segunda-feira, agosto 31, 2015

infância a boiar

o meu filho sussurra à gata uma qualquer coisa de cumplicidade felina. de gatas, num verão deitado no chão, pergunta-me se os seus olhos são diferentes. verdes escurridiços. brinquedos à bolina num tapete deserto de mar. sem o saber, há uma terra ao alcance desta criança. a de uns braços decididos a amarem-no, sem muros, na paz de um lar ainda de manhã. o conhecimento das farpas do arame chegam-lhe da descoberta pueril, brincadeira de campo, na divisória da noite aconchegada de lençóis de uma mãe e do dia que com ele cresce.
a terra inalcançável, à deriva na piedade de dedos suados de ecrãs simultâneos. tem-se pena em rede. não se é possível pulsar um don't like numa infância a boiar. legitimamente, refugiamo-nos no quotidiano da nossa distância, na segurança circunstancial de terra pisada por acaso. arrasta-se a rede, puxa-se sem descanso. arrastões de boas intenções, rolhadas no hermetismo, na censura sem sociedade ponto verde, duma qualquer garrafa perdida.
os olhos desta gata não vêem o cadáver que a rede me arrasta. ausentes dos pixeis estão os meus filhos. um sonha, outro brinca. porém não consigo deixar de os ver ali, a boiar.


Nota: A imagem está propositadamente "extra-largo" por a vergonha que me produz. Afogo-me com ela, consciente da impotência do verbo...  

Geografías infantiles/Geografias infantis

"Viver também para fazer-se" - José Luis Sampedro

“Viver também – e essa meta faço-a minha – para fazer-se. Todos se fazem, fazemo-nos, sabendo-o ou não, mas só se se tiver consciência disso se vive de verdade, de forma activa: colaborando com a vida em vez de se deixar levar. Criar-nos criando e não me refiro ao trabalho obrigatório e alienante, tão incensado pelo sistema económico para nos fazer dóceis produtores (esquecendo que no seu livro básico o trabalho é um castigo divino), mas à criação, ao esforço espontâneo nascido de nós mesmos, quer seja a escalar o Everest, bordar a cheio ou meter um barquinho numa garrafa. Criar obra realmente própria, como a morte própria desejada por Rilke, essa em que nos manifestamos inteiros: o nosso estilo, a nossa constituição interior, as paixões do nosso sangue e dos nossos nervos.
Fazer-se, sim; mas não nos fazemos sozinhos. Essa constituição e as paixões são influenciadas e até condicionadas pela paisagem e a época que nos acolheram ao nascer e, sobretudo, pelos que constantemente nos rodearam e rodeiam.”

José Luis Sampedro, in “Monte Sinai” pp.114 e 115

[Trad. Carlos da Veiga Ferreira]

sábado, agosto 29, 2015

Interferência (Alberto de Serpa)



INTERFERÊNCIA

Quem veio bater à minha porta? Quem?
Quem me fez abrir a janela e a noite morta?

O caminho estava deserto e o seu silêncio tinha horas.
Vento? Esta noite tem a paz e o sossego da morte.
Só eu e as estrelas sentíamos a solidão fantástica...
Nos ouvidos e na ansiedade guardei o rumor que chamou,
As minhas mãos tiveram a carícia doutras mãos perdidas
E uma companhia invisível acendeu uma luz na minha alma...

Alguém terá pensado em mim, longe?

Alberto de Serpa 


(Blogue Fel de cão - Ourém)



domingo, agosto 23, 2015

Max Jacob in “Conselhos a um jovem poeta”

Apollinaire sentia horror pelas «obras de antologia», quer dizer, pela poesia perfeita. Tinha razão, creio. Não obstante, também há que saber fazer de isto a causa do respeito pela arte, e, para além disso, sempre fica algo, suficientemente.
Estude pois a gramática, a retórica e a fonética sobre tudo.
E esqueça-o tudo.

Max Jacob in “Conselhos a um jovem poeta” [trad. Luis Leal]

sexta-feira, agosto 21, 2015

Deep Purple (Artie Shaw with Helen Forrest)



Porque a banda británica Deep Purple tinha esse nome? É engraçado...

"The British rock band Deep Purple got their name from Pete De Rose's hit as it was the favourite song of guitarist Ritchie Blackmore's grandmother; she would also play the song on piano" (Wikipedia). Aqui podemos ouvir duas versões da Orquestra de Artie Shaw com a cantora Helen Forrest. Uma canção composta em 1933.

Um bom contraste com o post anterior.



DEEP PURPLE

When the deep purple falls over sleepy garden walls
And the stars begin to twinkle in the sky—
In the mist of a memory you wander back to me
Breathing my name with a sigh.
In the still of the night
once again I hold you tight.
Tho' you're gone your love lives on when moonlight beams.
And as long as my heart will beat,
lover, we'll always meet
here in my deep purple dreams....


Uma versão mais breve ao vivo do ano 1939 com cenas de um filme





Smoke on the Water, 1973, Live in Usa (Deep Purple)







quinta-feira, agosto 06, 2015

neblina (Marta Lança)



neblina

a porta do café dá para a embaixada de frança quase no cruzamento com a rua da esperança.
uma neblina branca cobre os prédios com um potencial surrealista. Estar calor sem fazer sol tem qualquer coisa de tragicomédia. O telejornal da tarde fecha com uma peça do Sassetti que morreu há pouco na falésia. O piano induz a olhar a rua no seu crescendo de vida - aquele momento em que o fim (de cada um e de todas as coisas) é conscienciosamente anunciado. A velhota passa agarrada à sobrinha, o polícia olha para as botas melancólico, o homem levanta vagarosamente as chávenas das bicas, a rapariga lê o jornal, e nada disto é sereno.

Marta Lança

(A vida escrita, 13 de maio de 2012)


Acompanhamos com esta peça de Bernardo Sassetti para lermos as palavras de Marta Lança.









"James Dean on the set of Rebel Without a Cause"



James Dean on the set of Rebel Without a Cause peers out of the darkness of the set, Warner Brothers Studios, 1955, by Bob Willoughby.



quarta-feira, agosto 05, 2015

A um jovem poeta (Manuel António Pina)

Fotografia: Eduardo Hanazaki



A um jovem poeta

Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina



Do seu livro Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança





Simple Pleasures with Ray Ban

Red Bike (Caldas da Rainha)

domingo, agosto 02, 2015

Entre Duas Terras - "O cronista apresenta-se" (texto in "Revista Mais Alentejo" nº128)

O cronista apresenta-se

Teoriza-se um big bang, uma fusão do átomo, um pensamento, uma intervenção divina, uma descrença, uma palavra, várias palavras feitas introdução, o que seja, até chegar-se a qualquer conclusão. Se intelectualizo de onde venho trina-me uma guitarra sem fado, de cordas ritmadas e inocentes, acompanhada pelo Jorge Drexler, a voz amiga de sempre que nunca conheci, que compôs esta canção de propósito para mim: Yo no sé de donde soy,/mi casa está en la frontera/y las fronteras se mueven,/como las banderas.
Tendo a meditar o que vivo, talvez por tantas vezes não saber que língua ecoa dentro de mim, em que terra estou, qual o fuso horário do meu ritmo biológico, que ar inspiro e que dióxido de carbono liberto ao meu redor. Porém, descobri que os gestos rotineiros, alheios ao pensamento, mudos de idiomas, sem nacionalidade, sempre nos levam às nossas raízes.
Cada vez que levo a mão ao fundo do meu bolso agarro-me à certeza dum objecto, ao perigo constante da lâmina que pode cortar amarras mas não o lastro dum ego que, ao querer interpretar-se, evidentemente, perde tempo.
De mão na algibeira sei que sou alentejano. Agarro o meu passado em forma de navalha, consciente do brilho da folha metálica que me serve de espelho, do gume acutilante de viver o momento, junto com o óxido que delata a mentira da imortalidade do metal.
Escrever na MaisAlentejo incita o cronista a apresentar-se assim, de mãos vazias mas com a naifa no bolso. Encarecidamente, pede ao leitor para não o confundir com um vulgar bandoleiro. A única arma que porta capa grilos e o único banco que este cronista assalta guarda memórias e divagações cujo quotidiano lhe vai hipotecando na austeridade de tempo para as grafar.
Materializamo-nos em algum objecto, ou em vários, desde a pura admiração à espúria escravidão. O meu avô quis-me leal a essa verdade, a este objecto. Acredito que me pôs uma navalha invisível no berço, dando-me uma terceira mão, tão indispensável como as outras duas.    
Cuidar duma navalha não é diferente de aguçar os nossos filhos através da suavidade da carícia no duro deslizar da pedra de amolar. Nas palavras de João Serra, todo o canivete era tratado com todo o cuidado, evitando-se que fosse atingido pela ferrugem e cuidando do fio de corte, que não podia ter falhas ou rombos. Pouco volume fazia nos bolsos camponeses, onde entrava de manhã, com o lenço e a onça de tabaco para os fumadores. (…) Com ele se cortava o pão (…) se retalhavam azeitonas (…) se afiavam lápis na escola e abriam cartas e, excepcionalmente, livros. Com ele um homem podia fazer frente a perigos reais ou imaginários. Com ele um homem nunca se sentia só.
Com a navalha no bolso tenho passado algumas fronteiras, às vezes na bagagem de porão por causa da conotação terrorista que tem em qualquer aeroporto, ao ponto de, recém-aterrado, necessitar duma navalhita local, honesta nos serviços, que raramente me acompanha de volta a casa.
De navalha no bolso passei a fronteira. Um alentejano não se sente diferente dum extremeño. Nesse continuum de planície pautado pela serrania e riscado pelo Guadiana, que decidiu que a oeste se fala português e a este espanhol, a navalha corta fronteiras. Prova disso é o MacGyver, esse embaixador universal do potencial do homem e do canivete!  
E foi com a navalha que selei a minha hermandad com o poeta Samuel Chamorro, quem, junto à navalha herdada do meu avô, colocou a necessidade do lápis. Os seus versos encerram, com chave-de-ouro, que pátria é a herança dos nossos pais, algo que não confundo com país: Com a tua navalha pai/afio um lápis, o meu/que sempre,/sempre/escreve sem bico.

Entre Duas Terras - "O cronista apresenta-se" (in "Revista Mais Alentejo" nº128)