sábado, setembro 30, 2017

«Dedicado ao galante povo do Afganistão»

«Dedicado ao galante povo do Afganistão», é assim que termina um dos clássicos musculados do cinema da era Reagan. Trata-se da terceira entrega de «Rambo» e, há bocado, passou pela milionésima vez nos ecrãs da TV. Já em velocidade cruzeiro, em termos de estupidificação graças ao cansaço da semana, aterrei no puff da sala e vi como o Stallone matava russos com outra invenção russa, ainda mais famosa que a personagem que interpretava, a AK-47. Apesar de todas as características que remetem este filme para a galeria de acção pouco verosímil sincronizada com qualidade tão duvidosa como a propaganda de então, lembrei-me que foi, graças a este filme americano, como aprendi o que era um «Mujahedin». Também me lembro, anos mais tarde, passados os febris anos 80, caídos muros de Berlim e exonerados comunismos soviéticos, liberalizados interesses e lucros pornográfico-petrolíferos por esse mundo fora, ver como o povo afgão deixava de ver a América dedicar-lhe filmes de grande orçamento e equipamento militar. Os rebeldes do filme do Rambo, companheiros combatentes pela liberdade contra o agressor russo, deixam a amizade estimulada pela CIA, zangam-se com o «Uncle Sam» e optam por espalhar o terror. 
O mundo não é tão simples como escassos diálogos em toda a série de filmes do Rambo, por isso é que de galante se passa tão depressa a gandulo, de amigo a terrorista. Mas a maior parte de nós não está nem aí, está como eu, em velocidade cruzeiro, refastelado no desinteresse dum puff. A história do Médio Oriente tem sido assim interpretada, desde a comodidade dum sofá ocidental...


P.S. Foto do relógio de Rambo, quando decidiu ser hora de se tornar o pior pesadelo duns quantos Russos!

quinta-feira, setembro 28, 2017

Voltar atrás e ter vergonha

Andei por aqui a ver o que foi escrito há sete ou oito anos atrás. Muita coisa que não passa de lixo por mim vertido em palavras. Porém, no meio de tanta coisa para deitar fora, há um ou outro pensamento, algum «post», ainda a tempo de se reciclar ou redimir. 
Não me envergonho de onde venho. De vez em quando, devo voltar lá, à autenticidade de ser um tipo despreocupado com que se alguém o leria, mas amável, a dar as boas noites para o vazio.

Boa noite.

A ultimar o projecto «Erasmus +»...

Nestes dias, estamos reunidos para terminar o nosso projecto «Erasmus+» dedicado ao desenvolvimento sustentável. No meio da burocracia, redigida na língua-franca que é o inglês, já se sente um misto de tristeza e gratificação. Esta é a Europa humanista na qual acredito. Noruegueses, holandeses, portugueses, italianos e espanhóis a sentirem que, para além de fazerem parte das suas nações, fazem parte dum ideal, dum todo bem mais nobre que muitos nacionalismos agora outra vez na moda. O ideal duma vida mais equilibrada com o seu entorno, uma vida mais consciente e empática não apenas com o país no qual vive, mas sim com o mundo em que habita. 
Tenho orgulho de fazer parte desta equipa, capitaneada pela minha colega norueguesa Mónica, uma autêntica «Valkiria» de bondade e profissionalismo. Neste barco todos se preocupam com todos. Rema-se com as secas da popa, com as inundações a estibordo, com a poluição marítima a bombordo ou com o degelo glaciar na proa. No meio de tanta papelada, até nem me sinto tão violentado pelo atavismo da burocracia, aceito-o como um mal-menor para a minha profissão e para os jovens que dela dependem. 
Se valeu a pena? Ó se valeu! Esta é a grandeza do sonho europeu!

Um conselho de Manuel António Pina

"O ideal é não nos afastarmos da casa mais do que nos permite metade das nossas forças" - Manuel António Pina. Um conselho para gatos que poderiam ser humanos.

quarta-feira, setembro 27, 2017

Buda nas alturas...

Vida e Gratidão (Chesterton)

«No que respeita à vida, o que é decisivo é se damos as coisas por adquiridas, ou se, pelo contrário, as recebemos com gratidão» - Chesterton

Pôr-do-sol no planalto (Portalegre)

Depois de uma jornada de trabalho, tivemos de ir até Portalegre para tratar de papelada. Aqui vivemos uma época das nossas vidas e, para mim, sempre estará associada aos mais belos pôr-do-sol que vivi. Hoje é um deles. A Serra de S. Mamede guarda momentos como estes em mim. Este aqui fica, em diário, desde a varanda dos nossos amigos Felipe e Sheila.

terça-feira, setembro 26, 2017

Muro de la desmemoria (pintada en el cementerio de Badajoz)

Recordando Mário Neves. Recordando que houve gente que disse que mentiu. Recordando como viveu sem beneficiar de ter, presuntamente, mentido. Recordando o meu colega Enrique. Recordando que me disse «¿porque no puedo yo enterrar a mi abuelo?».
Recordando que vivo perto duma vala comum. Recordar pode evitar muita coisa no futuro.

A pensar que pensando está...

segunda-feira, setembro 25, 2017

Estados e governações

Catalunha. Os independentistas pouco têm a ver com os revolucionários do século XX. Uns burgueses ricos que advogam a separação do estado espanhol e uma esquerda republicana convicta da nação catalã, verdadeiramente coerente ao fazer parte do congresso dos deputados do reino de Espanha. Assim se vê o cenário político por estas bandas. Eu pouco vejo e pouco entendo. Fico pelas minhas incongruências. Nunca gostei de referendos impostos por meninos ricos, cujos peões são manipulados por ideias nacionalistas desde o jardim de infância que lhes impõem uma só nação e os obrigam a dar a cara por interesses que, talvez, nunca fossem os seus.
Por outro lado, preocupa-me a surdez constitucional de um regime que não ouve os gritos de uma nação que quer ter uma palavra a dizer. A favor ou contra do referendo do dia 1 de Outubro, a divisão continuará até serem ouvidas, sem imposição de Generalitat nem rigidez constitucional, as vozes sensadas de todos os catalães. Do senso real dum colégio eleitoral haverá um consenso, gostemos ou não gostemos do resultado desse hipotético referendo.


P.S. Hoje, o Sr. Rajoy reune-se em Washington com o Sr. Trump. Pouca fé tenho nestes dois, mas ainda menos no Presidente dos EUA. As «nacionalices» e «patriotices», reza a história, só dão chatices...

Are you fond of cycling?

domingo, setembro 24, 2017

Homem sem negócios

Não ter espírito de negociante, ser algo avesso à ideia de procurar o lucro acima de tudo, é algo muito presente em mim. No entanto, um olhar externo pode enganar-se ao pensar vislumbrar estupidez e uma presa fácil de embusteros e discursos de empreendedorismo capitalista. Sei muito bem para que tipo de negócios fui talhado e os meus investimentos não são pecuniários, apesar do enorme risco que apresentam em livros de contas organizados por ordem de prioridades e sem saldo nas letras. Até à data vai estando tudo pago e vai-se vivendo com a hipoteca que tenho, de passinhos pequenos mas certos, não se vão para aí rasgar as calças se os mesmos forem maiores que as pernas. Aprendi-o com gente que nunca teve muito do que quer que fosse (e foi tendo a ambição do impossível  e inútil de se ter). Mas o que mais me influenciou em matéria de «business» foi nunca ter gostado de sentir o cu ao léu...

Vistas de Bendilló, Lugo

sábado, setembro 23, 2017

Um altar de humildade - Bendilló, Lugo (23/IX/2017)

Mesmo quando, no passado, a minha educação religiosa me confrontava com imagens de santidade, sempre senti um certo desconforto e desconfiança com essa bonecada vestida com mantos, coroas e acessórios, quase sempre, de sofrimento. Perdi mesmo a conta a quantas virgens e santinhos me trouxeram de Fátima na infância. Preservar só preservei na memória uma Senhora de Fátima, que brilhava fluorescente no escuro, e um terço, com as mesmas características, que ainda hoje é um objecto de estima ausente de devoção.
Com o tempo, tenho vindo a afastar-me de templos edificados pelo homem, de cultos colectivos com hora marcada, mas tenho celebrado a minha fé em altares improvisados de ocasião, onde as homilías não são tarefas de cura, nem a liturgia circunscrita a livros sagrados. Ao longo da vida, tantas vezes me foi imposta a missa que acabei por encontrar a palavra de Deus em tudo o que não se me impôs e não é digno da melhor roupa nem dos sapatos de domingo. Depois da genuflexão ante a instituição, reflexo do que foi a minha formação religiosa, encontro a necessidade de ajoelhar-me perante vários altares de humildade nos quais não se celebram apenas missas, mas sim a dignidade da condição humana. Isso aconteceu-me hoje, em Bendilló, Lugo.
Apesar de ter assistido a uma cerimónia religiosa, a nave central não albergava o altar que me fez voltar ao silêncio daquilo que me foi ensinado como rezar. Na lateral, rodeada de bocados de cal caída 
(como aqueles que me faziam lembrar hóstias consagradas e brincávamos aos padres e fiéis quando éramos putos em eucaristias cheias de inocência mas acompanhadas por Deus) 
estava uma imagem duma virgem de Fátima, tão esquecida como as que fui perdendo à medida que crescia e à medida que perdia rotinas que me permitiam responder ao cerimonial guiado por o missal aberto em cima do altar. 
A cerimónia decorreu em clima de intimidade. O ritual bonito, simples, florido e sentido. Porém, nenhum dos intervenientes, com excepção do sacerdote e eu, respondia certeiro ao timming das orações. Neste altar de humildade, soube que, por mais individualista que a minha fé se tenha tornado, sou filho de um Deus católico, incapaz de se edificar em catedrais, cujo culto nasceu em duas capelinhas de bairro,
as minhas Senhoras da Saúde e do Carmo
em silêncio, onde a cal cai e se transforma em ruínas de neve...

Eleanor Rigby (Caetano Veloso)




Álbum: Qualquer Coisa (1975)

A Costa, Lugo

Setembro bem entrado e diz-me o camareiro:
- Há quatro meses que não chove. Jamais isso aconteceu por aqui. Este Verão foi uma coisa nunca vista.
A Galiza com cada vez menos clorofila é um síntoma novo, preocupante. O clima é um património a preservar e é bem mais difícil de restaurar que um monumento. Começa a ser tarde de mais?

sexta-feira, setembro 22, 2017

Hotel Augas Santas, Lugo

A Galiza é a região que escolhemos para ser cúmplice das nossas regiões. A verdadeira pátria irmã da terra dos nossos pais, da nossa língua-mater, é o local que escolhemos para casar em comunhão com uma ideia maior que o nosso, ou talvez o meu, pensamento pode conceber. Casámos em Santiago de Compostela há já oito anos e hoje voltámos para amanhã casar outro cúmplice, um irmão que a vida, e não a minha mãe, me deu. O meu José Antonio que aqui se une à sua Camino.
Venho como testemunha de que as uniões têm tanto de amor como de casualidade. Que os caminhos se cruzam para formarem novos caminhos.
Foi a casualidade que me pariu este irmão no apartamento em cima do meu, arrendado ao mesmo senhorio, o «Señor Maneli» que agora relembro como nosso pai simbólico, pois a nossa irmandade nasceu nas suas terras, nas suas propriedades transfronteiriças.
Imerso nas minhas imperfeições, e nas minhas tamanhas contradições, dou por mim a escrever estas linhas feliz e emocionado. Em família. Em afectos. Em abraços sinceros, sem ajuizar. Pode ser um lugar-comum, é-me indiferente que o seja, ponho-me nele por comodidade e estou-me a cagar para os que julgam o meu conforto, porém encontrar um irmão em idade adulta, sem qualquer interferência do adn imposto pelos pais, ou mesmo pelo país de nascimento, não é para qualquer um. É para gajos como o José e eu, gajos que gostam um do outro porque sim, porque o mundo tanto se pode ver duma janela dum apartamento de Valencia de Alcántara, de Cáceres, de Leganés, dum banco dum qualquer jardim de Évora ou Badajoz, ou até do chão da Plaza Mayor de Madrid, onde não há arquitectura defensiva nenhuma que nos impeça de ter tanta importância para a humanidade como um «bocadillo de calamares».
Sem vagina, pénis, óvulo ou esperma em comum, tenho um irmão, uma lealdade sem hora de nascimento, que amanhã se vai casar. Também tenho dois filhos e a esperança que, um dia, a carne não determine o que eles entendam por fraternidade.

«O que do fundo de alguns olhos vem tão azul à superfície destina-se a transformar o que em nós é apetência de morte no mais limpo e matinal voo de cotivia.» - Eugénio de Andrade, in "Vertentes do Olhar".

quarta-feira, setembro 20, 2017

Himno del desolado (Aníbal Núñez)



E agora um breve poema de Aníbal Núñez (Salamanca, 1944 - 1987):


HIMNO DEL DESOLADO

Llegados a este punto hemos tomado
–se suman otras voces–
la decisión de naufragar.


Cuarzo. Pre-textos, 1988 (1ª ed. Entregas de la aventura, 1981)


Mais poemas dele em A media voz



terça-feira, setembro 19, 2017

Vêm e vão os dias, fica o amor

Vêm e vão os dias, fica o amor. Esta ideia, pois a frase não me vem «ipsis verbis» à cabeça, é de Miguel de Unamuno. Assim se foi o dia. Trabalho, casa, deveres domésticos e familiares, a má resposta que não merecias com desculpa sincera, a mentira ridícula com atestado de tonto, a notícia do poeta que se lembrou da tua honestidade radicular, a notícia da aluna a emocionar-te, a visita da estima dum amigo, a birra, o desenho desinteressado com declaração de amor de pai, o banho a brincar, secar cabelos para o serão não se constipar, o telefonema de sempre, a tradução porque não conseguias escrever mas não deixaste de sentir. O dia já se foi. Provavelmente amanhã virá outra vez levantar-me da cama. De tudo, fico com o amor e com a sensação de me estar a constipar.

“Cheiravam à doce mistura” – Felipe Núñez (tradução e adaptação de Luis Leal)

Cheiravam à doce mistura
de borracha de apagar
lápis e ninho.

Colecionavam caricas,
berlindes, rolamentos,
alfinetes, feitiços
e toda a quinquilharia repetível
em efémeras modas. 

Professavam um raro respeito à palavra
dada e aos pactos,
que expressavam em máximas
com santos pelo meio.
(Santa Maria, São Julião, Santa Rita...) 

Tinham terror a Deus os mais assustadiços
mas todos
de estranhos e malvadas personagens
como o Tipo Seboso,
ou o Tipo da Pistola Partida, São João da Bolota.

E preconceitos sociais:
o último a chegar 
é filho da mãe.

As tardes eram compridas
e as manhãs largas.
Por isso os dias sempre lhes ficavam grandes
e caídos pelos ombros. 

Felipe Núñez

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Sistemas e Saladas

Todos os sistemas têm funcionamentos peculiares. Inserimo-nos em vários ao longo da vida e essas peculiaridades determinam vários momentos e etapas dessa mesma existência. Pessoalmente, não sou capaz de enumerar pelos vários sistemas pelos quais passei e por aonde ainda me detenho, porém há um que determina a minha vida laboral, cuja cegueira é digna de vários ensaios.
Não tenho tempo, nem paciência para entrar em considerações, que me mal-interpretariam como ultra-liberal, sobre a redundante função do sistema público. Nem farei o mesmo sobre as chefias, os cargos funcionais acima dos funcionários públicos, nem dos cargos políticos eleitos pelos cidadãos fartos dos sistemas que fazem o mundo avançar seguro, unicamente, de cegueira.
Dir-me-ão, com bastante razão, que azeite não se mistura com água, que a verdade ao de cima sempre vem. Pode até ser verdade, mas pouco me serve para temperar uma salada que me servem e já me começa a saber mal. Resta-me a certeza que as saladas, tal como os sistemas, serem algo meio impositivo. A primeira, se queres ter uma boa saúde, tens de comê-la. O segundo, se queres ser "alguém", tens de nele te inserir.

segunda-feira, setembro 18, 2017

domingo, setembro 17, 2017

A primeira colheita da árvore-mãe...

É silvestre, doce, e já lá estava na courela. Houve momentos em que a pensámos morta e cortá-la seria dar-lhe um fim feito cinzas. Mas não, está bem viva e olha, desde o alto dos seus anos desconhecidos, para a plantação recente de amendoeiras com que replantámos o velho olival, arrancado por improdutivo, doente e seco, do Garro de Cima. Ali mesmo, onde o vento de Espanha lhe ampara o porte e o horizonte atlântico a faz pensar mais além...
Nós, nesta primeira colheita oficial, apenas nos aprazemos de esta ser a nossa «aCourela» do Alentejo...

Muda tanto...

Muda tanto e tantas vezes ao dia e, se não fosse agora parar para escrever, quase não me aperceberia. A voz que tenho escreve-se pelas cordas emaranhadas da minha garganta. Vou desatando-as em linhas e o eco desses nós nota-se-me nas mãos.
Talvez não me aperceba tanto da mudança porque falo com as mãos, gesticulo os tons da minha voz com a mesma intenção, a de pôr cá para fora algo que me vibra mais e para o qual o meu aparato fonador, mesmo aforado em papel de diversas qualidades, não consegue cruzar a fronteira do meu corpo.

Enfarte ou orgasmo

Que estado é este em que, para me dar por vivo, tenho de viver em constante estado de enfarte ou de orgasmo?

«Gracias», obrigado

De manhã, fomos até à feira anual dedicada à caça e à pesca aqui na região raiana. Foi a terceira, ou quarta, vez que fui, mas hoje fui acompanhado pelos meus filhos. 

A actividade cinegética é fundamental para a sobrevivência do interior e, direi mesmo, do ser humano, como ferramenta gravada no adn desde a época da recolecção, pouco depois de nos termos posto de pé nas patas traseiras. Porém, não é sobre esta problemática, tão dada a posições extremadas e polémicas, que esta entrada vai recolher o que foi parte do meu dia. Sei de onde venho e não me esqueço que ainda há tempos, antes da agricultura e dos animais domésticos, não nos governávamos a raízes e plantinhas sazonais.

A feira estava à pinha e havia várias formas de se interagir com os produtos dos expositores. Podias experimentar roupa outdoor para estas actividades, folhear catálogos, ver armas brancas feitas por arte de ferreiro, observar por monóculos, binóculos ou miras telescópicas, esticar canas de pesca, comprar engodos, etc. Foram várias as vezes que me lembrei do meu avô João. Foram várias as vezes que dele falei aos meus filhos, principalmente do silêncio, da solidão e do esforço do caçador honesto e respeitoso com o entorno, com o que obterá da natureza para se alimentar, proteger ou equilibrar, nunca para pendurar na parede e ostentar. 

Num desses vários expositores estava a federação de tiro com arco regional, sempre bem-intencionada e disponível para iniciar miúdos e graúdos na arte do arco e da flecha. O meu filho mais velho quis participar e, o seu irmão e eu, ficámos fora da fila a observar os lançamentos e a pontaria do pessoal. Lá chegou a vez dele disparar e, para um puto de seis anos, saiu-se muito bem, não fosse a simpática ajuda dum senhor voluntário da federação de tiro com arco.

Relembrei-o.
- O que é que se diz?
- Gracias.
Timidamente, como é costume, agradeceu por imperativo paternal.

Demos mais uma voltinha, fomos buscar material escolar que ainda faltava e, já em casa, as flechas lançadas pela fila de crianças que assisti deram no alvo da minha atenção. Se muito me engano, os sete ou oito putos que iam à frente do meu filho não tiveram o mais mínimo gesto de gratidão para quem os estava a ensinar a manejar o arco. 

(Dir-me-ão alguns, com a sua razão, agradecer o ensino de manejo de uma arma?)

Sou um fascista da gratidão. Desprezo os que não se sentem obrigados a retribuir amabilidade. Deveriam ser torturados com boas maneiras, com um carrasco educado que, antes de lhe decapitar direitos, lhe pede com "se faz favor". Espero que os meus filhos me odeiem por os ter obrigado a sentirem-se obrigados, a agradecerem a atenção recebida. Como qualquer regime imposto, não espero que me agradeçam, espero que não esqueçam o passado e aprendam com ele.

quinta-feira, setembro 14, 2017

Membros atrofiados

Sabes que te mentem como mentem a si mesmos. Forjam verdades convenientes e ignoram as marcas e imperfeições que ficam nesta espécie de metal com que fabricaste a armadura dos teus dias.
A veracidade do que te dizem até não é posta em causa. Entristece-te a intenção, a forma como te relegam para segundo plano porque não gostas de conversas e chatices que não te melhoram, que não melhoram nada nem ninguém. Mas sentes. Tentas não julgar. Acreditas que por aqui não andas para ajuizar. Tentas continuar a procurar a honestidade, cansativa, dos teus dias e educar os teus filhos com a moral do Pedro e do Lobo.
Escreves a tua verdade, ou a tua mentira inocente, esperando não ver gangrenado estes membros que fazem parte de ti, cuja tristeza de os veres atrofiados não se compara à tristeza de algum dia os veres amputados.

terça-feira, setembro 12, 2017

Um excerto de amor viril (António Lobo Antunes)

"(...) Mas tinha uma capacidade natural para entender os outros e, apesar de duro, era extremamente afectuoso. As pessoas são muito diferentes do que parecem e demoramos muito tempo a conhecê-las. Sucedeu-me isso, por exemplo, com o Ernesto Melo Antunes. Fui estúpido: demorei a compreender a grandeza do seu coração, demorei ainda mais tempo a compreender a sua bondade. Era duro e exigente e acabámos a gostar tanto um do outro. Nunca me esquecerei de quando o primeiro rapaz dele desapareceu. Olhou-me em silêncio um ror de tempo até que disse baixinho
- Tinha jurado que os levava a todos e as suas pálpebras estavam diferentes. Na véspera ou antevéspera de partir disse-me
- Acordei esta noite todo molhado. Não me deixes morrer sem dignidade.
E lá fui, atrás do caixão, com uma filha sua em cada braço. Era, com António Ramalho Eanes, o homem que conheci mais capaz de um amor viril por um amigo. E sinto-me abençoado por os ter conhecido."


António Lobo Antunes, in «Visão» (7/XIX/2017)


domingo, setembro 10, 2017

Desistir

Desistir é um daqueles verbos que não se conjugam com a minha teimosia. Desde gaiato que me custa deixar uma coisa a meio, seja por que motivo for. Talvez por isso tenha conseguido umas quantas satisfações pessoais, superação de tantas das minhas limitações, chegado a alguns sítios, cumprido prazos e objectivos. Por outro lado também tenho conhecido derrotas, perdas amargas de vários tipos (de tempo principalmente), dores de corpo e de alma para as quais o único remédio sempre foi a honestidade de haver tentado.
Porém com o passar dos anos, com o acumular de responsabilidades, com imposições internas e externas, dou por mim a escrever em forma de queixa, a sentir-me fraco, a baixar defesas nas várias frentes, a ver-me desarmado nas batalhas que tenho de pelejar, a claudicar e ainda a guerra não vislumbra tratados de paz. Não assumo a derrota, por sentir a dignidade nos meus objetivos, mas começo a ser selectivo e a retirar o meu esforço de umas quantas frentes que fechar-se-ão para mim. Desistir começa a parecer-me mais um acto de inteligência que de cobardia. Assumi-lo é uma forma de sobrevivência, também ela mais uma questão de razão que de emoção...

sábado, setembro 09, 2017

Ainda vamos a tempo de confiar no tempo que nos traz o amola-tesouras...

Ainda vamos a tempo de confiar no tempo que nos traz o amola-tesouras...

De onde estou...

Vim à minha cidade e estou sentado dentro do carro enquanto o meu filho mais novo dorme a sesta na esperança que este momento reparador afaste birras e mau humor.
De onde estou consigo ver a ecopista, construída em cima do antigo ramal de caminho-de-ferro, e gente a caminhar, correr, a andar de bicicleta. Há um puto a pedalar na minha direcção que me faz recordar o puto que fui a andar por esta cidade. Desperta-me a saudade de este ter sido o meu lugar no mundo numa juventude em que a ecopista não existia porque o comboio ainda por ali passava.
Já lá vai à frente o rapazito, quem sabe para casa a almoçar. Já lá ficou para trás o miúdo que fui, tal como a minha primeira bicicleta de montanha, vendida por 20€ ao meu amigo Miguel Rabino...

sexta-feira, setembro 08, 2017

(Video)Jogos Olímpicos

Posso ter percebido mal e espero mesmo ter percebido mal. Segundo uma reportagem sobre o mundo dos campeonatos de videojogos, esta modalidade, com milhões de adeptos e que gera outros milhões em lucro, poderá ser uma modalidade (talvez experimental) nos próximos Jogos Olímpicos.
Deve ser um desafio interessante trasladar o espírito olímpico para uma modalidade de sofá e para videojogos, não conheço muitos, como o «Duke Nuken», «Doom» ou o «Grand Theft Auto».
«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» é um sábio e batido verso do genial Camões, porém poder-se-ia juntar-lhe qualquer coisa sobre estupidez humana ao seu tom proverbial, qualquer coisa como «todo o mundo é composto de mudança e de grande parvoíce humana». Perde o génio do poeta, mas mantém a verdade mundana.

segunda-feira, setembro 04, 2017

Quezilias e correntes de ar

Uma pessoa, por mim estimada, entrou em conflicto público, por assim dizer, com alguém que no passado a publicou. Esta quezilia teve lugar nas novas epístolas feitas comentários nas redes sociais. Dá-me pena ver como tudo se amplifica e chega a terceiros. Para além de nos levarmos demasiado a sério, começo a pensar um pouco como o Nuno Markl que, há relativamente pouco tempo, abandonou o Facebook, enunciando que o que por lá se escrevia lhe poderia passar factura à saúde.
No entanto vou resistindo com conta aberta, com algumas incursões e cada vez menos publicações. Porque é que não me «derrisco», como dizia a minha avó?
Ser invisível por opção atrai muitas vezes, tal como o pensamento «não tens necessidade de perder tempo com isto», mas não existir em rede é fechar portas desnecessariamente. Abramos a porta aos raios solares que trazem vida ao teu íntimo, esse amigo de longe, o escritor que partilha sábias palavras, a arte na sua transversalidade, as notícias da tua terra, da tua família, a sugestão e o evento digno de interesse por ser desinteressado. Se há que fechar, isolar, insonorizar ou, até mesmo, pôr trancas à porta, que seja aos vendavais de estupidez. Põe mesmo um chouriço na porta. Não te deixes constipar com correntes de ar indesejadas.

SEPTIEMBRE/SETEMBRO - Karmelo C. Iribarren (trad. Luis Leal)

SEPTIEMBRE

Tú en la playa
- recogiendo -
y el mar desesperado.

SETEMBRO

Tu na praia
- a arrumar -
e o mar desesperado.

in «Mientras me alejo» (Trad. Luis Leal)

O Filho de Saúl

Domingo. O primeiro de Setembro. Um dia como outros tantos de fim-de-semana. Nada de especial. Eles, como sempre, levantam-se cedo. Andam por aqui a brincar, aos saltos. Birras e gritos do mais novo para chantagear a boa vontade do mais velho. Tenho do admitir, são chatos. Eu e a mãe quase não temos tempo um para o outro. Entre eles, o trabalho e outras responsabilidades, a prioridade são eles. Assumimo-lo sem queixa, cientes de que o queremos e das circunstâncias do que vivemos. 
Porém também vivemos num presente muito exigente. Temos de ser modelos de paternidade e não podemos exteriorizar alguns pensamentos pois a sua interpretação pode ser motivo de fogueira pública, de queixa aos serviços sociais do estado (esse pai perfeito) ou a nossa conotação com a bestialidade, isto é, de bestas mesmo. Tenho por hábito reconhecer que sou um animal de família. O que tenho de besta supero com beijos, abraços e tempo. Sou bruto. Muitas vezes consciente, muitas vezes por testosterona desatenta e inocente. Escrever os meus defeitos, reconhecer as minhas falhas, recordar o passado imperfeito que me educou e aceitar a interferência que a minha profissão (talvez pudesse escrever profissões, usando o plural) tem na minha paternidade é algo arriscado para mim. No entanto, enfrento os meus medos e, como forma de manutenção da minha pretensa sanidade mental, verbalizo o que às vezes sinto e, desculpem as formas de bairro, apostaria o testículo esquerdo que muitos como eu sentem mas não têm tomates para o afirmar nesta ditadura do bem-parecer. 
Há dias em que estou farto dos meus filhos. São esgotadores, falam aos berros, acordam sempre com as galinhas, não deixam que namoremos cinco minutos... Reconheço com gratidão o pão e a saúde vivida em minha casa mas há dias em eu não sou só pai e tenho vontade de me cagar para eles com todo o amor do mundo que isso implica. 
Continuou o Domingo. O mais novo especialmente birrento e sempre de roda das saias da mamã. O mais velho a teimar em pouca atenção e despistes irritantes. A temperatura ainda bastante quente levou-nos a uma piscina municipal e viajámos por esta raia sequíssima. Nada de especial, que não se tenha feito ou soubéssemos.
Banhos, jantar, caminha sem história a acompanhar por preguiça paternal, ficámos pela sala a desfrutar de alguma tranquilidade, evidente num volume mais baixo da televisão, luzes, do ritmo desta etapa da vida.
Com eles ainda acordados no quarto, a conversarem através das minhas advertências de silêncio, sentámo-nos no sofá a emular de forma caseira uma ida ao cinema em casal. Apesar de, a estas horas do dia, geralmente preferirmos um blockbuster qualquer, que não active muito regabofe neuronal, a um filme de maior exigência intelectual, o meu amor pela sétima arte (enquanto escrevo esta nota acabo de ir dar xarope ao mais velho porque está a ficar com tosse) quis que víssemos o premiado «Filho de Saúl».

Em linhas gerais, a história de um comando-sonda de um campo de concentração Nazi que pensa haver encontrado o cadáver do seu filho e obsessiona-se com enterrar o seu corpo de acordo com as suas crenças judias. Uma obra notável, de primeiro-plano para a interpretação do actor principal que, se não fosse húngaro, teria sido premiado com um Óscar da academia. Vá lá, o filme lá levou a estatueta de melhor filme estrangeiro, de língua não inglesa, para casa.
Já nós cá por casa, deitámo-nos no quarto ao lado dos nossos filhos. A Elsa disse-me que fica sempre agoniada depois de ver este género de películas. Eu agarrei-me a este diário com a convicção de necessitar deste tempo para ver uma obra tão acutilante como esta. Tranquilo, sem eles a fazerem perguntas ou a correrem pelo apartamento.
Pus-me na pele da personagem e pensei que ambos somos verosímeis. Um comando-sonda atormentado por um dever feito redenção e um pai cansado, cheio de medo por um futuro em que a bárbarie do passado apareça revigorada.

sábado, setembro 02, 2017

Tinha abraçado o meu filho no peito

Tinha abraçado o meu filho no peito. Cócegas, risos e calor de fim de Verão. O meu peito, esquecido dos dramas quotidianos de ser como sou, rídiculo, era afagado pelo dedo curioso do meu pequenote. Juntou indicador ao polegar e puxou, sem magoar, o tempo que vai passando por ambos. Riu-se e eu perguntei-lhe o que foi.
- Tens um pêlo branco no peito!
Disse-lhe a brincar que estava a ficar velhote o que lhe fez ainda mais graça. Saltou para o chão e eu tentei encontrar tal famigerado pêlo. Escondeu-se de certeza, ciente que o iria arrancar pela raíz.