domingo, setembro 30, 2018

Chicco e BH (uma tarde sem parar...)

Paula

É pequenita, discreta e ainda não tive tempo de observar se é solitária. Senta-se ao lado do "Antonio" e chama-se Paula. Apesar das poucas aulas que tivemos, três ou quatro, a Paula vem sempre cumprimentar-me com um sorriso e despedir-se com votos de um resto de bom dia ou fim-de-semana, como foi hoje o caso. Diria mesmo que me dá a sensação de pedir-me um abraço (algo que não me atrevo pelo medo de possíveis interpretações perversas que tal gesto pudesse ter). 

Confesso, não estou habituado. A maior parte das vezes, a caminhar pelos corredores da escola, nem me retribuem os «olás» e os «bons dias». Os alunos tendem a ignorar a amabilidade, a cortesia e o mesmo se passa com alguns adultos com quem partilho profissão, uns quantos, na verdade.

Em época de «influencers», esta menina pouco ou nada tem que a fizesse um ícone a seguir nas redes de sociabilidade dos «teenagers». É pontual, estuda, fala quando tem de falar, traz o material, é educada e é cordial, enfim, uma «nerd» para os padrões da época. E o pior é que a sociedade, alguns dos seus colegas, encarrega-se de pôr de parte gente assim. Triste sociedade em que ser amável é uma fraqueza e não uma virtude...

(Se leste até aqui, muito obrigado pela tua atenção.)

Desde Buenos Aires, Alfonsina Storni

En Buenos Aires, hace poco más de un mes, mi buen amigo Jorge Neto tuvo la amabilidad de  acordarse de mí y enviarme un libro con la siguiente dedicatoria:

Llevarte a Borges habría sido demasiado fácil, recibe a la Florbela Espanca argentina en señal de nuestra amistad (…)”.
Alfonsina Storni (1892-1938)

Así me llegó a manos este “Poemas de amor” (Hiperión) de Alfonsina Storni que me acompañó en los últimos días. Florbela Espanca no me circula por las venas (con la excepción del amor por el Alentejo) pero esta señora, Alfonsina Storni, me dejó residuos en las arterias…

Gracias estimado amigo. Nos veremos pronto...

Algunos de estos "Poemas de amor":

XIV
Estás circulando por mis venas. Yo te siento deslizar pausadamente. Apoyo los dedos en las arterias de las sienes, del cuello, de los puños, para palparte.

XV
Pongo las manos sobre mi corazón y siento que late desesperado. - ¿Qué quieres tú? Y me contesta: - Romper tu pecho, echar alas, agujerear las paredes, atravesar las casas, volar, loco, a través de la ciudad, encontrarle, ahuecar su pecho y juntarme al suyo.

LVI
Tenías miedo de mi carne mortal y en ella buscaba el alma inmortal. Para encontrarla, a palabras duras, me abrías grandes heridas. Entonces te inclinabas sobre ellas y aspirabas, terrible, el olor de mi sangre.

LVIII
Otra siesta, frente al río que se dirige al mar, tu cabeza en mi falda, imaginamos que la tierra era un buque en movimiento abriendo en el espacio un camino desconocido. Desprendida de su ruta habitual seguía a capricho nuestra voluntad y se alejaba, zigzagueando, cada vez más del sol, hacia uno de los bordes del Universo. Entrecerrados los ojos y aspirando el aliento niño de un recién nacido diciembre, nos sentimos desligados de toda ligadura, creadores del Camino, la Dirección y el Tiempo.

LIX
Adherida a tu cuello, al fin, más que la piel al músculo, la uña a los dedos y la miseria a los hombres, a pesar de ti y de mí, y de mi alma y la tuya, mi cabeza se niveló a tu cabeza se niveló a tu cabeza, y de tu boca a la mía se trasvasó la amargura y la dicha, el odio y el amor, la vergüenza y el orgullo, inmortales y ya muertos, vencidos y vencedores, dominados y dominantes, reducidos e irreductibles, pulverizados y rehechos.

Como é que se chamam...

Como é que se chama aquele tipo de pessoas que a culpa nunca é deles, é sempre dos outros? Perfeitas ou desgraçadas?
Boa pergunta, mas não sou capaz de responder. Talvez dependa do dia, se estou virado para encontrar as coisas belas da vida ou se só encontro misérias pelo caminho...

quinta-feira, setembro 27, 2018

Chuva de Setembro

Começou a chover devagarinho, gota-a-gota, até a noite ser iluminada por raios, relâmpagos, como tantos de nós, saturados de suor e calor. 

Nada é o que é neste mês, tal como ninguém quer ser quem é ultimamente. Setembro zangou-se com o calendário e com a gente. Fartou-se do imperialismo do Janeiro (de Janus cujo poder abarca todos os começos) e assumiu-se como o primeiro mês do ano, o do regresso. Mantém o Verão e não revela o mais mínimo interesse pelo Outono. Este Setembro é como é: violento e de extremos. Ao contrário da maioria, quer ser quem é. Não quer nada de mim, nem eu dele. Coexistimos nestas trinta noites, mas nem ele nem eu somos os mesmos desta coexistência de quase quatro décadas...

Continua a chover. Há beleza nesta luz rasgada no céu. Já não chove devagarinho. A timidez do gota-a-gota desapareceu num jorrar de trovoada extrovertida. Setembro e eu, os dois que nos ignoramos,  que não queremos nada um do outro, mas não podemos ficar quietos a olhar um para o outro...

Abro a porta do carro e caminho sem abrigo. Por momentos, pensei que esta chuva de Setembro fossem as lágrimas que estes últimos tempos de tanto calor me secaram... Molhado, Setembro atira-me à cara que também eu não quero ser quem sou.

Chuva de Setembro

terça-feira, setembro 25, 2018

Tenho os pés inchados...

Tenho os pés inchados. Antes isso nunca me acontecia. Era rijo de pés, como dizia o meu avô. Caminhava pelo Verão e pelo Inverno com uma facilidade primaveril por entre as folhas pontapeadas nas ruas infantis dos Outonos eborenses. Era-me indiferente a comodidade do calçado então e domei botas alentejanas que me acompanharam até se fundirem com o chão. Hoje já aprecio sapatos confortáveis. Só depois dos pés aliviados vem a estética imposta pela moda e pelo estilo que cada qual vai adquirindo ao longo dos anos.
Tenho os pés inchados. Nada do outro mundo. Sinto uma rigidez dos gémeos e um ligeiro rugir articular do tornozelo direito - caído em desgraça numa escalada de excesso de confiança em Puerto Roque -. Não coxeio, mas já não me atrevo a aventurar-me a coleccionar experiências, a vencer medos, a querer ser radical. Escalo mais seguro em cordas e pontos de apoio, porém porque é que me sinto constantemente em queda livre? Não importa. Voltarei a tentar domar umas botas alentejanas. Preciso de chão.

"Botas Alentejanas" de Joseph Liszt (Évora, in "Olhares")

domingo, setembro 23, 2018

Uma boa surpresa pendurada nas paredes da minha universidade...

36. - Sam Shepard (in "Espião na Primeira Pessoa", p.94)

36.

HÁ UM ANO CONSEGUIA ouvir cair nozes. Conseguia ouvir partir nozes. Conseguia coçar a barriga do catahoula* que tinha muitos cachorrinhos. Que o filho, o rapaz magricela, insistia em que ficasse com eles.
     Exatamente há um ano conseguia guiar através da grande divisão entre o Norte e o Sul. Conseguia guiar ao longo da costa. A costa irregular. Conseguia bocejar no deserto.
     Mais ou menos exatamente há um ano conseguia caminhar com a cabeça levantada. Conseguia ver através do ar. Conseguia limpar o rabo.

(Trad. Salvato Telles de Menezes)
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* Raça canina de origem norte-americana. (N. do T.)

Sam Shepard
36.

HACE UN AÑO CONSEGUÍA oír caer nueces. Conseguía oír partir nueces. Conseguía rascar la barriga del catahoula* que tenía muchos cachorritos. Que el hijo, el chico flacucho, insistía en que me quedase con ellos.
     Exactamente hace un año conseguía conducir a través de la gran división entre el Norte y el Sur. Conseguía conducir a lo largo de la costa. La costa irregular. Conseguía bostezar en el desierto.
     Más o menos exactamente hace un año conseguía caminar con la cabeza levantada. Conseguía ver a través del aire. Conseguía limpiarme el culo.

(trad. Luis Leal)

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* Raza canina de origen norteamericana. (N. do T.)

sábado, setembro 22, 2018

Fossa

a máquina abriu uma cova demasiado grande para o teu corpo. a pá obrigou-te a raspar do chão a terra para te cobrires e ao contrário da enxada negou-te o apoio, apenas te lembrou que é a ferramenta do teu fim.
a máquina engrandece a vala para te proibir companhia. dá metros quadrados ao teu corpo da mais pura solidão. resta-te a árvore, a velha amendoeira de raízes rasgadas pela pá mecânica e atiradas por ti, à mão, para o lado do caminho agora parado por esta fossa comum à tua presença.
aséptica, deixou-te sair, apesar do pó na roupa e de não a teres terminado de tapar. respiras a terra impregnada nas narinas, sentas-te à sombra desse cheiro familiar. olhas para o trabalho por terminar e tomas o teu tempo, sacas ao ar o suor de tudo o que tens de trabalhar. aceitas que ainda há muito para fazer e pensas noutras raízes para plantar.
uma figueira, essa árvore que nunca conseguiste plantar e à qual gostarias de um dia debaixo meditar. sempre foste mais govinda que sidhartha. a máquina continua a fazer questão de to recordar.

domingo, setembro 16, 2018

«Nossa Senhora da Piedade» e «Silêncio»

Os ex-votos e a tradição da Senhora da Piedade foram relembrados pela publicação de um livro da minha amiga Tânia Morais Rico, uma eborense, do meu bairro, que actualizou a fé de muitos elvenses nessas páginas. Estive lá e fiquei orgulhoso de a Senhora da Saúde zelar pela história das devoções da raia.
À noite, impôs-se o «Silêncio» de Shusaku Endo adaptado à sétima arte pelo Scorcese. Sebastião Rodrigues, esse jesuíta interpretado pelo Andrew Garfield, foi o último padre no Japão. Francisco Xavier - a quem devo o nome do meu filho mais novo - usara o vocábulo japonês de sol para poder traduzir a noção de Deus ao povo japonês. Não são o mesmo e Shimawara encarregou-se de o confirmar, relegando para os resíduos da história nipónica uma qualquer presença do cristianismo português ou espanhol.
«Silêncio» esteve à altura da homenagem que o realizador propôs, à cristandade japonesa e aos seus padres, porém, para mim, teria sido uma obra perfeita se o inglês não tivesse corrompido esse «Silêncio» que eu ouvia na minha língua...
Andrew Garfield in "Silence"

quarta-feira, setembro 12, 2018

"De cada vez que abria uma gaveta..." - Paul Auster

"De cada vez que abria uma gaveta ou espreitava para dentro de um armário, sentia-me como um intruso, um ladrão devassando os locais secretos da mente de um homem. A todo o momento esperava que o meu pai entrasse, parasse incrédulo a olhar para mim e me perguntasse que raio é que eu pensava que estava a fazer. Não me parecia justo que ele não pudesse protestar. Eu não tinha o direito de invadir a sua privacidade"."

Paul Auster, Inventar a Solidão


segunda-feira, setembro 10, 2018

Viver entre velhos...

Acho que tinha acabado de fazer nove anos quando a minha mãe foi trabalhar para o Centro de Dia. Do final da minha infância até ao princípio da minha vida adulta, já a residir em Valencia de Alcántara, acompanhei o trabalho da minha mãe. Ia com frequência buscar e levar os idosos a casa, depois duma jornada num centro que se tornara parte do seu dia-a-dia. A solidão era paliada, naquele rés-do-chão do Bairro da Sra. da Saúde, por gente capitaneada pela minha mãe. Perdemos muito em casa graças à boa samaritana que sempre foi a minha progenitora, essa é a verdade. Também é verdade que, se assim não tivesse sido, o centro à frente de casa, talvez hoje não visse o mundo como o vejo, nem o sentisse como sinto.

Ter visto a incontinência do tempo nesses idosos, fraldas e andarilhos antes de as ter mudado como pai, a mobilidade apoiada nos braços de tantas famílias divididas entre a gratidão, o amor filial, ou o peso de um bem-parecer duma estrutura familiar que não puderam escolher, para além de ter visto demasiados fins de vida a serem cobertos à pazada, fez de mim um órfão circunstancial de tantos avós que não me eram nada.

O medo foi constante. As aprendizagens  também. A falta de maturidade notava-se no sofrimento que me causava ver lutos em roupas que não compreendia, em casas vazias de família e em velhotes tão bons para mim e visivelmente tão nefastos para os seus. Os meus verdadeiros avós eram a luz nesta minha idade entre a terceira idade. Foram tantos os nomes, os rostos, as mãos, o cheiro que adjectivam de velho. 

A minha mãe, mesmo reformada nunca deixará o Centro de Dia, a sua vocação voluntária. A família continuará em casa, à espera que chegue. Eu, ande por onde ande, vou buscar muitas destas recordações a casa, ajudo-as a subir e a descer da carrinha das minhas lembranças. Ao final do dia, regressamos todos ao lar do que é possível...

«Paisagem» de Paciência

Work less, PLAY MORE, enjoy life...

domingo, setembro 09, 2018

Peter H. Fürst - Herbert Tobias with his Cat, 1962



Herbert Tobias (1924 - 1982), foi um fotógrafo alemão que se tornou conhecido por sua fotografia de moda durante a década de 1950.





quarta-feira, setembro 05, 2018

segunda-feira, setembro 03, 2018

"A memória humana é um instrumento maravilhoso mas falível." - Primo Levi

"A memória humana é um instrumento maravilhoso mas falível. (...) As recordações que jazem dentro de nós não são gravadas em pedra; não só têm a tendência para se apagarem com os anos, como também é frequente modificarem-se, ou inclusivamente aumentarem, incorporando delineamentos estranhos."

Primo Levi, Os Que Sucumbem e os Que se Salvam


"Nestes trinta anos a fazer versos, se me reconheço em algo, é na nostalgia." - Fernando Assis Pacheco

“Nestes trinta anos a fazer versos, se me reconheço em algo, é na nostalgia. Às vezes digo, para me auto-iludir, que sou um romântico, um ultra-romântico, um sentimental, um rural por oposição ao citadino seco, mas de facto sou um nostálgico. Uso pouco a palavra saudade, em detrimento da palavra nostalgia. O conceito de nostalgia é muito mais dorido do que o de saudade. A saudade é bonita, dá para o Carlos do Carmo e a Amália cantarem. A nostalgia pressupõe amigos que morrem; mulheres amadas que desaparecem, filhas que crescem e já não são como eram em pequeninas; eu já não tenho a destreza dos vinte anos, já não jogo à bola, já tenho digestões difíceis. A nostalgia não está devidamente contemplada na poesia portuguesa. À força de tentarmos fazê-la passar por uma categoria filosófica menor chamada saudade, esquecemo-nos de que o tempo foge e ninguém o agarra.".

Fernando Assis Pacheco em entrevista a Rogério Rodrigues







La vuelta del cole...

domingo, setembro 02, 2018

Amor à alva

quer a luz da madrugada
assomar-se pelos espaços

que a persiana lhe permite
e acordar-me o corpo
para o desejo do presente
amarrotado dos lençóis do passado

o sol é o astro principal
das nossas manhãs
a lua não domina a noite
como os satélites que pusemos
no nosso espaço e os quais vigíamos

com a atenção telescópica
numa galáxia cujo único requisito
para explorar é
a inexperiência

Del blog "Café Arcadia" de José Luis García Martín.

(...)
"Y sin embargo… El martes siguiente a mi encuentro con Albino Santana en la librería Bertrand fui con él a la feria de Ladra. Por supuesto, no encontramos nada que tuviera que ver con la maleta perdida de Sá-Carneiro. Sí, una primera edición de Mensagem más falsa que Judas, varios libros dedicados de Concha Espina, O Terror Vermelho de Fernández Flórez, y un puñado de cartas que, desde Salamanca escribía un tal Luis Leal (hermoso nombre) a un amigo portugués, Joaquim de Carvalho, que vivía en la Praça da Figueira. Compré las cartas, porque me sorprendió la coincidencia: yo estaba alojado en un hotel de esa plaza, cada mañana al despertarme lo primero que veía eran las ruinas del Carmo, el elevador de Santa Justa sobresaliendo sobre los tejados de la Baixa y el arbolado del mirador de San Pedro de Alcántara.
            No tenían mucho interés esas cartas, que leí ya de vuelta a Oviedo, salvo una, en la que, sorprendentemente, se hablaba del atentado a Salazar. Se mencionaban detalles curiosos, como el lugar de la Avenida donde estaban colocadas las bombas (un lugar, por cierto, desde el que podían hacer más ruido que daño). Bueno, pensé, nada de extrañar. Un suceso tan llamativo no podía faltar por aquellas fechas en la correspondencia entre un amigo portugués y otro español.
            Lo raro era que quien lo comentaba era Luis Leal desde Salamanca, no su corresponsal portugués. Y que faltaba todavía más de un mes para el atentado cuando lo hacía, si hemos de hacer caso al matasello de aquella carta no fechada.
            Se me ocurrieron dos explicaciones: que la carta estuviera en un sobre equivocado o que las sospechas sobre la intervención de los servicios secretos españoles y portugueses en la preparación de aquel rentable atentado tuviera algo de razón.   
           Demasiado novelera me parece esta última hipótesis para ser cierta. A fin de cuentas, los extremistas nunca han necesitado ayuda para ser los más eficaces colaboradores de sus enemigos.".

José Luis Garcia Marín in "La verdadera historia: Lisboa, 1937", 12/VIII/2018 (blog "Café Arcadia)

Passeio do Vassalo (Arronches, 01/IX/2018)

Cheiros...

Terra. Sempre recordarei o cheiro da pele e da roupa do meu avô como o da terra, seca, barrenta, mas trabalhada e regada com afinco e dedicação. Herdei um casaco seu, nunca por mim lavado, cujo odor durante algum tempo o manteve vivo no meu olfacto e no meu armário.
Gasóleo. O meu pai enquanto trabalhou no caminho de ferro, três décadas de comboios, automotoras, dresinas e vagões, abalava com o cheiro lavado pela máquina de lavar roupa caseira, com o perfume do Skip da caixa de papelão que reciclávamos para eu guardar os meus brinquedos debaixo da lareira que poucos fogos acendeu, e regressava com o cheiro do combustível dos cavalos de ferro que conduzia. Nunca me desagradou o cheiro a ferrovia, não entendia ser cheiro do trabalho que rapidamente desaparecia com o banho, mas nunca o imaginei mais agradável do que o futuro me impregnaria.
Suor. Frio, raramente quente, predominante do sovaco esquerdo. O desodorizante pouco palia o odor e a mancha na roupa a amarelecer e a converter-se em trapos. O treino constante, a práctica de muitos anos de serviço, as técnicas e os métodos adquiridos, o teatro aprendido a representar, ocultam os nervos de quem ensina a magote, a quem quer e não quer aprender, mas não oculta o cheiro nauseabundo que traz para casa impregnado na roupa, na pele, no ser.
Não há nobreza nas profissões, há nas pessoas que as exercem. Antes não pensava assim. Vivia aspirando cheiros idílicos quando, na realidade, o cheiro do trabalho, seja ele de terra, gasóleo ou um suor envenenado por uma sociedade de então, é o que se tem, é a realidade que se vive. Enquanto houver um pouco de água escorrer no banho, ou para uma bacia, e sabão azul, recuperarei o meu verdadeiro cheiro, essa mistura de terra e gasóleo, que me recorda de onde venho e, mesmo encharcado em suores de obrigação, me ensina a escolher as minhas fragrâncias essenciais.