20 anos, estavam no quintal dos meus pais ou numa tasca a beber uma mini. Em Évora estão os meus amigos. 
Posso ter gasto 1/4 do depósito, ganhado e perdido uma hora entre fusos horários, pago a portagem correspondente, mas agora, às tantas da madrugada, na minha cama, escrevo a minha profunda gratidão (e orgulho) a todos os meus amigos de infância, de juventude, de sempre...

sexta-feira, agosto 04, 2017

Em cuecas e fraldas frescas nesta manhã de Agosto


Ainda lhe pedem que lhes ate os balões. Confiam que é capaz de solucionar tudo com todo o tipo de colas, fita-cola, super-cola.  A sua cara é uma autêntica mentira e o seu corpo decidido também, pois vão inspirando essa confiança. 
O que não se vê, por dentro deste pai, são as suas dúvidas, o seu medo de deixar de conseguir usar todos os tipos de pegamento, mostrar-lhes que há fragmentos que jamais se voltarão a unir, que apesar da sua navalha, a fita-americana e sentir-se desenrascado, não ressuscita quem já não está e, se tal o fizesse, não seriam Lázaros agradecidos mas sim Frankensteins de lojas de ferragens.
Aqui estão à sua frente. Brincam com o balão por si atado, num futebol lento, aéreo e aleatório de gargalhadas e trapalhices. Vê que estão felizes, entretidos em cuecas e fraldas frescas nesta manhã de Agosto, e não reparam na sua cara verdadeira, enternecida ao vê-los irmãos, diferentes, mas tão cúmplices por aqui estarem com o seu pai. 

quinta-feira, agosto 03, 2017

Aliança perdida

Aliança perdida. Tristeza no rosto da Elsa. Entendo-a. Ter o símbolo do nosso vínculo no dedo, nesse precário anel, é importante para ela. 
A minha nem a uso. Ainda é mais humilde, nem de ouro é. Usei-a pouco tempo, enquanto foi novidade ceremonial, apesar do incómodo que fazia um calo na palma da minha mão. Acabei por descartá-la para o fundo da gaveta que tenho à cabeceira.
Faz questão de substitui-la e eu apoio a sua decisão, como ela apoia a minha indiferença a objectos, adornos, que simbolizam o nosso amor.
Se algum dia formos um calo no caminho um do outro, agradece-se o discernimento para retirar o objecto, descalçar o sapato, ou a rotina que endurece as camadas de pele no nosso ser.

Diários (e dias) há muitos...

Li algures que a literatura portuguesa, ao invés da inglesa, para dar um exemplo, não tem uma tradição dita diarística, com excepção dos volumes de Torga e a conta-corrente de Virgílio Ferreira. O tempo contado em português não sai do diário, do bloco de notas ou do blog. A não publicação não é falta de atenção ao dia-a-dia. Essa talvez seja a tradição.

quarta-feira, agosto 02, 2017

«Pó, Cinza e Recordações» de José Rentes de Carvalho, p.56

«Aonde pertencerei? De verdade e por inteiro, a parte nenhuma. A terra onde nasci tornou-se-me estranha como um teatro, quando estou nela tenho a ideia de que represento um papel. A outra, onde vivo há mais de meio século, dá-me por vezes a ideia de um navio que se afasta e me deixou no cais. Procurar outro poiso? Nem a idade mo permite nem as amarras o deixariam. Porque é isso: não pertenço, mas é muito forte o que me prende.».

in «, Cinzas e Recordações», p.56, José Rentes de Carvalho

«Praia» de Manuel Altolaguirre (trad. Luis Leal)

As barcas de duas em duas,
como sandálias ao vento
postas a secar ao sol.

Eu e a minha sombra, ângulo recto.
Eu e a minha sombra, livro aberto.

Sobre a areia estendido
como despojo do mar
encontra-se um menino adormecido.

Eu e a minha sombra, ângulo recto.
Eu e a minha sombra, livro aberto.

E mais além, pescadores
a puxarem as maromas
amarelas e salobras.

Eu e a minha sombra, ângulo recto.
Eu e a minha sombra, livro aberto.

Manuel Altolaguirre (Trad. Luis Leal)

Uma Victorinox que pode viajar de avião...

Qual destas navalhas irá ficar em terra? Há que ter cuidado com alguma para não se derreter no bolso? Todas podem ser um souvenir de viagem à Suiça e são produtos emblemáticos deste país. 
Há uns meses que as tinha na estante e nem me lembrava que estas navalhas Victorinox de chocolate suíço se podiam estragar pois a única coisa que podem cortar é a digestão de algum glutão lambuzado de cacau ou ocultando o seu prazo de validade...
Pelo sim, pelo não, vou comer um pedacinho de vez em quando, cortado pela navalha proscrita dos aeroportos. Só quero adoçar a língua.

terça-feira, agosto 01, 2017

Praça Dr. José Afonso (Figueira da Foz)

Procurávamos esticar as pernas e tomar um cafezinho depois de jantar. Fizemo-lo junto a esta praça «Dr. José Afonso». 
Não pude deixar de pensar que a malta ainda não percebeu não existirem títulos académicos numa terra de fraternidade. Tenho a certeza do Zeca estaria muito agradecido com a atribuição do seu nome a esta praça, com todos os meios e iniciativas que preservem a sua memória, porém o seu legado não necessita um Dr. para ser identificado em qualquer esquina deste Portugal.