“Biblioterapia”: leia, mas não deixe de consultar o seu médico (Luis Leal)
No espectro da minha família há uma pessoa que lamento não ter conhecido, o sobrinho do meu tio António, Gumerzindo da Silva Neves (1933-1995). Para além de ter sido filho, irmão, marido, pai, tio e tantos outros papéis na sua vida pessoal, Gumerzindo marcou os que com ele conviveram, deixando um legado de saudade. No que concerne à sua profissão, foi psiquiatra num país bipolar, talvez esquizofrénico, exercendo no conhecido Hospital Miguel Bombarda (do qual foi Coordenador do Serviço de Psiquiatria Forense) e também no seu consultório, onde acompanhou todo o tipo de pessoas, desde o escritor "neo-abjeccionista" Luiz Pacheco ao mais humilde dos alentejanos que ia à capital ver o Dr. Silva Neves porque não “andava bem da cabeça”, pagando-lhe com alguma galinha, alguns ovos, couves… Tenho muita pena de não o ter conhecido. Foi através da sua memória, após ter conhecimento do próprio muitas vezes pagar os medicamentos aos seus pacientes (aviados numa farmácia de Odivelas) que tirei a conclusão de quem pode faz psicoterapia, isto é, quem tem dinheiro recorre a Freud, e quem sobrevive com os mínimos, com sorte, trata-se com antidepressivos pagos pela generosidade de alguém empático com as suas circunstâncias, com a sua dor, alguém ciente de quem não tem para pôr na mesa costuma ter de ir trabalhar diariamente, alheio a baixas médicas e até a seguranças sociais (por mais que alguns os vejam como uma maioria de malandros a viver à custa dos resíduos de miséria de um qualquer orçamento de Estado ou da “Alta Finança”).
Ironicamente, quando os próprios profissionais de saúde não se podem permitir a aceder a serviços de psicologia ou de psiquiatria, a pandemia trouxe para ordem do dia o “hashtag” #mentalhealth a proliferar pelas redes com um filtro que deixou de ser tabu, ou a real necessidade de bem-estar do ser humano, para ocultar o que me parece uma imposição perigosa de “felicidade”, irreal, frívola, muitas vezes fútil e, perdoem a minha sinceridade, que apenas cuida do ego de alguém, aos poucos, a afastar-se dos outros. O objetivo desta crónica era divagar sobre “Biblioterapia”, quero dizer, a minha estante, sem qualquer tipo de marketing, na qual a literatura, ademais do seu objetivo estético, apresenta um lado didáctico (admito mesmo ideológico) para esta empresa de viver. Desarrumada e aberta a novas incorporações, do caos de volumes sobressaem lombadas de Emerson, Hesse, Taniguichi, Canetti, Irene Vallejo, Victor Frankl, Torga, Marguerite Yourcenar, Octavio Paz ou um Mitch Albom, pouco agraciado pela crítica, mas cujo “As Terças com Morrie” (da colecção do “Público”, “XIS - Livros para Pensar”) me acompanhou num momento complicado de falta de maturidade e desemprego.
Há quem diga que “em grande medida somos os livros que lemos”. A frase é bonita, porém acredito apenas ficar qualquer coisa dos livros que lemos ou o fruir da experiência artística, mas “sermos o livro que lemos” é demasiada pretensão. Um livro pode ser uma tábua de salvação, ajudar-nos a sobreviver ao naufrágio, e, excepcionalmente, ajudar-nos a alcançar terra firme. A realidade, contudo, imperadora e meretriz, mostra-nos serem as equipas de resgate as mais eficazes em caso de SOS e, fazendo jus à origem anglófona do socorro universal, as que “mais almas salvam”. É devido a esta evidência (e porque vi, repleto de livros a boiarem ao meu redor, como também eu me afundava), que me preocupo como encaramos a saúde mental. Quero dizer, como num passado recente a mesma era coisa de doidinhos, na qual só se admitiam idas ao psicólogo se fosse para psicotécnicos, e como actualmente se trivializou o assunto. Saúde mental não pode rimar com banal (“integral” talvez, ao ser indissociável da sabedoria clássica: “mens sana en corpore sano”), mas consultar um especialista não é o mesmo que umas dicas no TikTok, com a etiqueta da moda, ou medicar-se à base de literatura. Consciente da ansiedade do presente e por mais que se fale do assunto tudo continua igual. Quem pode deita-se no divã. Quem não pode, a sociedade da auto-ajuda encarrega-se de atirar-lhe à cara a incapacidade, culpabilizando-o pela doença e alimentando-se dela. É a “auto-desumanização” com difícil terapêutica.
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Gumerzindo da Silva Neves (1933-1995) caricaturado na sua época coimbrã. |