O cronista apresenta-se
Teoriza-se um
big bang, uma fusão do átomo, um
pensamento, uma intervenção divina, uma descrença, uma palavra, várias palavras
feitas introdução, o que seja, até chegar-se a qualquer conclusão. Se
intelectualizo de onde venho trina-me uma guitarra sem fado, de cordas ritmadas
e inocentes, acompanhada pelo Jorge Drexler, a voz amiga de sempre que nunca
conheci, que compôs esta canção de propósito para mim: Yo no sé de donde soy,/mi casa está en la frontera/y las fronteras se
mueven,/como las banderas.
Tendo a
meditar o que vivo, talvez por tantas vezes não saber que língua ecoa dentro de
mim, em que terra estou, qual o fuso horário do meu ritmo biológico, que ar
inspiro e que dióxido de carbono liberto ao meu redor. Porém, descobri que os
gestos rotineiros, alheios ao pensamento, mudos de idiomas, sem nacionalidade,
sempre nos levam às nossas raízes.
Cada vez
que levo a mão ao fundo do meu bolso agarro-me à certeza dum objecto, ao perigo
constante da lâmina que pode cortar amarras mas não o lastro dum ego que, ao
querer interpretar-se, evidentemente, perde tempo.
De mão na
algibeira sei que sou alentejano. Agarro o meu passado em forma de navalha,
consciente do brilho da folha metálica que me serve de espelho, do gume
acutilante de viver o momento, junto com o óxido que delata a mentira da
imortalidade do metal.
Escrever na
MaisAlentejo incita o cronista a
apresentar-se assim, de mãos vazias mas com a naifa no bolso. Encarecidamente,
pede ao leitor para não o confundir com um vulgar bandoleiro. A única arma que porta
capa grilos e o único banco que este cronista assalta guarda memórias e
divagações cujo quotidiano lhe vai hipotecando na austeridade de tempo para as
grafar.
Materializamo-nos
em algum objecto, ou em vários, desde a pura admiração à espúria escravidão. O
meu avô quis-me leal a essa verdade, a este objecto. Acredito que me pôs uma
navalha invisível no berço, dando-me uma terceira
mão, tão indispensável como as outras duas.
Cuidar duma
navalha não é diferente de aguçar os nossos filhos através da suavidade da
carícia no duro deslizar da pedra de amolar. Nas palavras de João Serra, todo o
canivete era tratado com todo o cuidado,
evitando-se que fosse atingido pela ferrugem e cuidando do fio de corte, que
não podia ter falhas ou rombos. Pouco volume fazia nos bolsos camponeses, onde
entrava de manhã, com o lenço e a onça de tabaco para os fumadores. (…) Com ele
se cortava o pão (…) se retalhavam azeitonas (…) se afiavam lápis na escola e
abriam cartas e, excepcionalmente, livros. Com ele um homem podia fazer frente
a perigos reais ou imaginários. Com ele um homem nunca se sentia só.
Com a
navalha no bolso tenho passado algumas fronteiras, às vezes na bagagem de porão
por causa da conotação terrorista que tem em qualquer aeroporto, ao ponto de,
recém-aterrado, necessitar duma navalhita local, honesta nos serviços, que
raramente me acompanha de volta a casa.
De navalha
no bolso passei a fronteira. Um alentejano não se sente diferente dum extremeño. Nesse continuum de planície pautado pela serrania e riscado pelo
Guadiana, que decidiu que a oeste se fala português e a este espanhol, a
navalha corta fronteiras. Prova disso é o MacGyver, esse embaixador universal do
potencial do homem e do canivete!
E foi com a navalha que selei a minha hermandad com o poeta Samuel Chamorro,
quem, junto à navalha herdada do meu avô, colocou a necessidade do lápis. Os
seus versos encerram, com chave-de-ouro, que pátria é a herança dos nossos
pais, algo que não confundo com país: Com
a tua navalha pai/afio um lápis, o meu/que sempre,/sempre/escreve sem bico.
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